Frases


"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



domingo, 25 de agosto de 2013

Encontro com Fernando Arrabal




Fotos: Denis Akel

Há algum tempo, publiquei aqui um texto sobre a participação do escritor Ignácio de Loyola Brandão na X Bienal do Livro do Ceará, no ano passado (2012). Na ocasião, foi apresentada uma prévia do espetáculo teatral Não Verás País Nenhum, inspirado na obra homônima do escritor. A íntegra da apresentação, conforme escrevi lá, seria dia 7 de dezembro, no Centro Cultural Dragão do Mar. O ritmo da encenação foi tão cativante, que fiquei até o final da prévia, e já disposto a ir conferir a peça completa.

Passaram-se dias. Terminou a Bienal, o mês de novembro, e chegou então a noite do dia 6 de dezembro. Estava tão certo de que a apresentação seria no dia 7, que desde aquele dia não chequei mais a data. Nesta noite, porém, de última hora fui confirmar a hora e então veio o inesperado: a apresentação tinha ocorrido neste dia, 6 de dezembro! Eu me equivocara na data, anotara errado, ou vai ver eles próprios divulgaram errado no dia da prévia. De uma maneira ou de outra, já havia perdido. Porém, nem tudo estava perdido, ou melhor, eu estava prestes a ver algo que transformaria essa aparente perda em um significativo ganho.

No site do Dragão do Mar, bem abaixo das informações referentes ao espetáculo, havia um outro evento que me chamou imediatamente a atenção assim que li um nome: Arrabal. O nome me era familiar, era um escritor espanhol. Tinha um livro dele, comprado há tempos, um romance que trazia uma partida de xadrez como pano de fundo. Um livro que já me conquistou desde a capa, com um ar surreal e instigante. Arrabal estava vindo à Fortaleza. Estava aí uma bela oportunidade que eu não poderia deixar passar.

Minha única referência de Arrabal até então

Refeito pelo ganho desta palestra, apesar da perda do espetáculo, fui no dia seguinte, com meu irmão, Diego Akel, ao Centro Cultural. O encontro com Arrabal estava marcado para as 19h, mas só conseguimos chegar um pouco depois, temendo já ter começado. Felizmente, esse tipo de evento nunca começa na hora marcada, ou por imprevistos, ou por atrasos ou mesmo por ser simplesmente de praxe começar um pouco além da hora. No anfiteatro, já passando das 19:15, algumas pessoas já se achavam sentadas, e nós nos juntamos a elas.

O fluxo de pessoas continuou constante, e já por volta das 19:30, um público considerável já se fazia presente nas fileiras de cadeiras. Eram tipos bem característicos, expressivos, nitidamente pessoas de alguma maneira ligadas às artes cênicas. Comunicativas, falavam, conversavam e gesticulavam entre si o tempo todo. No palco, sob uma indireta luz avermelhada, havia duas poltronas de madeira, elegantemente dispostas. No centro, uma mesinha também de madeira, sobre a qual estava uma jarra d'agua vazia. Instantes depois, ela foi levada e em seguida recolocada, cheia, na mesinha, agora juntamente com uma garrafa de vinho, que imaginei ser talvez uma exigência ou luxo de Arrabal. Em seguida, foi colocada lá ainda uma outra bebida, num copinho plástico. Parecia ser uma espécie de coquetel, mas esta, como eu veria depois, não seria para Arrabal.


Alguns minutos depois, teve início a palestra. Em um primeiro momento, uma das organizadoras explicou em breves palavras um pouco do projeto Memória Viva da Cultura e das Artes, que tornou possível a vinda de Arrabal ao Ceará. A garrafa de vinho foi aberta, e as duas taças servidas, na mesinha. Surgiu então, da lateral do palco, Fernando Arrabal. Eu nunca o havia visto antes, exceto pela foto de divulgação deste evento, então não pude conter o misto de susto e surpresa.

Imagem de divulgação da palestra

Arrabal trajava uma roupa meio oriental, preta, que parecia um quimono, com detalhes dourados, num visual único e característico – na verdade, também me lembrou de alguma maneira o tradicional fardão usado pelos membros da Academia Brasileira de Letras. No rosto, dois óculos; um simples e comum, outro verde, na altura da testa, que reluzia amplamente as luzes do palco. Ainda não sabia, mas este curioso segundo óculos era como uma marca registrada de Arrabal. O intelectual logo bebericou um gole do vinho e postou-se de pé ao lado de uma das cadeiras. Duas outras pessoas, ligadas à UFC, que viabilizou a vinda de Arrabal, falaram brevemente, agradecendo o momento e a presença de todos.



Também surgiu no palco Wilson Coelho, amigo de Arrabal, que seria o mediador da conversa. Antes de mais nada, ele introduziu a si mesmo, falando de sua formação em filosofia, área na qual lecionava, e de como começou sua amizade com o intelectual espanhol. Falou ainda um pouco sobre o que consistiria esse debate com Arrabal, dizendo que ele teria a missão de apresentá-lo ao país como cineasta. Em seguida, mencionou o grau de multiplicidade que há em Arrabal, uma vez que foi amigo de grandes nomes das artes, como Beckett, Duchamp, Warhol, Picasso e Jodorowsky.



Após toda essa introdução, enfim o espanhol foi agraciado com o microfone, mas nos surpreendeu ficando em silêncio. Pelo caminhar da cena, parecia que falar seria a última coisa que ele iria fazer. Arrabal fez vários estranhos movimentos, uma curiosa performance, meio que procurando o que dizer e não encontrando. O público ficou em um misto de graça e surpresa, como se já esperasse aquilo de alguém tão excêntrico.

Inicialmente, Arrabal falou sobre os ditos avatares, os arquétipos das pessoas de hoje, das listas que geralmente eclodem pela mídia, com os mais ricos, mais poderosos etc, em oposição às de ontem, que era o foco do encontro, intitulado "Um sobrevivente dos avatares da modernidade". As pessoas mais poderosas do mundo, por exemplo, são lideradas por Obama, algo que não se pode discutir. Mas e em listas de pessoas influentes e afins, por que a cultura não figura? Como se pode medir a real influência das pessoas que figuram nelas? Segundo Arrabal, esta resposta é bastante nebulosa. O que de fato estaria influenciando a vida das pessoas?

O intelectual teve total liberdade para falar, mas foi difícil entendê-lo perfeitamente, dada a ausência de tradutores. Tudo bem que dava para se entender uma palavra ou outra de seu espanhol, mas às vezes a complexidade dos assuntos fazia desaparecer qualquer entendimento. Ainda assim, era incrível como todos pareciam entender tudo, inclusive rindo sempre das piadas deixadas no ar por ele.



