Frases


"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



quarta-feira, 7 de outubro de 2015

FLIP 2015 (I - Paraty e seus encantos)


Fotos: Denis Akel

Bom, vamos lá, finalmente às postagens sobre minha ida à FLIP 2015 (ocorrida em julho), que demoraram um pouco devido a alguns problemas pessoais pelos quais venho passando ultimamente, mas é preciso seguir em frente. Para essas postagens, procurei dividir os temas por capítulos, algo que nunca tinha feito, a fim de que as ideias fiquem melhor espaçadas e independentes.

Me é até difícil escolher as palavras para começar este texto, depois de ler o post anterior, no qual falava ainda antes da viagem, e agora, depois, tudo me parece incrível demais para ser transmitido em palavras, mas vou tentar. Da data que sento agora para elaborar este post, já faz alguns meses que cheguei desta incrível viagem. Não pouparei palavras ou esforços para tentar recriar ao menos um pouco do que senti, antes, durante e depois de minhas vivências em terras paratienses, então dividirei este tema em uma série de postagens. Nesta primeira, uma breve introdução e o primeiro dia do evento.

COMO TUDO COMEÇOU

Desde que abracei fortemente o gosto pela escrita e literatura, ouço falar da FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, um evento que sempre me pareceu grande, gigante, e como tal (erroneamente), inacessível. A primeira edição se deu em 2003. Entre 2007 e 2010, passei a ler sempre notícias da participação de autores que aprecio, como Moacyr Scliar, Millôr Fernandes, e ainda vídeos, trechos das mesas, que só reforçavam a grandiosidade de tudo.

Foi apenas em 2011, contudo, que minha relação com a Flip ficou mais intensa, foi nesse ano que a organização passou a transmitir online as mesas literárias, na íntegra! O homenageado àquele ano foi Oswald de Andrade, com toda a questão da antropofagia. Foi um deleite incondicional, um verdadeiro banquete literário, o qual tentei devorar da melhor maneira possível, gravando os conteúdos com programas que gravam a tela do computador. E passava os dias assim, maravilhado com as mesas, as discussões, os autores que ainda desconhecia. Mesas excelentes com João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola Brandão, e os internacionais Héctor Abad, James Ellroy, e ainda o português valter hugo mae, que emocionou a todos na leitura de um texto, tornando-se quase uma sensação daquela edição. A experiência de viver, mesmo que da tela do computador, esses debates, esse primeiro contato mais de perto com a FLIP, me transformou, e passei a esperar sempre com ansiedade o mês de julho, quando ocorre a festa. Na época, fiz até uma postagem aqui sobre ela: FLIP 2011 - Breves considerações.

Nos anos seguintes, 2012, 2013 e 2014, acompanhei intensamente toda a programação que foi transmitida online, e novamente mesmo que "apenas" através do computador, foi de enorme aproveitamento. O banho de relevâncias a que somos submetidos nas mesas é sempre inspirador, gratificante, verdadeiras aulas. O evento durava sempre cinco dias e, nesse período, eu não saía de casa. O horário das mesas era bastante intenso, chegando a dias nos quais aconteciam até 6 palestras transmitidas! Não havia tempo para fazer nada que não fosse assisti-las, e eu adorava isso, uma imersão quase total. Assistia mesmo a todas, independente dos temas, e continuava gravando tudo, já criando um considerável arquivo. Era, afinal, uma oportunidade única, além de poder sentir com grande intensidade um pouquinho da atmosfera que pairava em Paraty. Inclusive, tinha até iniciado um post sobre a edição de 2012, no qual falaria brevemente sobre as mesas que mais me impressionaram, escrevendo sobre as emoções e sensações que senti, que chegaram até mim através do monitor do computador, de maneira solta, sem grandes compromissos formais. Infelizmente por vários reveses, esse post nunca foi concluído.

Mas claro que minha grande ambição, ou sonho, sempre foi conhecer aquilo tudo de perto, viver aquela realidade. E era mesmo um sonho. Todos os anos, pensava, "dessa vez eu vou", "agora sim vai dar certo" mas os estranhos mecanismos da vida não favoreciam, e logo lá estava eu novamente, debruçado diante do computador, cheio de vídeos gravados, e já a espera do próximo terminar de ser renderizado. Por mais que eu gostasse de escrever, aquele sonho parecia irrealizável. Até que um dia, meio assim sem qualquer planejamento, vi a esperança chegar e sacudir essa aparente certeza.

A DECISÃO DE IR

Até o início do ano, não tinha nada confirmado de que iria a FLIP, de que faria essa viagem, nada mesmo. Mais uma vez, provavelmente, eu esperava pensar "esse ano eu vou", com um ou dois meses para o evento, para novamente não ir e repetir mais uma vez esse ciclo. Um fator crucial para favorecer essa mudança de ventos foi meu querido irmão, Diego Akel, que neste ano, 2015, me incentivou como nunca para finalmente abraçar esse desejo. Diego, que recentemente fez várias viagens, em festivais de cinema de animação, inclusive pela Europa, estava mais empolgado e inspirado do que nunca, com as possibilidades, as portas que viagens assim podem abrir, e tudo isso, de uma maneira ou de outra, passaria para mim. Fizemos uma viagem breve a Limoeiro do Norte, aqui mesmo no interior do Ceará. Foram apenas dois dias, mas considero um primeiro passo, pois mesmo sendo perto, desvelou já inúmeras possibilidades para nós, e me fez considerar a ida a Paraty agora com mais fervor do que nunca.

A FLIP 2015 aconteceria entre os dias 1 e 5 de julho, em Paraty, RJ. Um outro grande fator favorável, que parecia clamar para nossa viagem, veio exatamente nessa questão das datas, pois havia também o Anima Mundi, o tradicional festival de animação, que Diego participa assiduamente desde 2010 (tive também o privilégio de ir com ele algumas vezes). Agora em 2015, ele teria alguns trabalhos em exibição, sua ida já era certa. E o Anima Mundi seria de 10 a 15 de julho. Ou seja, as datas coincidiam perfeitamente para irmos à Paraty e de lá voltarmos pelo Anima Mundi, que esse ano seria na Barra da Tijuca. E assim, ele me acompanharia na FLIP, e eu a ele no Anima Mundi.

