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"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 - (II - Mesa: Infância e memórias)


Fotos: Denis Akel

Após a extensa postagem anterior, na qual falei em detalhes de minhas vivências e impressões da XI Bienal Internacional do Livro do Ceará, agora comentarei brevemente sobre algumas das mesas e palestras que pude assistir, ao longo do evento. Para começar, a mesa Infância e memórias, que foi a primeira a me chamar a atenção, por trazer a participação do escritor Milton Hatoum. 

Milton Hatoum, escritor amazonense com descendência libanesa, foi um dos homenageados desta edição da Bienal, ao lado do contista Moreira Campos e do poeta Antonio Girão Barroso. Milton fez ainda a conferência de abertura do evento, a qual infelizmente não pude ir. Para minha satisfação, o escritor ainda estaria presente em duas mesas, das quais esta e mais uma, tema de uma futura postagem desta série.

Ainda não tive oportunidade de ler Milton, sequer tenho nenhum de seus livros, mas já o conheço um pouco, de entrevistas e participações em outros eventos literários, como a FLIP e a Fliporto. Por ser um dos autores contemporâneos de grande expressividade (e também por simpatizar com seu lado libanês, pois também tenho um pouco dessa descendência) senti que deveria aproveitar essa oportunidade, abraçando essas duas palestras, uma vez que já perdera a abertura. 

Pelo título desta primeira mesa, Infância e memórias, imaginei que estes dois temas seriam amplamente explorados por Milton e os demais que a compunham. Temas, inclusive, que têm me fascinado bastante ultimamente, na figura de recordações da infância, memórias que guardamos muito bem e que volta e meia retornam com tanta intensidade que nos sentimos quase perdidos, desorientados, em contraponto à vida atual. É um tema, ainda, do qual tenho trabalhado bastante em meus escritos, de tal forma que essa palestra certamente muito me ensinaria. 

A mesa era composta por Milton Hatoum, Carlos Augusto Viana e Fernanda Coutinho, com a mediação ficando a cargo de Aila Sampaio. Sendo sincero, esses nomes (exceto o de Milton) me vêm agora facilmente graças a uma colinha no folheto da programação. Meu interesse maior nessa palestra, como já mencionei, era mesmo no escritor amazonense. Diego Akel, meu irmão, que estava mais uma vez comigo, reconheceu Carlos Augusto Viana como um antigo professor de literatura, de um passado longínquo e que provavelmente não se lembraria dele. 

Por ainda estar me reacostumando às dependências do lugar, o Centro de Eventos, demorei um pouco além do esperado entre os estandes de livros, de modo que ao chegar ao mezanino 2, local onde ficava a sala da palestra, encontrei a porta fechada. O receptivo me disse que já havia começado. Entrei com certa contrição. Felizmente ainda bem no início, mas os lugares mais à frente, todos ocupados. Sentamos à média distância e procurei então me concentrar no que estavam falando, uma vez que é difícil chegar assim, no meio de uma fala, no meio de uma ideia, exigindo dedicação para se pegar o fio do debate. Quem falava, na ocasião, era Fernanda Coutinho e tentei, muito, entender o que ela dizia, mas o contexto me limitava, só percebendo que se tratava de algo referente à obra de Milton. Ainda que pouco, os instantes perdidos da palestra fizeram falta. Tudo bem, esperei a palavra passar adiante, à medida que ia me familiarizando com quem era quem, e já me preparava para registrar o que fosse possível da palestra, fazendo rápidas anotações.

Em seguida, Milton completou a fala de Fernanda, agradecendo as palavras que lhe cabiam, e disse ainda que em geral os críticos literários fazem comentários diferentes de um leitor comum, que por isso eles representam um quê a mais, uma opinião mais significativa. Aqui, porém, não pude esconder certa decepção, pois parecia que, ao dizer isto, ele desprezava a voz dos leitores comuns, valorizando tão somente os críticos. A meu ver, este desdém foi totalmente desnecessário, uma vez que ali naquela plateia certamente havia bem mais leitores casuais do que críticos, o que torna tal comentário em quase uma ofensa.