O copo que parecia ser de um coquetel ou alguma bebida típica das imediações do Dragão do Mar, era na verdade de Wilson. Como já estava na metade quando foi ali colocado, deduzi que ele já viera tomando aquilo antes dali. Quando começou a conversa com Arrabal, tratou logo de beber o resto do copinho. Wilson também aprovou o vinho e, após beber rapidamente a primeira taça, encheu logo em seguida a segunda. Comecei a imaginar que aquilo não daria certo.

Arrabal, por sua vez, tinha uma postura muito engraçada, fazendo caras e poses, demonstrando jovialidade. Mostrou ainda não gostar de ficar sentado, uma vez que se levantava sempre para falar. Era comum dar pausas breves e silenciosas, e ficar olhando todos, como que aguardando aprovação pelo que tinha dito. Enquanto seguia o debate, me esforcei para registrar o máximo que consegui em meu bloquinho, o que inclusive foi fundamental para escrever este post.



Observando mais um tempo a pose do intelectual, no alto do palco, percebi que seu par de óculos extra, acima da altura dos olhos, dava-lhe uma aspecto quase de super-héroi. O verde agudo e brilhoso refletia fortemente os holofotes do teto do teatro, e sempre que ele mexia a cabeça, me sentia levemente ofuscado.

Na época da palestra, em dezembro passado, fazia poucos dias do falecimento de Oscar Nieymeier. Wilson relembrou do momento no qual Arrabal quis conhecer o arquiteto brasileiro, em certa vez que foi a Porto Alegre. Wilson contou a história em detalhes. O encontro entre os dois rendeu uma crônica e uma cobertura filmada. E ainda dele nasceu um livro, combinando texto de Arrabal e ilustrações de Nieymeier, livro este que até hoje ainda não foi editado, pois seria preciso a assinatura do arquiteto para seguir o projeto. Wilson finalizou reforçando a emoção não só deste momento mas também de estar relembrando-o justo agora com a morte de Nieymeier.

Wilson relembrou em detalhes o encontro entre Fernando Arrabal e Oscar Nieymeier


Um dos outros temas centrais foram as artes cênicas e seus desdobramentos. Segundo Arrabal, os melhores teatros e dramaturgos do mundo estão em Atenas. E eles próprios, atenienses, ironicamente ou não, não se interessam tanto por isso. Wilson ocasionalmente interpretava algumas de suas palavras, complementando ou pontuando, e eu me desdobrava para anotar o que conseguia de relevante.

Fernando Arrabal também deteve-se bastante falando do coletivo pelo qual ficou bem conhecido, o Panic Movement, ou Teatro Pânico, formado por ele, o cineasta Alejandro Jodoroswky e o ilustrador Roland Torpor em 1962, na França. O nome faz referência ao deus grego Pan, e o grupo se focava na performance artística caótica e surreal, aproveitando a época na qual o surrealismo se tornava uma forte vertente.

Quando se deu este encontro, eu ainda mal conhecia Arrabal, apenas do livro que mencionei, mas nada sabia ainda de sua prolífica criação. Por conta disso, tudo o que foi falado sobre o Teatro Pânico me passou meio ao acaso, sem muita identificação. Para escrever esse post, li alguns artigos, confrontando-os com minhas anotações, conseguindo assim, imagino eu, captar um pouco melhor a atmosfera proposta pelo coletivo.

As composições teatrais do movimento seguiam um caminho bem peculiar, planejadas para serem chocantes e provocativas. Ao invés de ficarem limitados a apenas palavras e gestos, o grupo queria algo mais visceral, grotesco, forte. Tudo para aproximar o espetáculo do espectador, e deixar bem explícita a expressividade do trio, servindo quase como um alerta do sofrimento e angústia que os atormentava.

Segundo o próprio Fernando Arrabal, o Teatro Pânico não era um grupo ou movimento, mas uma "maneira de ser", de acordo com uma ideologia que tinha por alicerce a exaltação da moral múltipla. Alguns dos principais diretores teatrais da época, como Victor García, Georges Vitaly e o próprio Jodorowski se entusiasmaram com a necessidade de se fazer um teatro diferente, inquietante, libertador, que aproximasse o espectador. Boa parte desse grupo de diretores achou na obra de Arrabal um ótimo elo com suas ideias. Deve-se ressaltar que essas inquietações não eram exclusivas do Pânico, uma vez que o dramaturgo Antonin Artaud havia elaborado o Manifesto do Teatro da Crueldade, em 1932, no qual já havia a preocupação com um teatro que atingisse o público diretamente, torturante, de maneira quase física, sem distância entre ator e plateia.

Antonin Artaud, precursor dos ideais seguidos pelo Teatro Pânico (Foto: Google)

O Teatro Pânico, trinta anos depois, fez ecoar as ideias de Artaud, e revelou tantos outros olhares similares. Para Arrabal, o héroi pânico seria algo como um desertor, no qual se mesclam paranóia, megalomania, desespero, fetichismo, modéstia, necrofilia etc. As obras de Arrabal foram carregadas dessas sensações, transmitidas de maneira ousada ao espectador, que ao entrar no teatro não podia se sentar onde quisesse, mas onde o ator lhe indicasse. O espectador estava sempre dentro da peça, era parte orgânica do todo, compartilhando desconfortos, torturas e angústias. Assim era o Teatro Pânico: um choque de conflitos e sensações, de dores e condições, de ousadias e expressões, que convidavam o espectador a sentir diretamente tudo isso. Voltando às palavras de Antoni Artaud: “O teatro não poderá tornar a ser ele próprio, ou seja, constituir um meio de ilusão verdadeira, se não fornecer ao espectador modelos verídicos de sonhos, em que seu apetite pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvajaria, suas quimeras, sua noção utópica de vida e das coisas e seu próprio canibalismo transbordem para um plano que não é suposto nem ilusório, mas interior”.


Alexandro Jodorowski, Fernando Arrabal e Roland Torpor, trio principal formador do Teatro Pânico (Foto: Google)

Retomando ao assunto central da postagem, o Teatro Pânico esteve de uma maneira ou de outra, presente em quase todas as colocações de Fernando Arrabal durante sua palestra no Dragão do Mar. Apesar de neste dia eu ter deixado de entender muita coisa, em contrapartida, fiquei livre para outras percepções, como direi mais a frente.