Mesmo assim, contudo, a viagem só se confirmaria quase em cima da hora. Várias vezes consideramos ir, outras tantas não. Diego tinha muitos trabalhos pendentes aqui em Fortaleza, mas a oportunidade era boa, talvez única, todos reconhecíamos. Tínhamos acabado de sair de uma pequena maratona, que foi o Cine Ceará e uma viagem seria uma ótima maneira de manter a mente ativa que o festival de cinema proporcionara, ainda mais uma viagem como aquela, que unisse a FLIP, que eu sempre quis ir, e o já tradicional Anima Mundi. Era mesmo o momento perfeito para, finalmente, conhecer Paraty. Diego fez alguns malabarismos para controlar seus trabalhos, contornamos ainda eventuais dificuldades e logo estávamos diante do simpático funcionário da agência de turismo, para comprar a passagem. Os preços não foram muito atraentes, mas percebo agora, mais do que nunca, que foi antes de tudo um investimento, e que valeu cada centavo. Tudo o que vimos, sentimos e vivemos não tem preço. E tão logo me dei conta, estava com a passagem na mão, restando agora cuidar de malas e afazeres de casa, a viagem seria daqui a dois dias, 30 de junho.

A EXPECTATIVA

Não era a primeira vez que viajaria. De certa forma, já estava até bem acostumado à rotina de preparar malas, mas desta vez foi diferente. Um misto de medo e excitação me assolou por alguns instantes. A viagem foi ganhando corpo, mas ao mesmo tempo fiquei meio hesitante, talvez por ser algo novo, nunca experimentado. Já fui ao Rio de Janeiro duas vezes, para o Anima Mundi mesmo, mas à medida que conhecia um pouco a FLIP, ela me era totalmente desconhecida. Sempre tinha acompanhando a Festa Literária na diminuta telinha do computador. Agora, eu estava prestes a finalmente realizar o sonho de estar lá, de literalmente mergulhar nas águas de Paraty. Procurei lidar com essa sensação com tranquilidade, sem pensar muito, seguindo o fluxo que estava diante de mim. Mas não foi fácil, arrumar as malas, pensando que dali a poucas horas estaria vivendo um mundo inteiramente novo, um mundo que parecia inatingível. O que fiz foi justamente me valer dessas sensações, e aqui comecei a escrever um pequeno diário de viagem, no qual as inseri, numa preparação para já escrever as vivências que teria. Escrever relatos de viagem é um hábito que de uma maneira ou de outra sempre tive, mas que esse ano também sofreria algumas alterações bem interessantes, como direi mais a seguir.

E veio então uma pequena novela: conseguir pousada. Não tínhamos referência de nenhuma, e ainda com a proximidade do evento, sabia de antemão que não seria fácil achar vagas; a maioria devia estar lotada. Algo muito bem-vindo foi o site da própria Flip oferecer uma lista com várias pousadas credenciadas, assim tivemos uma base, e já começamos a ligar para quase todas. E lá se vão créditos e mais créditos de ligações interurbanas. E como pensei, a maioria estava mesmo sem vagas, ou havia a preços absurdos. Pousadas que só pelo nome, como a Pousada do Ouro, já intimidavam nesse aspecto. E também ao contrário, vi uma certa Pousada Pardieiro, mas que só tinha o pardieiro no nome, pois o local era belíssimo. Após várias ligações, finalmente encontramos uma acessível, a reserva foi feita. Pronto, um problema crucial resolvido. Corri a escrever isto em meu diário, enquanto preparava tudo o que levaria.

Malas prontas. Saímos na madrugada do dia 30. Um voo intranquilo, nunca consegui dormir em aviões, mas ao mesmo tempo único, a expectativa aumentava gradativamente, a cada etapa avançada.

RUMO A PARATY

Do aeroporto Galeão, no Rio, tomamos um ônibus direto para a rodoviária. Eram por volta de 9 da manhã, estávamos cansados, viajar de madrugada é sempre exaustivo, mas a ideia era, uma vez lá, pegarmos o próximo ônibus para Paraty. Já sabíamos de antemão a companhia responsável pelo trajeto, a Costa Verde.

Mesmo já conhecendo o Rio, não canso de me assustar com a grandiosidade da cidade, esse ar de megalópole, intenso, frenético. Olhava pela janelinha do ônibus e via todo aquele caos urbano, viadutos, pontes, elevações, guindastes, tratores, aquele monte de máquinas, tudo contrastando com um céu límpido e pacífico. Saindo de Fortaleza, era sempre um choque.







E finalmente a bordo do ônibus para Paraty, essa paisagem mudou radicalmente. Foi sem dúvida uma das melhores viagens que já fiz até hoje. O ônibus era bem confortável, convidativo a um cochilo, mas não pude deixar de acompanhar boa parte do trajeto pela janela. A rota era praticamente toda pela encosta, pertinho do mar, com incontáveis montanhas, ilhas, árvores, verde. Visões que me faziam sorrir abobalhadamente, uma felicidade espontânea, e procurei escrever essas sensações em meus registros. Passamos por inúmeras cidades, dentre as quais Angra dos Reis, que era a última antes de Paraty. Angra me pareceu incrível, mesmo que vista apenas da janelinha. Rodeada de várias ilhotas, com toda aquela vegetação integrada, aquele clima, a cidade me pareceu bem acolhedora, e até meio perigosa (havia uma usina nuclear!). Como foi uma viagem meio longa, 4 horas e meia, vindo de uma noite intranquila, me entreguei a uma ótima soneca na poltrona, imaginando que daqui a pouco tempo finalmente estaria onde sempre quis ter estado, desde que descobri esse evento espetacular.







O ônibus veio até bastante cheio, imaginei que a maioria ali iria para a Paraty, para a FLIP, o que não seria de se estranhar, pois o público do evento é sempre muito grande, mas não foi bem assim. Grande parte desceu mesmo em Angra, e um diminuto grupo seguiu. Pelo menos agora sim, aquelas que restaram provavelmente iriam ao evento literário.