Esperei que de fato entrassem nos assuntos pertinentes ao tema, e logo foi a vez de Aila Sampaio, a mediadora, fazer um aparte, e iniciar de fato o escopo da mesa. Ela começou dizendo que o tema da infância é um dos principais da literatura, em seguida leu trechos de obras de Milton Hatoum, bem como fragmentos que pareceram ter sido escritos sobre o autor, para aquele momento. Após este breve momento introdutório, Aila levantou as seguintes perguntas para Milton, que foram alicerces para se desenvolver toda a conversa.

O que é a infância para o escritor? Que peso essa fase da vida tem para ele?
Como é trabalhar com tantas infâncias diferentes? (no caso de diferentes personagens)

Milton Hatoum começou dizendo que a infância é uma literatura sem memória, da qual se leva muito e ao mesmo tempo muito se esquece. Disse ainda que literatura deve falar do passado, que ao presente compete mais a voz do jornalista. Para ele, o escritor deve esperar o tempo passar, dar mais espessura ao passado, esperar mesmo o esquecimento. Citou ainda o escritor argentino Jorge Luis Borges, ao dizer que o esquecimento é uma das formas da memória.

Ainda sobre a infância e seus mistérios, Hatoum leu um conto (não lembro se era ou não de sua autoria), que dizia que o medo é uma das lembranças mais intensas dessa fase da vida e que aos 5 ou 6 anos de idade, você acredita em tudo. Fiquei um bom tempo refletindo a intensidade dessas sentenças, e percebendo como de fato a infância é um celeiro de medos, traumas e afins, que muitas vezes perpassam essa fase. A quase ingenuidade infantil, de acreditar em tudo, é também igualmente interessante, de modo que é nessa fase que a imaginação aflora, e tudo parece se transformar, tudo parece ser o que muitas vezes não é; o mundo tem um peso diferente, único dessa fase, e talvez isso seja justamente a origem desses medos.

Seguem agora trechos da mesa, tal como os coletei, seguidos ocasionalmente de alguns comentários:

No momento em que se escreve, tem-se que ter a coragem de romper certos limites, certos pudores – Milton Hatoum, que acredita que o livro depende muito dessa coragem que o autor precisa ter no ato da escrita, uma coragem que muitas vezes ele pode não ter fora dela.

Muitas lembranças da infância são transformadas pela imaginação, força motriz da literatura. – Milton, que considera a imaginação como grande agente transformador, capaz de mudar realidades, fronteiras, memórias. Essa ideia ficou um bom tempo em minha mente, percebendo que de fato a imaginação é como um tempero especial, engrandecendo e rompendo limites. Não pude deixar de lembrar também da célebre máxima de Einstein: a imaginação é mais importante que o conhecimento.

Um livro sem imaginação corre o risco de virar uma reportagem – Milton, estabelecendo novamente a relevância que a imaginação tem numa obra, sem a qual pode-se mudar radicalmente de direção.

A tela usurpou a infância das crianças – Milton, referindo-se a essa evolução tecnológica que cada vez mais nos transforma.

As crianças dão muita energia pra gente, física e mental – Milton, falando sobre a ocasião da publicação de um livro seu, que acelerou a produção após o nascimento de seu filho. O livro acabou sendo bastante premiado, e o escritor atribuiu o nascimento do filho como incentivador. – Claro que é um trabalho a mais, ainda pra mim que fui pai coroa, e já não posso passar tanto tempo lendo em minha rede, e isso para um amazonense é difícil (risos).

Mesmo estruturando o que se escreve, na hora de escrever o imprevisível faz sua parte. Muitas vezes, o esboço não corresponde ao que se escreve de fato. – Milton

O conto tem que ser perfeito, como um trabalho de relojoeiro – Carolina Campos, neta de Moreira Campos, que esteve presente em boa parte das mesas e sempre tecia ótimos comentários, complementando bem os debates.

Atualmente, prosa e poesia estão fundidas – Carlos Augusto Viana, que acredita que ambos os conceitos se entrechocam, e meio que se alimentam um do outro, sem prevalecer esse ou aquele.