Algum tempo decorrido, iniciou-se um espaço de perguntas ao espanhol. Muitos falavam em português, e eram traduzidos a Arrabal por Wilson, outros mais exibidos se arriscavam no espanhol, muitas vezes em uma pronúncia errante. Arrabal até entendia as perguntas feitas em português, mas não se atrevia muito a falar o idioma. Uma das questões mais ansiadas pelo público era sobre a relação atual de Arrabal com Jodorowsky, que segundo o próprio Arrabal não era nada tão profundo, eles se falam sempre, mas não tanto quanto todos imaginavam. Concluiu ainda dizendo que o considera uma das pessoas mais inteligentes que conheceu. Segundo Wilson, Jodorowsky é mais espiritual, místico, e Arrabal é mais como uma pedrada. Provavelmente por isso sua obra era tão associada à ideia do Teatro Pânico.

Para Arrabal, artistas em geral não defendem a real vertente de suas ideias

Questionado, em espanhol, sobre o porquê dos múltiplos óculos, disse: todos somos ególotras, ou seja, viciados em si mesmo. Essa é minha maneira de ficar mais bonito. Provavelmente essa não tenha sido a resposta que se esperaria ouvir, mas arrancou algumas boas risadas de todos.

Durante alguns momentos, percebi que Wilson parecia meio grogue, talvez pelo efeito do que bebera. Não sei se foi impressão, mas ele demonstrava um ego um pouco elevado, falando muito de si, quase que usando Arrabal como ponte. O público estranhou: estavam ali primeiramente pela presença do intelectual espanhol. A coisa chegou a tal ponto de Wilson querer assumir as respostas, de perguntas feitas a Arrabal. As pessoas se entreolhavam, conversando entre si, visivelmente chateados e enfadados. Um certo mal estar fora criado. Foi demais. O público, já impaciente, reagiu com gritos. Desconsolado, Wilson cedeu, parecia já bem desorientado pelo álcool, uma vez que a essa altura já tinham sido umas três taças, fora o coquetel que ele entrou tomando.



O clima começou a ficar delicado, apesar do ar cômico que pairava na palestra. Era visível que as organizadoras do evento não aprovavam as atitudes de Wilson, que não deixava Arrabal falar. O espanhol, contrito, não se manifestava. Era comum ouvir coisas como "Deixa o Arrabal falar!", vindo de quando em quando do público.

Assim se seguiu a palestra, e nesse momento minha atenção pouco captava o que era dito, mas mais o ambiente em si. Wilson, agora nitidamente embriagado, já se perdia em suas palavras, e misturava e confundia temas e assuntos, mas como citava o nome de Arrabal em cada frase era rapidamente engolido pelo vozerio do público, que só se calava quando o espanhol assumia a palavra.

Me esforcei para entender o máximo possível de suas palavras, e ainda transcrevê-las para o papel, mas bastava uma sentença mais enrolada para que eu me perdesse completamente no assunto, o que invariavelmente acabou desviando minha atenção para outras coisas, como a avidez com que Wilson bebericava o vinho.





O que está influenciando a vida das pessoas? Esta notória pergunta foi claramente ouvida, mas a resposta não. A língua de Arrabal articulou uma dezena de palavras que não consegui entender. Olhei para Diego, a meu lado, mas ele também não entendera. À nossa volta, todo o resto do público parecia ter entendido, e esse foi mais uma daqueles momentos no qual todos entendem, e até riem. Seria possível? Fico pensando quantos fingem entender e rir só para não se sentirem excluídos.

Pois bem, às 21:00, encerrava-se a sessão. Arrabal agradeceu e choveram aplausos sequenciais, inclusive com o público de pé, por minutos, em uma cena de nítido respeito e admiração. Wilson ainda tentou falar alguma coisa nessa hora mas sorveu em meio a salva de palmas. Ele logo desapareceu atrás do palco, achamos até que tinha caído ou algo assim, mas depois reapareceu, bastante trôpego, chegando até a derrubar o microfone, e se comunicando aos gritos com as organizadoras, para lembrá-las de falar da programação do dia seguinte.

As pessoas começaram a deixar a sala, enquanto Arrabal posava para fotos. As organizadoras do evento convidaram o público para se juntar a ele, e boa parte dos que ainda estavam no local subiram ao palco. Dezenas de pessoas se misturaram ao intelectual espanhol, gerando um clima muito descontraído e fraternal. Eu e Diego permanecemos sentados, de onde fiz mais algumas fotos.



Acompanhamos um pouco o clima de descontração presente após a formalidade, com Arrabal recebendo muito cumprimentos, e deixamos a sala. Como não poderia ser diferente, essa palestra ficou bastante tempo em minha cabeça. Independente de eu ter assimilado tudo o que foi debatido, me senti bastante realizado, simplesmente por ter podido assistir àquele momento. Posso dizer até que o que mais me chamou a atenção a princípio, ironicamente, foi o embaraço causado pelo aparente exagero na bebida de Wilson, por uma série de razões: a quebra do protocolo, da formalidade, que de repente se instalou no palco, as pessoas comentando, a organização idem. Nos momentos finais, foi quase como se Arrabal e Wilson estivessem contracenando no palco; o primeiro impassível, não movia um músculo, o segundo cambaleava, tentando manter o controle sobre si mesmo. A interferência do público, em forma de gritos e protestos, se tornou parte desse espetáculo inesperado, e agora vejo que ali acabou se formando algo bem à la Teatro Pânico. Para mim, sem dúvida, esse imprevisto, apesar de rapidamente superado no final, roubou literalmente a cena da palestra.

A interação do público por meio de gritos, e o comportamento de Wilson fizeram ecoar elementos do Teatro Pânico na palestra

Não sou um profundo conhecedor de teatro, como muitos ali pareciam ser (ou queriam aparentar ser), mas a ocasião desta palestra, sobretudo, me incitou a curiosidade de querer saber mais sobre Fernando Arrabal e o tão falado Teatro Pânico, algo que consegui realizar para escrever este texto. Uma das coisas mais bacanas que percebi no intelectual espanhol, é que ele está sempre revolucionando, sempre se perguntando e questionando o que é dito como verdade. Conversei bastante com meu irmão, nos dias seguintes, e percebemos que esta questão dos avatares, que é imposta hoje em dia no mundo de maneira quase cega, é duvidosa, principalmente quando se chega aos ditos mais influentes. As listas que buscam classificar a ordem de importância ou valor das pessoas, no fundo, são vazias, nada significam. Podemos não ter chegado ao cerne do pensamento exposto por Arrabal, mas vimos que devemos desmistificar conceitos, certezas, expor novas diretrizes de pensamento. Como Wilson disse, já ao final da palestra, é preciso "arrabalizar", ou seja, agir com ímpeto, foco, sem desvios, como uma pedrada. Com toda essa reflexão, não posso deixar de considerar o próprio Fernando Arrabal como um excelente avatar. E numa lista de pessoas mais bonitas, provavelmente ele se sairia bem, pelo menos por conta de seus múltiplos óculos.