PARATY, PARA NÓS

Como foi boa aquela sensação, de descer ali, naquela rodoviária típica de cidade do interior. Tudo a minha volta era novidade. E melhor ainda saber que nossa pousada ficava tão perto que poderíamos ir andando! A melhor forma de se descobrir, explorar cidades, é andar, sentindo a cidade pulsar. Percebi também que havia ônibus e táxis à vontade, mas durante toda nossa estadia ali, não precisamos recorrer a nenhum.

Escolhemos chegar exatamente um dia antes da abertura da FLIP, justamente para termos algum tempo para conhecer um pouco da cidade, da movimentação, e já ganhar familiaridade. Após nos instalarmos na pousada e almoçarmos, pensamos em dormir, vindos ainda dessa noite de sonhos intranquilos, era algo tentador a se fazer. Mas quem conseguiria dormir tendo a cidade inteira à disposição? O sono poderia esperar mais um pouco, principalmente graças aos cochilos que demos ainda no ônibus.

Devia ser já final de tarde quando iniciamos esta primeira andança. Além de tudo, eu ansiava para ver logo de perto os locais das tendas, toda a estrutura, sentir que de fato estava ali, que de fato iria acompanhar tudo. As tendas do evento ficavam no coração do centro histórico de Paraty, e o acesso até ele se dava pela Avenida Roberto Silveira. Esta rua, inclusive, também era um destaque à parte, repleta de restaurantes, lojas, luzes, pousadas, além do fluxo sempre constante de pessoas. Achei incrível vários destes lugares terem cartazes da FLIP em suas fachadas, demonstrando a força que o evento tinha. Até farmácias estampavam o banner. Foi uma experiência muito intensa, estar ali, de repente, respirando tudo aquilo. Podia-se dizer que ali era o centro da cidade, e como era passagem obrigatória, de ida e volta, tornou-se, com os dias, uma travessia cada vez mais agradável.

Avenida Roberto Silveira, principal acesso ao centro histórico


Ficou bem evidente que Paraty era uma cidade muito turística, e estávamos justo em seu período de maior movimento, o mês de julho. Comecei a ver as pousadas que tanto vimos quando buscávamos uma, e vi muitas outras, muitas mesmo. E quando atravessamos a avenida, nos deparamos com uma pracinha, e depois dela a arquitetura mudou radicalmente. Surgiam os vistosos casarões, o chão pedregoso, aquele ar colonial, banhado pelo belo sol que naquela hora preparava para se por. Estávamos diante do centro histórico.




Andamos atônitos por aquelas ruelas, atentos a todos os detalhes, e o primeiro deles bastante necessário: as pedras. O chão era todo salpicado de pedras, sendo a disposição destas meio irregular, com os mais variados tamanhos e formas, espaçadas meio aleatoriamente. Passamos muitos dias para nos acostumarmos a isso, e por mais que quiséssemos olhar tudo em volta, tínhamos sempre que baixar a cabeça para ver onde iria nosso próximo passo, sob o risco de um escorregão ou mesmo uma queda, que felizmente não aconteceu.

Neste primeiro passeio, andamos ainda sem qualquer orientação clara, apenas conhecendo os arredores. E rodamos muito, encontrando já vários locais do evento, que me lembrava de ter ouvido falar de anos anteriores, como a tenda da Flipinha, a Casa Folha, a praça da Matriz (que conhecia por ter sempre suas árvores adornadas por livros no período da FLIP), o SESC, o Instituto Moreira Sales. Tudo estava mesmo ali, pertinho, a nosso alcance, eu não cansava de pensar isso, era uma sensação fascinante. Além disso, vimos também a igreja da Matriz, bem como infindáveis escunas, muito comuns por ali, e toda a vastidão do mar e das ilhas no horizonte. Era uma visão tão pacífica, tão gloriosa, que mesmo que só pudesse ver aquilo, a viagem já teria valido a pena.





Havia incontáveis restaurantes no centro histórico, todos muito distintos e chamativos, com cardápios que iam de pizzas a lagostas, e cujos preços intimidavam. Ainda, sorveterias, padarias, lojas de artesanato, galerias de arte, ateliês, museus, igrejas e claro, mais pousadas. Em um dos momentos dessas andanças, vimos uma reportagem do canal Arte 1 sendo gravada, bem ali, próxima à igreja da matriz, aproveitando-se provavelmente deste belo plano de fundo. Com tantas coisas a observar, sentia-me em movimento, feliz, completo, por estar ali. E o evento ainda sequer começara.

E aliás, ainda nem sinal das tendas principais, a tenda dos autores, a livraria da Travessa, o café... e tornamos a andar, nesta busca. E após mais algumas passadas, encontramos uma ponte, e de longe vimos já várias bandeiras da FLIP a adorná-la. Era um bom sinal, devia ser naquela direção. Na ponte, tive outra bela visão, a imensidão do rio Perequê-Açu, que passava ali por baixo, cheio de brilhos e reflexos já da noite que agora chegava. Além da ponte, finalmente vi a imponência das estruturas, do que sabia ser a tenda dos autores e demais espaços. E fomos até lá, em passos lentos e desbravadores. Estávamos agora em frente ao que seria o coração da FLIP. A tenda principal tinha uma estrutura monumental: teto em abobada, ambiente todo climatizado, com acesso através de portas laterais. Caminhamos em volta, assimilado tudo aquilo, havia já placas e identidades visuais da festa, espalhados pela área. Seguimos pela passarela, à borda do rio, apreciando além da estrutura, o ótimo friozinho que fazia àquela hora. Lá no fim, a livraria da Travessa, na figura de outra tenda, esta meio ao ar livre. O espaço era a livraria oficial da FLIP, que venderia também os livros dos autores convidados. Além de nós, havia outras pessoas curiosas, também andando por ali. Todos os segmentos, desde a tenda dos autores, estavam interditados com faixas amarelas, de modo que nos limitamos apenas mesmo a olhar e nos aproximar até onde estas faixas permitiam. Foi ótimo estar ali, naquele primeiro momento, ainda no dia de nossa chegada. As tendas ainda dormiam, aguardando o momento de serem abertas, e fiquei pensando como estaria todo aquele cenário àquela hora, no dia seguinte, quando afinal a FLIP teria início.