Todo escritor de prosa tem inveja do poeta, e vice-versa. O poeta quando quer fazer romance, é traído pelo conto. O romancista, ao tentar poesia, acaba contista – Carlos, em uma curiosa correlação entre os dois ofícios, um ponto de vista bem peculiar.

A grande literatura árabe é poesia, desconsidera os romances. Os grandes escritores árabes são grandes poetas, pois a origem da literatura é o óraculo. Dizer com sentimento e com poucas palavras e se criar tudo. Ambos, prosa e poesia, se remetem a uma totalidade. – Milton

Para finalizar, no momento da participação do público, surgiu uma pergunta, feita por um rapaz que citou inúmeros escritores e críticos literários, uma pergunta chata e arrastada que poderia com certeza ter sido reduzida a uma simples sentença, ainda que desse modo o rapaz não pudesse exibir todo o seu "saber". Da mesma forma como não lembro o rebuscado que foi essa pergunta, lembro pouco também da resposta de Milton, que, muito respeitosamente, ouviu-a com grande atenção e respondeu de maneira abrangente. Me pareceu que a pergunta era se havia algum escritor que Milton considerava à altura dos grandes nomes mundiais ou algo assim. O escritor amazonense, após versar e considerar vários fatores, disse: a habilidade é você não dizer explicitamente as coisas. Machado e sua obra de contos não deve em nada aos grandes contistas.



A mesa então chegou ao fim, sob vastos aplausos. Ao todo, uma hora e meia de duração (tempo médio de todas as mesas) e demonstrou bem o que ainda estava por vir nas demais, que com certeza seguiriam a mesma estrutura. Só uma coisa que estranhei bastante, nesta edição da Bienal, foi o fato de não haver mesas, literalmente, nas mesas. Nem mesa, nem bancada, nada. Em 2012, uma bancada muito bem alinhada deu suporte a todas as palestras. Desta vez, porém, havia somente poltronas, e nada mais. Era inegável que assim tudo ficava mais informal, menos sério, com ar de uma simples conversa, mas de certa maneira ressaltava um pouco do ar improvisado do evento, que falei no post anterior. Não havia sequer mesinhas de apoio, e garrafas e copos d'água dos palestrantes tinham de ser grosseiramente acomodados no chão. Um dos convidados inclusive, em uma das mesas chegou até a dizer, em tom de brincadeira: é um prazer estar aqui nesta mesa... apesar de não haver nenhuma mesa aqui...

Do lado de fora, ao término da mesa, havia uma venda de livros de Milton Hatoum. A movimentação de pessoas em volta era enorme, e pude perceber nelas um interesse que pareceu não existir durante toda a palestra do escritor. Mas seria mesmo interesse? Ou talvez apenas para comprar o livro e conseguir o autógrafo? Será que todos leriam mesmo aqueles livros? Sondei os preços – altíssimos para uma Bienal – mas isso não continha a multidão de pessoas, que exibiam cédulas de cinquenta, cem, cartões de créditos. Os livros iam sendo vendidos a uma velocidade que invejaria os expositores de livros por dez reais. Como falei no início desse texto, não tenho nenhum livro de Milton Hatoum, e até cogitei adquirir um nessa ocasião, mas é um grande absurdo um evento deste porte vender livros pelo mesmo preço de livraria. Não comprei, e procurei, ao longo de todos os dias seguintes, livros do autor entre todos os estandes de expositores, sem sucesso. Não havia nenhum livro de Milton Hatoum, quase como se tivessem sido erradicados de propósito, num premeditado plano para se aproveitar da presença do escritor e assim poder vender seus livros ao preço comum, sabendo que venderiam, pois seriam os únicos do evento, e ainda poderiam dar ao "felizardo" comprador a chance de ter um autógrafo do autor.



Enfim, Infância e memórias mostrou-se um debate bem consistente, que talvez não tenha incidido tão diretamente nos pontos que eu imaginava, mas trouxe outros bem interessantes, como a questão do valor imaginativo do texto e a relação entre memória e esquecimento, gerando uma boa reflexão que certamente não será esquecida.

Na próxima postagem desta série, a mesa Biografar brasileiros, com Lira Neto e Mário Magalhães.

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