A garrafa de vinho, que teve participação decisiva na palestra, não poderia faltar na foto

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Bienal do Livro do Ceará 2012 - III (Márcia Tiburi)



Fotos e vídeo: Denis Akel

Enfim, e antes tarde do que nunca, fechando as postagens referentes à X Bienal Internacional do Livro, ocorrida ano passado, agora falarei um pouco sobre a participação da escritora e filósofa Márcia Tiburi, um dos destaques da atração (quase tanto quanto as apresentações musicais). O encontro aconteceu no penúltimo dia de bienal, no sábado, 17 de novembro.

Não tenho nenhum livro de Márcia, mas já li alguns de seus artigos, como também assisti a algumas de suas palestras em programas como o Café Filosófico. Suas palavras expõem o comportamento e pensar humano com grande personalidade, além de certa rebeldia, transformando e instigando a mente. Assim, quando soube que ela estaria presente nesta edição da Bienal, não pude deixar de agarrar essa grande oportunidade.

Ao contrário de como foi com Ignácio de Loyola Brandão, não foi difícil localizar a sala onde ocorreria a palestra de Márcia. A maioria das pessoas com as quais cruzei no caminho também estavam indo para lá. O auditório estava já bastante lotado, e novamente tive de pegar um lugar mais atrás de onde gostaria. Uma vez sentado, tratei logo de pegar minha caderneta, onde passaria a anotar os trechos mais marcantes da palestra, os quais tentarei repassar ao longo da postagem.

O mediador, após uma estabilidade da entrada de pessoas, iniciou a conversa, falando algumas palavras introdutórias sobre a autora, e em seguida lhe cedendo a palavra, sob fortes e ruidosos aplausos. Márcia Tiburi abriu a palestra pedindo desculpa pelo atraso (prevista para as 15:00, começou só às 15:30). Ela se justificou, mencionando a falta de comunicação por parte da equipe da bienal, que não entrou em contato. Os minutos se passaram, o horário marcado se aproximava, e nenhuma comunicação. Preocupada, não soube o que fazer. Viu vans na porta do hotel, pensou ser para ela, mas não eram. Acabou sendo obrigada a tomar um táxi por sua conta, para chegar logo ao centro de eventos, ou perderia ainda mais a hora.

O público aplaudiu a sinceridade e coragem de Márcia ao revelar estes fatos tão inesperados. Não lembro, porém, de depois ter havido alguma explicação do porquê dessa falha de comunicação. Uma situação vergonhosa, devo dizer, para receber uma pessoa que se dispôs a vir dar a palestra e logo depois já voltaria para sua cidade, São Paulo, onde já teria outra palestra.

Márcia começou expondo alguns conceitos que diferenciam a literatura da filosofia, apesar da grande cooperação que há entre as duas áreas. Segundo a autora, a filosofia consegue ter uma proposta educacional maior que a literatura, uma vez que a literatura é tão pouco valorizada no Brasil. Contudo, ela diz que filosofia não pode ser ensinada ou transmitida às massas. Há um grande desinteresse geral, e para ela o melhor público para falar sobre são mesmo seus alunos, bem como estudantes realmente interessados.

Um dos momentos mais curiosos do debate foi quando ela falou dos típicos frequentadores de shopping centers, pessoas com hábitos compulsivos de comprar, muitas vezes coisas supérfluas, que nunca serão usadas, e de como as pessoas podem gastar tanto tempo em tais atividades, repetidas vezes até. Foi uma crítica um tanto severa até, uma vez que generalizou demais o público que costuma frequentar esse tipo de ambiente, porque nem todos são realmente assim "cegos" como ela afirmou. Inclusive, na hora das perguntas do público, um professor que assistia da plateia, contestou esta questão, alegando que as pessoas que segundo Márcia estavam perdidas, comprando inutilidades, poderiam mesmo assim estar se sentindo felizes e realizadas, que não se podia julgá-las ou condená-las por tais atos, afinal, se isso as fazia se sentir bem, felizes, tinham mais era que seguir esse ideal. As ideias deste professor serviram como lenha na fogueira, gerando um ótimo debate, e fez Márcia ponderar tais questões. Os dois trocaram mais algumas palavras, com o professor compartilhando em alguns detalhes o ponto de vista de Márcia, que o chamou de colega.

O vídeo abaixo, apesar do áudio precário, retrata alguns destes e de outros momentos:


As festas de natal e ano-novo também foram alvo de algumas de suas críticas. Da típica troca de presentes familiar ao puro comercialismo promovido pela mídia, Márcia pontuou tudo como uma grande falsidade, na qual se perde o real sentido da comemoração e visa-se apenas o bem material, ou ainda, agradar ou desagradar alguém, meramente por interesse. Concordo com ela, afinal é bem isso que datas como essa representam para muitos de nós, sufocados pela febre do consumismo. 

Ela então falou como começou seus estudos, de seu gosto por poesia, que sempre lhe fez encher vários cadernos com textos e mais textos em sua adolescência. Sua paixão pela escrita a levaria a se enveredar completamente no mundo literário, no qual busca uma realidade. Além de prosa, a autoria viria a escrever  contos, crônicas, crítica, poesia, romance, mesmo inicialmente não se sentindo capaz de tantos desdobramentos. Comentou não gostar de romances (apesar de ter passado a escrevê-los), uma vez que não gosta da sua estrutura tradicional, a qual comparou a "contar historinhas pra dormir". Depois que passou a escrever literatura, mudou sua maneira de escrever filosofia, que se tornou mais selvagem, mais intensa. Nas palavras dela, literatura e filosofia juntas constituem o universo da linguagem. 