A PROGRAMAÇÃO

A FLIP costuma sempre fazer uma homenagem a um escritor brasileiro. Este ano, a honraria ficaria com Mário de Andrade, que seria tema de boa parte das discussões e mesas da tenda dos autores, o palco principal da festa. Esta programação central é composta por cerca de 20 mesas, que é justamente o material que é exibido online, e que até ano passado eu tanto me empenhei em assistir e gravar.

Era comum também que, uma vez divulgada a lista de convidados, eu a esmiuçasse completamente, lendo algo sobre cada um deles, para conhecer um pouco antes dos debates, e assim usufruir melhor daquela experiência. Agora, contudo, não disporia de todo esse tempo. Inclusive, uma das primeiras questões que me colocou em xeque quando considerei afinal ir à Paraty foi bem isso: como fazer para gravar a transmissão das mesas? Uma vez lá, não teria como. Mas não me incomodei muito com isso, procurei pensar que o simples fato de estar lá, de viver aquela atmosfera, já superaria qualquer registro feito de casa, e ficaria muito mais em mim do que qualquer vídeo. E ainda, há pouco tempo a FLIP passou a também disponibilizar o áudio na íntegra de todas as mesas no YouTube, então eu ainda teria como ter acesso a esse material.

Quanto à programação de 2015, com a certeza da viagem em mãos, e pendências de última hora a resolver, não pude olhar com muita atenção quem seriam os autores deste ano, de modo que a única coisa que sabia era que o homenageado seria Mário de Andrade, e que uma das mesas teria o escritor Marcelino Freire, do qual conheço um pouco da obra. Ir assim, meio no escuro, me pareceu estranho a princípio, mas logo se revelaria uma experiência bem construtiva, pois não ficaria muito preso, por não estar direcionado a nada, a princípio. Além dessa programação principal, dessas 20 mesas, havia outras programações, paralelas, que não eram transmitidas, e elas muito me interessavam, mas de uma maneira ou de outra eu acabaria por me focar mais nos bastidores, no que acontecia por trás do evento, ao invés das mesas em si, como direi mais a seguir.

O DIA DA ABERTURA 

A abertura da FLIP seria só às 19:00, mas o dia 1º de julho começou cedo para nós. Todos os momentos eram preciosos, desde o café da manhã da pousada, que deveria ser apreciado não só nas iguarias como na percepção dos demais hóspedes, e lá escutamos as mais variadas conversas, sobre a FLIP mesmo inclusive, e vi já uma empolgação acentuada nos rostos de todos. Os proprietários do lugar falavam com muita satisfação do evento, que enchia a cidade, e orgulhavam-se de que naquele período já estavam negociando a parceria para Flip do ano que vem. Nós ouvíamos maravilhados, mais curiosos do que nunca para a noite deste dia, para a abertura.

Como agora sabíamos nos localizar melhor, rumamos direto para o centro histórico, encontrando já um aumento significativo no número de passantes, também pela Praça da Matriz, enquanto agora íamos a caminho das tendas, para pegar logo um folheto com a programação, que sempre quis ter o prazer de ter nas mãos. A ponte que dava acesso a essa área, pela qual até o dia anterior ainda havia trafego de carros, agora estava restrita apenas a pedestres. Aos poucos, tudo se preparava para o início do evento.



Na tenda dos autores, as barreiras e faixas de interdição haviam sido removidas, e já iniciava-se um fluxo moderado por ali. Vi o balcão da bilheteria, ainda em preparação, seguranças já em volta, e não conseguia parar de olhar para todos os lados, observando cada detalhe, cada cor, cada vibração da sensação que era estar ali. E foi num balcão ao lado da bilheteria que pegamos a programação, que me surpreendeu antes de tudo pelo capricho: um pequeno kit embrulhado num envelopinho, que apesar da vastidão de informação que reunia, cabia num bolso. Em cada um dos livretos, programações distintas, e ainda um mapa detalhado das mesas, bem como da localização na cidade dos locais que teriam atividades. Simplesmente incrível o acabamento daquele material, e tentei dar logo uma pequena olhada, agora pela primeira vez tomando melhor conhecimento a respeito das mesas, dos autores convidados etc.




Mapa de orientação no centro histórico, que mantivemos à mão quase o tempo inteiro


A ideia era ainda tentar conseguir ingressos para a abertura, e nos aproximamos da bilheteria. Para a abertura já estavam esgotados, e não apenas ela. Uma das moças pegou o nosso mapa das mesas e começou a marcar com uma caneta as que ainda tinham ingressos disponíveis. Eram bem poucas. Fiquei assustado, na hora, com já tanta procura, mas depois percebi que os ingressos estavam à venda já há alguns dias, pela internet, e que com o público massivo do evento, era de se esperar que acabassem rápido. Mais tarde eu viria ainda a saber que esse ano inclusive foi a primeira vez que os ingressos todos não esgotaram antes da abertura, ao que foi atribuído à crise que assola o país. E ficamos lá, diante da moça, que esperava, sorridente. Mas como resolver assim em cima da hora para qual mesa comprar? Mal sabia ao certo quem era quem, os temas discutidos, não... não poderia decidir assim, ainda mais que o valor do ingresso era 50,00 reais a inteira. Precisávamos considerar bem para qual iríamos. Sabíamos que os poucos restantes poderiam acabar, mas correríamos o risco de nos precipitar. Claro que também havia a possibilidade de comprar mesmo no escuro, e ter uma ótima surpresa. De um jeito ou de outro, tudo seria lucro, era verdade, mas nesse primeiro momento, preferi manter os pés no chão e pensar um pouco mais antes de resolver.

Parte das programações. Com as marcações de caneta ainda presentes, esse folheto traz boas memórias. 

E continuamos a andar, com os livretos da programação nas mãos, explorando os outros espaços. A tenda dos autores tinha ainda um anexo à direita, próxima a área das portas de saída, no qual foi montado um telão, de onde seriam exibidas todas as mesas, gratuitamente, tudo o que ocorresse dentro da tenda. Logo à frente dele, dezenas de cadeiras compunham aquele belo auditório ao ar livre, sobre milhares de minúsculas pedrinhas espalhadas por todo aquele terreno. Seria um espaço onde passaríamos bastante tempo.