Quanto ao ato de publicar, ao sentido legítimo da publicação, Márcia foi precisa: "percebe-se que não se está sozinho, apesar de literatura ser um ato solitário". Concluindo seu pensamento, ela disse que literatura não tem lugar no Brasil, e que exercê-la por aqui só mesmo por puro amor, uma vez que há pouco rendimento financeiro. Ainda sobre o ato da escrita, a autora citou uma frase de Lobo Antunes: escrever é deixar de atrapalhar os outros. Quanto a seus livros favoritos, ela não citou nenhum em específico, disse gostar de ler livros difíceis, que a façam ler de novo, pois assim passa a aprender e conhecer coisas que desconhece. Condenou ainda quem lê muitos livros rapidamente, dizendo que assim não se retém muito conteúdo. Márcia Tiburi disse também que não quer ser reconhecida por se aproximar de nomes como Machado de Assis, mas sim unicamente por sua selvageria e ousadia no texto.

Sobre internet, a autora disse que é um ótimo local para se fazer guerrilha literária e filosófica, uma vez que pessoas nas redes sociais têm falta de combatividade, e são facilmente suscetíveis a textos e conteúdos. Segundo ela, o ser humano de hoje é preguiçoso, ausente de reflexão, e por isso a filosofia deve ser usada de todas as formas possíveis, respeitando a vontade de quem faz, para assim desmistificá-la. 

Um outro tema levantado foi o poder tudo que este traz consigo. Será que o poder é realmente o que achamos que é? Para Márcia, o poder é ruim, pois gera violência, caos, situações ruins e desagradáveis. Para ela, estudantes têm de ser desobedientes, ir contra o poder. A escritora se diz desobediente, e ser feliz assim. Concluiu essa parte dizendo que os obedientes gostam do poder, e são devorados por ele. 

Por parte da plateia, veio ainda um dos melhores comentários da ocasião, quiçá de todo o evento. "Deveriam distribuir um livro para cada pessoa que espera nas filas de shows da Bienal, assim o evento seria bem melhor". O autor da sentença, Ramon, foi largamente aplaudido por todos, inclusive por Márcia, que achou isso genial. Ramon, após todos se acalmarem, agradeceu e elogiou Márcia, dizendo ouvir música em suas palavras. Com certeza, se essa ideia vingasse, a Bienal do Livro seria muito mais do livro do que da música. 

Longe de mim querer julgar, mas preciso apontar também alguns pontos que me desagradaram um pouco. Apesar de tantos momentos interessantes e propensos à reflexão, a escritora também pareceu demonstrar um pouco de arrogância em alguns pontos da conversa, como que julgando muito sem conhecer exatamente sobre o que falava. Ao falar de livros e leituras, deu a entender que só o seu gosto prevalecia, criticando e condenando severamente as pessoas só porque liam determinado livro. Ora, mas se essa ou aquela leitura fazem alguém feliz, o que há de mal nisso? Era evidente sua personalidade forte, que se transmitia neste modo de pensar. Ao menos não lhe faltava sinceridade, apesar de às vezes ela ter soado meio como um 'personagem', principalmente ao fazer algumas piadinhas típicas e quase bobas.

Próximo ao final, Márcia comentou que, para se sentir diferente, fugir da mesma direção, ultimamente tem aplicado em sua vida a política do "pensar ao contrário", que consiste em inverter a lógica das coisas, quebrar o óbvio. Essa conduta, segundo ela, a leva a relevar algumas trivialidades da vida, em atitudes comuns como receber o troco de alguma compra, ou querer que algo saia exatamente como o planejado. Assim, ela se liberta um pouco de tanta obrigação de ter de fazer tudo sempre certo e perfeito, uma rebeldia justificada pela quebra da monotonia. Esse modo de pensar, inclusive, é bem interessante, pois nos faz aprender a ver o lado bom de tudo. Há uma ideia similar num livro do autor Paul Arden, do qual falarei aqui em breve.

Abaixo, mais algumas frases e colocações marcantes da autora, ditas durante a palestra:

"Cada livro é uma aventura. Aventura para quem escreve e aventura para quem lê"

"Será que a gente escreve para ficar sozinho ou fica sozinho para escrever?"

"Ler um livro também é um esporte radical"

"Filosofia para mim é uma exposição de pensamento, tal como literatura"

"As pessoas devem fazer o que quiserem pois assim tudo vale a pena"

"Filosofia não pode ser guardada. Um livro de filosofia já é por si só um paradoxo"

"Devemos nos dar conta de que existimos, e do quão louca é essa existência, pois somos todos, antes de tudo, animais"

"Não é tão preciso estudar os filósofos para saber filosofia. Basta haver uma experiência de diálogo, de troca, de pensar junto"

Ao final, a plateia manifestou-se em efusivos aplausos, aos quais Márcia respondeu com sorrisos. Em seguida, ela se dirigiu para uma mesinha à entrada da sala, onde já havia desde o início uma pilha de seus livros. Uma fila de pessoas rapidamente se formou à sua frente. Estava iniciada uma breve sessão de autógrafos. Acompanhei de perto a movimentação, o entusiasmo das pessoas, ao cumprimentá-la, e ter seu livro autografado. Márcia parecia retribuir muito bem o carinho dos fãs:







Enquanto observava o momento do autógrafo, e fazia essas fotos, não pude deixar de lembrar da Bienal de 2010, de momentos similares, onde escritores como Pedro Bandeira e Ziraldo autografaram suas obras. Perceber essa atmosfera, de reconhecimento, prestígio e honra é sempre gratificante, e faz repensar bastante sobre o rumo cultural de nosso país, onde a literatura ainda tem tão pouco espaço. 

Pensei em entrar na fila para falar com ela, agradecê-la pelas palavras, mas acabei não fazendo isso; havia ainda alguns expositores que gostaria de visitar antes do fim do dia, que já era o penúltimo da Bienal. Espero através desta postagem ter podido expressar meu agradecimento. Márcia não demorou muito a cumprimentar todas as pessoas da fila e logo em seguida deixou o centro de eventos, já rumo ao aeroporto, como ela dissera, de onde já iria para outra palestra, em São Paulo.

Sem dúvida, foi para mim um dos melhores momentos desta bienal. O relacionamento de Márcia com a filosofia e literatura gerou ideias muito distintas, que buscaram desmistificar o conceito e utilização de ambas as áreas. Ficou evidente o estreitamento que há entre elas, e como uma pode fazer bem à outra. Também foi uma boa introdução às etapas necessárias para se publicar um livro, um processo demorado, que muitos que desejam ser escritores ainda desconhecessem. Márcia foi bem no cerne da questão, mostrando que literatura precisa ser, antes de tudo, feita com amor, para assim poder se pensar em algum retorno financeiro, no decorrer de uma longa estrada, em se tratando de nosso país. Uma palestra rica de conteúdo, que como qualquer outra teve seus altos e baixos e divergências de opiniões, mas semeou uma interessante e selvagem visão do mundo, descomplicando e integrando o universo da linguagem de uma maneira bem peculiar. 