E com a luz do dia, tudo ficou mais claro, mais amplo, com outro sabor, com aquele movimento de pessoas, aquele fluxo, aquela preparação para logo mais. Andamos novamente pelos mesmos trechos da noite anterior, quase redescobrindo, ou descobrindo mesmo. O café já estava aberto, bem como a livraria, e aproveitamos para conhecê-la logo, aproveitando o ainda pouco movimento. Pelas imediações também vimos já o escritor Marcelino Freire, andando por lá com a desenvoltura própria de conhecer tudo aquilo. Na livraria, chamava a atenção de cara uma pilha de livros, dos autores daquela edição, e me demorei um pouco ali, buscando um breve panorama. Autores franceses, irlandeses e até queniano, bem como vários brasileiros. Dei uma breve olhada nos preços, mas não pensava em comprar nada agora. Passeamos um pouco pela livraria, que de resto era meio que uma livraria comum, exceto pela atmosfera do evento que já reinava absoluta. Tivemos ainda o prazer de ver a ilustre Liz Calder, a inglesa que idealizou a Flip, andando por ali, provavelmente checando se tudo estava como deveria.














Retornamos então, e apesar do sol, fazia uma temperatura agradável, uma brisa friazinha, que foi um grande aconchego. Como era mágico andar por aquelas dependências, ver aquele panorama, eu não cansava de pensar, de me encantar. Havia várias placas de madeira no decorrer do trajeto, com detalhes das mesas e informações adicionais. Em uma delas, uma nota avisava que o escritor Roberto Saviano não viria à FLIP. Não me detive muito, a essa altura, como disse, ainda não sabia direito quem era quem, mas nos dias seguintes isso chegaria mais bem explicado, inclusive como chave de ouro na última mesa do evento.

Voltamos para almoçar no centro histórico, desfrutando daquele belo cenário paradisíaco, que parecia a cada minuto se tornar mais belo. Avistamos o livreiro Pedro Herz, apresentador do programa Arte 1 Com Texto, e sempre me enchia de satisfação só em perceber essas pessoas do meio, essa pulsação, esse vigor que parecia atingir Paraty como nunca durante aquele período. Passamos a tarde conhecendo todos os espaços da FLIP, a Casa Folha, o IMS, a FlipMais, a Flipinha, Praça da Matriz, todos incríveis, e neles fomos fustigados por toneladas de informações, que vinham na forma de panfletos, revistas, jornais, tudo distribuído gratuitamente. Vimos ainda uma ótima exposição dedicada ao artista paratiense Zé Kléber, na Casa da Cultura de Paraty. Há uma mesa tradicional da Flip que leva seu nome, e eu sempre ficava me perguntando quem era Zé Kléber. Essa exposição veio como uma ótima supresa, para mergulhar de vez no clima do festival, e vimos inúmeros registros de sua vida e obra: filmes, poemas, livros e músicas. Grande oportunidade de conhecê-lo melhor.

Ainda, a movimentação de pessoas pelo centro histórico intensificava-se, e já podia imaginar como seria na hora da abertura. Fiz fotos de tudo o que consegui, enquanto paralelamente seguia escrevendo minhas impressões.

Casa Folha, espaço que além de livraria, recebia também conversas com autores



Tenda da Flipinha, onde além de programações, aconteceu também o show de abertura

Mural pertencente à exposição dedicada ao artista paratiense Zé Kléber





E COMEÇA A FLIP

Após uma breve pausa na pousada, para deixar parte do material que nos pesava as mãos, bem como fazer algum lanche, tornamos a sair. A abertura seria às 19h. E como fazia frio à noite! Havia até uma nevoazinha, que foi um bálsamo para nós, saídos do sempre constante calor de Fortaleza. Eu me sentia muito bem, realizado, prestes a testemunhar aquele momento que me era tão aguardo, a desmistificar a impossibilidade daquele sonho. Mesmo que ainda não de dentro da tenda principal, iria acompanhar de perto a abertura do evento.

No centro histórico, o fluxo já era respeitável, com todos convergindo para a tenda. Como estávamos meio atrasados, apertamos o passo, à medida que as traiçoeiras pedras do chão permitiam, e logo cruzávamos a ponte sobre o rio, encontrando um grande contingente nas imediações das tendas, da bilheteria, daquele trecho que era o coração do evento. Consideramos tentar comprar um ingresso, de repente de alguma desistência, mas mesmo de última hora, ainda teríamos de gastar 50 reais... e preferi guardar para analisar melhor as mesas vindouras. Em pouco tempo, vi que o acesso à tenda tinha sido liberado, as pessoas passavam a portinha e subiam os degraus, para uma realidade que eu ainda desconhecia, a parte interna da tenda, mas ainda teria tempo para isso. E seguimos, direto para a área do telão.






Não sei se havia ainda lugares livres na tenda, mas ali fora me espantou ver praticamente todas as cadeiras ocupadas, sem qualquer lugar sobrando. E agora? O telão exibia já propagandas de patrocinadores, ficaríamos em pé? A primeira vez na FLIP para assistir à abertura em pé? Por sorte havia o espaço do café, mais ao lado, onde havia também toda uma aparelhagem acústica, de modo a ser possível sentar-se a uma das mesas, tomar um café, sem deixar de acompanhar nada. Parecia perfeito para o momento, principalmente porque apesar do movimento, havia ainda várias mesas vazias. Corremos a elas, passando pelo mar de pedrinhas.




SESSÃO DE ABERTURA, AS MARGENS DE MÁRIO

Ah, a abertura da Flip! Quando sentei à mesa, me lembrei de imediato dos anos anteriores, em 2014, quando Millôr Fernandes foi homenageado, nas palavras do crítico Agnaldo Farias, ou 2013, quando o escritor Milton Hatoum abriu a FLIP dedicada a Graciliano Ramos. Naqueles anos, eu estava a quilômetros de distância, atrás de um computador. Agora eu estava ali, a poucos metros da ação. Uma sensação de plenitude me tomava, no momento em que o telão exibiu um breve vídeo de homenagem a Mário de Andrade (assim seria em todas as mesas) e logo depois o interior da tenda, toda aquela vastidão, e subiu ao palco Paulo Werneck, curador de mais esta edição. Ele fez os tradicionais agradecimentos, deu boas-vindas a todos, mencionou ainda que esse ano três livros da Flip têm a palavra amor no título e apresentou os palestrantes daquela primeira mesa: Beatriz Sarlo, Eliane Robert Moraes e Eduardo jardim. O trio era especialista na obra do escritor modernista, e logo iniciou-se um profundo debate sobre sua vida e obra.

Era uma sensação muito boa estar ali, respirando aquele ar. Podia quase me ver em casa, como fizera nos anos anteriores, diante da tela do computador, gravando, assistindo, acompanhando. Dessa vez, estava ali, se não dentro da tenda, de outro ponto de vista, vendo a festa talvez até com mais informalidade, de onde podia tomar um café, observar as pessoas, a noite, e ali percebi que acontecia uma outra Flip, uma Flip que eu jamais veria das paredes de meu escritório, lá em casa, e talvez sequer de dentro da tenda.



Não conhecia nenhum daqueles que agora falavam, com toda aquela propriedade, sobre a obra de Mário de Andrade, uma variedade de temas, de sua vida pessoal ao ritmo de trabalho, e tudo parecia sim muito interessante, mas minha atenção não estava exatamente no telão, na mesa em si, mas em volta, no que acontecia à minha volta. Acabou sendo uma constante para mim, durante quase todo o evento, ficar mais impressionado com o ambiente do que o teor dos debates em si. Sempre me interessaram detalhes e nuances. Como tudo era novidade, e na ânsia de filtrar antes de tudo a vida que havia ali, perdia tranquilamente o olhar nas pequenas coisas que aconteciam, tentando observar um pouco daquelas pessoas, seus hábitos, expressões, gestos, tudo me era fascinante de perceber, e ia registrando estas observações em anotações ali mesmo, um ambiente que favorecia completamente este exercício.



Para algumas crianças que estavam por ali, o destaque também estava longe de ser o telão. Elas brincavam com as pedrinhas do chão, correndo alegremente, sentando, pegando e jogando-as ao ar, vivendo o seu próprio mundo, com toda a inocência a que tinham direito, nem um pouco interessadas em Mário de Andrade ou sua obra. Foi uma interessante divergência: enquanto todos ouviam, em silêncio, as crianças corriam, gritavam sem qualquer pudor. Olhei aquela cena, tão simples, tão pura, uma felicidade breve, uma celebração da infância, sucumbida em meio à abertura do mega evento literário.



Nas mesas em volta da nossa, agora já lotadas, todos acompanhavam o telão. Observei que pareciam muito atentos, muito focados, como que absorvendo cada palavra, e até mal se moviam. Comentei algo com Diego, a meia voz, mas já suficiente para fazer uma senhora numa mesa ao lado virar para mim e pedir silêncio, educadamente, com o indicador junto à boca. Aquelas pessoas realmente abraçavam a Flip. Ver aquelas pessoas ali fora me fez perceber ainda um curioso entrechoque cultural. Uma verdadeira passarela de tipos únicos, notáveis, um público diferente, o mesmo que lembrava ver nos anos anteriores, na tenda dos autores, quando a transmissão online revelava, a seu bel-prazer, o público que lá estava.






Ver a abertura, daquela perspectiva, me fez refletir muita coisa. Tantas pessoas ali, interessadas, concentradas, vivendo e celebrando a literatura, sem brigas, sem confusão, faz perceber a força que tem essa festa. E tornei o olhar ao telão. Enquanto os palestrantes falavam, por tantos minutos a fio, pensei como seria difícil manter uma oratória por tanto tempo, uma pequena aula, na qual não havia pausas ou tropeços. Claro que era algo comum, num ambiente como aquele, e não se esperaria menos do que isso, mas eu gostava de ficar pensando nesses aspecto, do quanto eles se prepararam para aquele momento. Não se confundiam, as palavras fluíam e se completavam, com profunda noção de conteúdo, como se tivessem conhecido Mário de Andrade, e contagiando a todos com essas sensações.

Ademais, fazia um friozinho muito agradável, roupas de frio e agasalhos eram uma constante. Eu que escrevia em meu caderno nesse momento, sentia quase uma carícia ao tocar a mão no papel frio e acalentá-lo com os dedos, num afago realizado. Com mais de uma hora passada, o fluxo de pessoas permanecia praticamente o mesmo. Na área do telão, bem como na do café, onde estávamos, ninguém se levantou, os olhares vidrados, alimentados pela trajetória e relevância do escritor modernista.

Um momento muito peculiar surgiu já perto do final da mesa, quando houve uma inesperada invasão no palco. Nada que prejudicasse a fala, muito pelo contrário: era o ator Pascoal da Conceição que, caracterizado de Mário de Andrade, resolveu fazer uma intervenção surpresa na abertura da Flip, e entrou declamando um poema, com um buquê de flores na mão e largo sorriso no rosto. O ator, que interpretou Mário numa minissérie da Globo, disse não poder ficar de fora daquela festa, e que não tendo retorno da produção, resolveu agir por conta própria, inclusive bancando todo o figurino. Eduardo Jardim, o biógrafo de Mário que falava na hora da invasão de Pascoal, disse depois: "Adorei, levei o maior susto! Eu já conhecia o ator, por vídeo. Ele é mais baixo que o Mário, que era um cara muito alto, mas tem uma energia!".
Foi um dos momentos mais divertidos e talvez o mais inusitado que eu já tenha visto na Flip. Apesar de ser visível o quão o curador Paulo Werneck ficou desconcertado, a cena foi de uma beleza extraordinária e se não foi mesmo planejada, serviu como um excelente desfecho à ótima mesa de abertura, quase como se o próprio Mário de Andrade surgisse para receber aquele prestígio.