Para finalizar, deixo a colocação final feita por ela: "O mundo é um livro e a gente segue lendo o que puder"

Esta postagem deveria ter sido publicada antes, mas por motivos pessoais, só pude finalizá-la agora.  Apesar do tempo passado, o foco da palestra de Márcia Tiburi é atemporal, e continua fortemente em evidência. Obrigado a todos que leram minhas postagens referentes à X Bienal Internacional do Livro do Ceará, e a todos envolvidos em sua produção!



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Livro: Doze horas de terror



A série Vaga-Lume foi (e talvez ainda seja) uma das grandes responsáveis por incitar o hábito da leitura em muita gente, em especial a faixa jovem, a partir da década de 1970. Uma porta inicial de acesso ao fascinante mundo da leitura, à descoberta desse caminho tão mágico, que acontece de maneira tão peculiar e própria para cada pessoa. As obras sempre apresentavam enredos instigantes, muito bem desenvolvidos por grandes nomes de nossa literatura. Um dos livros, inclusive, que considero grande incentivador por me motivar a gostar e querer escrever é da própria Vaga-Lume, Spharion, mas deixarei para falar dele em outra oportunidade. O livro em questão neste post é Doze Horas de Terror, de Marcos Rey.

Encontrei-o ao acaso, em um sebo, por dois reais. Já havia lido clássicos de Rey como O Rapto do Garoto de Ouro e O Mistério do Cinco Estrelas, então não pude deixar de agarrar mais essa oportunidade, apesar do estado lastimável em que o livro se encontrava. Assim, foi direto para o local da estante onde costumo guardar livros mais antigos, lá ficando indefinidamente.

Resolvi então, esses dias, fazer uma leitura mais livre, mais solta, e esse livrinho de Marcos Rey foi exatamente o primeiro que me veio em mente, à medida que me lembrei dos demais livros da Vaga-Lume e do que havia comprado recentemente. Sem delongas, resolvi lê-lo.

Imagino que para muita gente, a primeira impressão que se tem, ao olhar para um livro da série Vaga-Lume, é rotulá-lo apenas como um mero livro infanto-juvenil, um livro menor, ou sem muito valor, ou ainda, limitado. Acho tudo isso uma grande bobagem, a começar por esses rótulos, infanto juvenil é um termo que por si só já limita o alcance de qualquer obra, cega e impossibilita de se enxergar ali mais do que se imagina encontrar. Claro que não dá também para fugir deles, uma vez que nossa sociedade é quase que totalmente baseada em rótulos, mas acredito que livros vão bem mais além disso.

Disposto a me deixar levar pela boa história que certamente ali se achava, comecei a ler o livrinho. A trama gira em torno de Júlio, um rapaz que chega a São Paulo para trabalhar, vindo do interior, divide um apartamento com o irmão, Miguel, e tenta se acostumar ao ritmo acelerado e denso da cidade grande. Os dois quase não se encontram, uma vez que trabalham em horários diferentes. Os dias se passaram normalmente, até que certa vez, ao voltar para casa, Júlio se depara com o apartamento totalmente revirado. Logo em seguida, é surpreendido por um telefonema. Uma voz feminina, que ele nunca ouviu antes. Daí inicia-se o fio condutor da trama, com a entrada de Ruth, uma moça que põe Júlio a par dos negócios excusos em que seu irmão andou se envolvendo. Juntos, ele e Ruth descobrirão que não será fácil se livrar de uma perigosa quadrilha de traficantes. 

Até esse ponto, o enredo talvez não chame muito a atenção, mas é a maneira como a história se desenrola que achei o grande destaque do livro. Cada capítulo é nomeado por uma hora, de modo que acompanhamos ininterruptamente os passos dos protagonistas. Toda a trama, da primeira à última de suas 128 páginas, acontece em apenas um dia, mais precisamente nas dozes horas que lhe servem de título. Isso dá um fôlego incrível às sequências, pois a passagem de tempo tem papel crucial na narrativa, ora limitando, ora favorecendo sua evolução.



O texto de Marcos Rey é simples, rápido e preciso, com uma ótima descrição e narração, criando cenários e cenas maestralmente, cativando o leitor. O trecho da briga entre o "jacaré" e o "louva-a-deus" é genial. Há ainda sutis toques de humor e boas doses de suspense permeados em quase todas as páginas, fazendo a leitura se renovar constantemente, a cada novo detalhe, a cada 'hora' passada.



Talvez não tenha o mesmo brilho de outros livros do autor, como O Mistério do Cinco Estrelas, mas é com certeza uma história digna de seu nome, que traz ainda um certo ar nostálgico, por ser uma das últimas obras escritas por Marcos Rey, antes de seu falecimento em 1999. Nela, como em quase a totalidade de seus textos, temos ainda a força da cidade de São Paulo como personagem maior, como via condutora de todos os fatos, como palco ou set de filmagem, no qual o escritor exprime livremente sua visão, alimentada pela cidade onde passou a maior parte de sua vida.




Um outro elemento característico da série Vaga-Lume, que também está presente neste livro, é o estilo clássico de suas capas, bem como as ilustrações. As primeiras edições, como esta mostrada aqui, são verdadeiros retratos de sua época, e apenas o folhear de uma dessas edições históricas já é por si só uma bela volta ao passado, um passado onde parecia havia uma certa inocência, uma maior valorização da imagem, que casou perfeitamente na unidade do texto.



Por fim, retomando a questão do livro infanto-juvenil não ter muita voz ou alcance, reforço minha opinião mencionando o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que comentou na IX Bienal do Livro aqui de Fortaleza que suas primeiras referências literárias são obras de Andersen, como O Patinho Feio, obras não tão agraciadas e sinônimos de intelectualismo, como Joyce ou Proust. Ou seja, tudo pode ser referência, tudo pode inspirar, despertar, basta apenas a pessoa saber olhar. Esse 'preconceito' em desmerecer esse ou outro livro apenas pelo público ao qual ele é inicialmente dirigido é que é o problema. A escritora Marina Colasanti é outra que partilha esse ponto de vista, ao comentar certa vez que escreve do mesmo jeito, tanto para adultos como crianças.

As obras da coleção Vaga-Lume têm a missão de ser quase como "degraus" de uma escada, os primeiros passos para o conhecimento posterior de outros livros e autores, mas isso não quer dizer que elas não sejam ricas e profundas. Muito pelo contrário, pois se – na maioria dos casos – são as primeiras leituras de alguém, maior é a chance de se tornarem eternas, fortes, sempre nas lembranças de saudosas leituras, de bons momentos vividos. Doze Horas de Terror é certamente um livro capaz de reunir tudo isso e muito mais. 


Outras obras de Marcos Rey que também se destacaram na coleção Vaga-Lume.

Só lembrando que hoje em dia os livros de Marcos Rey estão fora da Vaga-Lume, então é procurar em sebos pelas edições clássicas, ou recorrer à editora Global, que o edita atualmente, em edições, digamos, bem mais sem sal (por parte das ilustrações de capa e miolo).

domingo, 27 de janeiro de 2013

Bienal do Livro do Ceará (II - Ignácio de Loyola Brandão)


Fotos e vídeos: Denis Akel e Diego Akel

Quando vi o nome de Ignácio de Loyola Brandão na lista dos convidados para essa Bienal, de cara já me empolguei com o evento. Loyola é um autor que admiro bastante, mesmo ainda tendo lido muito pouco de sua obra; apenas contos e crônicas, mas já me identificando, inclusive em um período onde ainda estava por descobrir meu gosto pela escrita. Contos como O homem cuja orelha cresceu e O homem que procurava a máquina, me impressionaram, e hoje vejo bem o porquê. Além disso, a própria maneira de Loyola falar, em entrevistas, aumentava minha identificação com ele, e com a literatura em si. Era algo parecido com o que sentia sempre que ouvia ou lia Moacyr Scliar.

A palestra estava marcada para as 17:00 do sábado, 11 de novembro. Fui, dessa vez acompanhado por meu irmão Diego Akel. Chegamos ao Centro de Eventos já um pouco atrasados, e temi que já tivesse começado, mas ao chegar lá, porém, percebi que não trouxera a programação ou memorizara o nome da sala onde aconteceria. Como encontrá-la? Não parecia nada complicado, uma vez que havia muita gente da organização no balcão de recepção, mas não foi assim tão simples.

Falamos com os receptivos, que se mostraram bastante despreparados, com dificuldade de nos darem as informações devidas – sequer entenderam quando pronunciei o nome do escritor. Para completar, não havia nenhum folheto da programação por perto (seria útil para localizar o nome e local). Acabaram por nos mandar ao primeiro andar, para procurar alguém de lá para nos dar essa informação. No caminho, imaginei que provavelmente àquela hora Loyola já estaria com a palavra. A situação no primeiro andar não foi muito diferente, no que diz respeito à dificuldade de informação, mas pelo menos lá o nome do escritor foi entendido rapidamente. Após algumas consultas em um guia, que parecia exclusivo aos receptivos, a moça com quem falamos nos orientou até a sala. Não foi difícil de achar, após essa instrução.

Seguimos em meio a um extenso corredor. Havia uma porta entreaberta, onde parecia se concentrar um grande fluxo de pessoas. Era ali. Espichei o rosto para dentro e vi dezenas de cadeiras preenchendo o interior da sala. Logo à entrada, uma mulher nos cumprimentou, falando sobre a palestra que  – para meu alívio – ainda não tinha começado. Não sabíamos quem era ela, mas parecia ter alguma influência, ou mesmo cargo, na produção. Reforçando essa ideia, ela nos contou que ao final da palestra haveria uma apresentação teatral, uma adaptação de uma das obras de Loyola. Falou bastante sobre o espetáculo, e mesmo ansiosos para entrar logo na sala, a ouvimos com atenção. A apresentação seria uma prévia, que aproveitaria a presença do autor para ser divulgada. A versão completa seria encenada no dia 7 de dezembro, no Dragão do Mar. De posse de todas essas informações, enfim entramos no auditório. Todos os lugares frontais estavam ocupados, nos fazendo seguir para as cadeiras mais ao fundo. Ignácio de Loyola Brandão já estava presente no local, e bem visível, sentado entre as pessoas, bem perto de onde ficamos. Calmo e sereno, o escritor transmitia tranquilidade.

Havia bem à frente, em uma espécie de palanque, a mesa que receberia o escritor. Nela, um homem, que devia ser o mediador da conversa, lia algum texto de Loyola. Ao final, chamou o escritor que, sob uma salva de palmas, caminhou até o palco.

A palestra foi muito reveladora, Loyola contou, brevemente, um pouco de como começou sua carreira. O escritor começou relembrando uma professora que teve, que lhe foi muito especial, por ter-lhe ensinado a ler e escrever, sobretudo o gosto pela escrita. O autor disse ainda que ela está viva até hoje, e ele, nos seus 76 anos, ainda conversa com ela, sempre que pode. Relembrou também que ela dizia sempre, nas aulas de redação, que criassem o que quiserem, que escrevessem o que quiserem, nada é absurdo. Esse tipo de liberdade lhe deu os alicerces que o fizeram até hoje como escritor.

Ainda sobre início de carreira, falou de como a profissão de jornalista foi importante para difini-lo como escritor. Disse ainda que os jornalistas precisam correr, buscar, aquilo que não é dito, aquilo que é escondido. Este é o trabalho do jornalista.



Contou muitas histórias, explanando situações e vivências, com um jeito característico, fazendo breves pausas entre as palavras, transmitindo muito bem o peso de cada uma delas. Era quase como se narrasse um conto ali, durante a palestra. Tal ação, excelência com a palavra, chamava a atenção da plateia, que ouvia em silêncio, cativada. Em uma das histórias, falou de um ipê, muito bonito e vistoso, que tinha o hábito de observar todos os dias. Até que percebeu que ele vinha ficando mais fraco e sem vida, e curiosamente via uma senhora o regando todos os dias. O ipê acabou por morrer. Loyola fez uma averiguação. A tal mulher matara o ipê. O motivo? Ele sujava sua calçada com suas folhas. Ela não o regava por bondade, mas para acabar com ele, em uma engenhosa artimanha para não despertar suspeitas. Essa história ilustrou bem como o ato de observar fatos do dia a dia podem revelar histórias surpreendentes.

O escritor comentou que as ideias para criar suas histórias vêm muito de imagens, uma vez que sua formação tem muita coisa de cinema. Quando uma dessas imagens fica em sua cabeça, sabe que é hora de escrever. Falou bastante, também, sobre um baú onde guarda recortes de matérias suas que não puderam ser publicadas na época, agora fonte de inspiração para livros e crônicas.