E seguiu-se afinal o término da mesa, sob largos aplausos, de ambos os públicos, da parte interna e externa. Era quase possível sentir o calor que cada palma emanava, um agradecimento, uma satisfação. Então, as portas da tenda se abriram e começou a dispersão, dezenas e dezenas de pessoas foram saindo, como formigas de um formigueiro, juntando-se ao outro público, que também deixava o local. Nos aproximamos, apenas para ver um pouco da parte interior da tenda, ter ao menos um pouco desse gostinho, ali na noite da abetura. Vi a disposição das cadeiras, as extensas e reluzentes arquibancadas, e vi também que todos que saiam recebiam um curioso pacote, que logo percebi ser algum presente em ocasião da abertura. Ficamos por perto, até que Diego se adiantou, perguntando se poderíamos ter um daquele. O homem que distribuia os embrulhos não questionou, e nos entregou logo um pacote, que recebemos com um grande sorriso e fartos agradecimentos. O pacote trazia o livro "Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta", um marca página e um breve catálogo de obras do escritor, tudo embalado de maneira bem rústica, que deu um charme bem especial ao presente:



E assim deixamos as imediações da tenda, junto com um mar de pessoas, um fluxo de vozes, de impressões, de sensações. Ouvia comentários sobre a palestra o tempo todo, uns entrecortando outros,  enquanto cruzávamos a ponte de volta ao centro histórico. Nesta noite aconteceria ainda um show para marcar a abertura do evento. No centro do palco da Flipinha, o músico paratiense Luís Perequê agitou a noite. Aliás, esse show, como eu viria a descobrir depois, gerou um pequeno falatório na mídia, por dizerem não ser um show "grande", como foi o de Gal Costa no ano passado. Luís Perequê, segundo as manchetes, tinha sido chamado por conta do baixo orçamento que a organização dispunha esse ano, quase como um "quebra galho". Achei esses comentários desnecessários e inconvenientes. Qual o problema de se dar a oportunidade a um artista local, conhecedor verdadeiro da cultura paratiense? Os jornais não perdem mesmo uma boa chance de levantar polêmicas. Luís Perequê cantou e iluminou a noite desse primeiro dia, na companhia de várias crianças que também se sentiam muito à vontade naquele palco tão colorido.



Regressamos à pousada, exaustos. Não compramos nada nesse primeiro dia, mas recebemos muita coisa, além de toda a carga de emoções e sensações: os folhetos, impressos, jornais e brindes distribuídos em praticamente todas as áreas da Flip, que já foi suficiente para encher a imagem abaixo. E muito mais ainda estaria por vir:



A partir da próxima postagem, algumas das mesas que conseguimos assistir. Ainda tenho muita coisa da Flip para mostrar!

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Rumo à FLIP 2015!



A FLIP, Festa Literária Internacional de Paraty, vem aí, com sua tradicional programação de mesas, debates e atividades dedicadas à arte literária. Será de 1 a 5 de julho, no centro histórico de Paraty-RJ. Finalmente irei acompanhar de perto este grande evento, que chega à sua 13ª edição homenageando o escritor Mário de Andrade. Já acompanho a FLIP com afinco desde 2011, assistindo às transmissões das mesas, vendo matérias, artigos, fotos. Postei algumas coisas relacionadas aqui no blog, e sempre desejei estar lá, ver de perto toda essa efervescência. Esse ano, enfim, realizarei esta façanha.

Vamos lá, rumo à FLIP!

Cine Ceará 2015 – breves comentários



Já faz algum tempo que não falo de um festival de cinema por aqui, então aproveito a recente edição do Cine Ceará para retomar o tema, ainda que brevemente. Este ano, o tradicional festival cearense completou 25 anos. Meu irmão, Diego Akel, teve um de seus trabalhos, o curta Micro-Macro, selecionado e assim decidi acompanhá-lo em todas as atividades dentro do período do festival.

Diferente do ano passado, quando ocorreu no Theatro José de Alencar, este ano o Cine Ceará retornou ao Cine São Luiz, célebre cinema aqui da cidade, que foi inteiramente reformado há pouco. A Praça do Ferreira, que abriga o agora Cineteatro São Luiz, conheceu um intenso movimento, durante as noites do festival, contando ainda com grande proteção policial, o que foi ótimo, dado que o local é meio vulnerável à noite.

Desta vez, o país homenageado foi a Espanha, que contou com inúmeras produções ao longo da programação, composta de curtas e longas-metragens. Dos filmes que consegui assistir, destaco nos curtas os trabalhos de Chema Garcia Ibarra, uma trilogia muito bem construída, de grande força visual e narrativa, que propõe uma reflexão livre e sonhadora no gênero ficção-científica. A trilogia pode ser assistida aqui. Nos longas, o exótico Crumbs, de Miguel Llansó, traz personagens incomuns e surreais, que se entrelaçam às belas paisagens da Etiópia, num enredo pós-apocaliptico que faz alusão às vivências do diretor, além de dialogar também a questão da influência de ícones na sociedade.



A sede do Cine Ceará mais uma vez foi o hotel Mareiro, na Beira-Mar. Como é um pedaço da cidade que não costumamos andar muito, foi quase como ser alguém de fora, ainda mais quando interagíamos com os demais realizadores, nacionais e internacionais. Como estou aprofundando meus estudos linguísticos, dava gosto ouvir o espanhol ser pronunciado com tanta naturalidade, e ir esboçando uma palavra ou outra, no decorrer do evento. Participei o tanto quanto pude, ao lado de Diego, aproveitando essa atmosfera, que meio que nos transformava em turistas na nossa própria cidade.

A Praça do Ferreira fervilhou durante os dias do evento, uma vez que boa parte da programação acontecia no Cineteatro São Luiz. Diariamente, as sessões começavam por volta das 19h, seguindo noite adentro, na exibição dos curtas e longas. No entorno da praça, foram montadas tendas e mesas, uma área de convivência, além da presença também de uma boa variedade dos food trucks, com pizza, cachorro-quente, espetinhos e tudo o mais o que a fome – e o dinheiro – permitissem, pois ao contrário dos ingressos, gratuitos, os preços dos lanches não eram nada convidativos.

Fotos: Denis Akel


Nas manhãs do Cine Ceará, o destaque era o debate dos realizadores, que acontecia sempre no hotel Mareiro. Nele, jornalistas e público eram convidados a uma conversa com os diretores ou representantes das obras exibidas na noite anterior, que discutiam detalhes do filme e respondiam dúvidas ou comentários. Em geral, percebi que este espaço era mesmo mais voltado à imprensa e que de público mesmo, muitas vezes só os mais interessados.