Alguém certa hora perguntou sobre seus autores e obras preferidas, uma pergunta bem recorrente quando se  tem um escritor palestrando. Loyola inicialmente foi contra a maré, falando de autores e obras que muitos talvez não esperassem ouvir. Disse que O Patinho Feio, Robinson Crusoé, entre outros, o marcaram bem mais que os autores típicos, sinônimos de intelectualismo, como Machado de Assis ou José de Alencar. Não os descartou, mas sua resposta mostra que obras consideradas pequenas ou infantis podem ter muito a dizer, se a pessoa souber enxergar. Ainda sobre obras preferidas, citou Ulysses, de Joyce. Meio que complementando essa reposta, em outro trecho da conversa, Loyola disse não se apegar a semiótica ou outros conceitos formais. Os respeita, mas sempre gostou simplesmente de contar histórias.

Uma de suas obras mais comentadas na ocasião foi Não Verás País Nenhum (que era também a que estava sendo adaptada para o teatro). O escritor contou como surgiu a ideia para a história, a partir do "furo na mão". Foi simples, estava certo dia em sua mesa, e desenhou, ao acaso, um furo na mão com uma caneta. Um amigo que passava por ali então lhe perguntou: "O que é isso, Ignácio, um furo na mão?" E ele respondeu, aproveitando-se da situação: "É". Nascia aí a questão que era abordada no livro, a questão do ser diferente, e dessa diferença incomodar um certo sistema.



Em certo momento, uma mulher, professora, se levantou, para perguntar, e disse que ele provavelmente não se lembraria dela, mas que ela o conheceu em Ocara, em uma visita que o escritor fez anos atrás. Ela disse que tinha ficado muito feliz com a maneira como ele se relacionou com as pessoas da região, que todos tinham gostado muito dele, que o achou uma pessoa muito simples, apesar de ser um escritor renomado. Ela completou dizendo que sempre quis comentar como esse fato a deixou marcada, bem como a todos da comunidade. Loyola falou, enternecido, que lembra bem desse episódio, e que gostou muito de ter conhecido tudo aquilo. Disse ainda que uma senhora de Ocara chegou para ele com um presente, de forma muito humilde. Um vidro de mel. A senhora disse que o mel tinha uma procedência especial, feito em sua própria casa. Loyola disse, para o público, que aquele foi o melhor mel que já provou em toda sua vida. O episódio o marcou tanto que seu próximo livro se chamará O Mel de Ocara.

Um dos momentos mais curiosos e destacáveis, ao menos para mim, foi quando Loyola falou de seu livro Veia Bailarina, um relato autobiográfico, que embora com elegante e poético título, nasceu de uma situação ameaçadora; a descoberta de um aneurisma cerebral, em 1996. Ele explicou tudo. Era uma cirurgia delicada. Nas palavras do escritor: "...uma granada dentro de minha cabeça, que podia explodir a qualquer momento". Felizmente, foi diagnosticado a tempo, e venceu essa barreira da vida, mas sempre, antes e depois do tratamento, avaliou sua vida, refletindo erros e acertos. Contudo, desde o início o nome "veia bailarina", a que os médicos chamam o aneurisma, fascinou o escritor. Como um termo tão belo e dançante poderia fazer parte do seco e sério vocabulário médico? Ao final, Loyola resolveu publicar o livro, extraindo dessa experiência uma lição elementar e fundamental, a redescoberta da vida. Não poderia haver título melhor, pois, do que Veia Bailarina.

Quando indagadado sobre fatos e detalhes do livro Bebel que a Cidade Comeu, Loyola disse não gostar de falar sobre o que acontece em seus livros. Que o leitor precisa pensar também, precisa ele próprio raciocinar sobre o que acontece. Já perto do fim, Loyola deu um conselho valoroso aos novos escritores: estejam atentos ao mundo, ao que acontece à volta de vocês, no dia a dia.

Pensei em fazer uma pergunta, na verdade não bem uma pergunta típica, mas pedir a ele que falasse um pouco sobre Moacyr Scliar, uma vez que sei que eram grande amigos. Antes que pudesse me dar conta, porém, o bloco de perguntas já estava para ser finalizado, e esse meu comentário teria de ficar para uma outra vez. A última pergunta foi se Loyola acredita em teorias da conspiração. O escritor foi novamente direto em sua resposta, ao dizer que tem coisas mais importantes com que se preocupar.

E então, sob uma prolongada salva de palmas, Ignácio de Loyola Brandão deixa a bancada da palestra, retornando para sua cadeira, do lado da qual aguardava sua esposa. Logo em seguida, o palco é rapidamente preparado, saindo a mesa e entrando muitas pessoas, o elenco da peça, a adaptação da obra Não Verás País Nenhum, a prévia do espetáculo. Os atores tomaram suas posições, devidamente caracterizados, enquanto uma banda assumiu, ao fundo, uma poderosa trilha sonora. Para uma amostra, até que a encenação foi surpreendente. A atuação dos atores era bem verossímil, com um texto forte e pungente. Não pretendia ficar além da palestra, mas me vi quase hipnotizado pela peça (apesar da má acústica da sala ter prejudicado algumas falas), e assim meia hora passou-se num sopro. Ainda não conhecia a obra em questão, mas com certeza após essa breve encenação irei procurá-la em um momento futuro. Mais grandes aplausos, em agradecimento aos atores, fecharam a programação. Loyola levantou-se, recebeu ainda o carinho de algumas pessoas, que se dirigiam a ele, enquanto o contigente maior deixava a sala. Dei uma última olhada no escritor, nas pessoas ali presentes, nos atores do espetáculo, e deixei também o auditório, bastante realizado.

Atores encantam público com bela prévia do espetáculo Não Verás País Nenhum 

Essa foi uma daquelas palestras onde ficamos, de alguma maneira, com tudo o que foi dito ainda na cabeça, mesmo com dias passados. Mesmo agora, meses depois, escrevendo sobre ela, ainda a tenho viva nas lembranças, e é justamente para prolongar mais essa sensação que resolvi escrever aqui um pouco sobre este momento. Quanto à encenação completa de Não Verás País Nenhum, ainda tentei ir, mas não consegui, como contarei em um post futuro. Ainda sobre a Bienal do Livro do Ceará 2012, postarei em breve comentários sobre a palestra da escritora Márcia Tiburi, que também tive o prazer de assistir.