Micro-Macro, filme em stop motion de meu irmão, foi exibido no Cine Ceará na noite do domingo. Por ser um trabalho de apenas 1 minuto, sua exibição se deu quase que numa piscadela de olhos, diante de uma sala quase lotada, o que foi um efeito bastante curioso, deve dizer. Diego reproduziu, no dia seguinte, no debate, parte do cenário usado no filme, com objetos comuns como papel de presente, cadeados, fone de ouvido etc, tendo como elemento diferencial o uso da lente micro, que dá todo o aspecto, toda a textura das imagens. Acompanhei a produção do filme, aqui em casa, e acho incrível a reinvenção que os objetos em cena assumem, a grandeza que adquirem, uma vastidão que nos faz sentir pequeninos e ao mesmo tempo gigantescos. Outro detalhe é que Micro-Macro foi totalmente feito num tablet, desde a concepção à edição final. Assista ao filme aqui.




Diego explicou ainda que cada vez mais tem investido na criação de filmes sem grandes produções e planejamentos, partindo de ideias e ferramentas simples e diretas, visando sempre um resultado mais prático, evitando desgastes e estresses, e assim conseguindo dar vazão a cada vez mais ideias e execuções. Esta é a premissa do projeto Animato, do qual Micro-Macro faz parte. Diego já fez mais de vinte trabalhos similares, com o mesmo desprendimento.



Foram ótimos e já memoráveis momentos, poder estar ali e acompanhar de perto todas aquelas ideias, todas aquelas sensações, não só na mesa de Diego, mas nas dos demais realizadores, e em todo o festival em si. Teve também suas dificuldades, muitas vezes pelo cansaço de passar dias inteiros entre as atividades, mas que foi recompensado por um enorme enriquecimento, sobretudo por interagir, como já disse, com pessoas diferentes, e por ouvir a bela língua espanhola a todo momento. Acredito que o que o Cine Ceará traz de melhor é bem isso, a oportunidade dessa vivência, de conhecer novas pessoas, novas culturas. Eu e Diego pensamos, mais do que nunca, que isso é melhor do que qualquer prêmio. Aliás, não deixa de ser um prêmio, mas um prêmio que fica, que marca, de verdade.




sexta-feira, 13 de março de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (FINAL – O conto nosso de cada dia)


Fotos: Denis Akel

Finalmente diante da oitava e última postagem desta extensa série sobre a Bienal do Livro do Ceará 2014. Recapitulando, ao longo dos primeiros meses do ano, postei aqui minhas experiências e impressões de todas as mesas e palestras que pude assistir, bem como do evento em si, que ocorreu entre 6 e 14 de dezembro de 2014. Para encerrar, talvez uma das mesas mais aguardadas, ou pelo menos badaladas: O conto nosso de cada dia, que contou com a presença de Xico Sá e Ricardo Kelmer. Aconteceu no penúltimo dia de Bienal, 13 de dezembro, um sábado, às 19h. Foi a única mesa que vi lotar a sala. O público-recorde provavelmente não se deve pelo interesse real na temática do conto, e acredito que pouco devido a Ricado Kelmer, mas sim por conta de Xico Sá. Uma palavra, contudo, define muito bem o que para mim foi essa mesa: decepção.

Desde o início, este foi um dia agitado na Bienal do Livro. Sábado, penúltimo dia, o Centro de Eventos estava lotado, barulhento, difícil de transitar, com a sensação de que com certeza era um lugar no qual não se queria estar. Isso, aliás, não deve ter sido escolhido ao acaso; óbvio que não colocariam Xico Sá em um dia de semana, e sim em um dia naturalmente movimentado. Cheguei cedo por lá, pouco depois das 14h, imaginando que no dia seguinte não iria, para evitar a loucura ainda maior que seria o último dia (só imaginei, porque acabei indo!). Rodei entre os expositores de livros, na medida do possível – todos cheios, desconfortáveis e sufocantes. Ainda comprei um livrinho aqui, outro acolá, aproveitando oportunidades, mas é mesmo incrível o tempo que se gasta, sem se dar conta, só em pé folheando um possível livro a comprar!

Intensa agitação no penúltimo dia da Bienal

Como falei nas postagens anteriores, nenhuma das mesas costumava começar na hora marcada, e esta não quebraria a tradição, embora algo me dissesse que eu deveria chegar um pouco mais cedo, imaginando que possivelmente haveria uma fila. Xico Sá, por ser cearense, e 'personalidade de TV', com certeza arrastaria um grande público. Foi por volta das 18:30 que cheguei ao mezanino 2, encontrando o corredor já bastante cheio, percebendo que eu estava certo em minhas suspeitas. Como não havia bancos ou lugares para se sentar (uma falha em meio a toda a moderna estrutura do Centro de Eventos), as pessoas ficavam no chão mesmo, encostadas às paredes. Não havia, contudo, nenhuma fila, inclusive a sala continuava fechada. Estranhando, me aproximei, e me informei com um receptivo que por acaso estava por ali. Meu receio era de a sala ter mudado, o que já acontecera antes. Ele, porém, me disse que seria ali mesmo, mas que iria atrasar um pouco, uma vez que havia ainda uma palestra acontecendo, com Carolina Munhoz, alguma coisa referente ao tema juventude fantástica. Afastei-me e, sem opção, me juntei às muitas pessoas que ali estavam, também me sentando na fria cerâmica do piso.



Alguns minutos passados, as portas se abriram, dando saída às dezenas de pessoas que lá estavam, no que constatei que Carolina Munhoz também tinha um grande público. Logo formou-se uma fila à porta da sala, das pessoas que, como eu, estavam ali fora sentadas à espera da mesa de Xico Sá. Como já havia muita gente quando cheguei, tive de ficar atrás de umas trinta pessoas, imaginando que isso me prejudicaria na escolha da cadeira no auditório; certamente todos iriam querer sentar bem na frente. Tudo bem, o que desse para ver, estava bom. Por esses momentos iniciais, de grande movimentação, comecei a desconfiar que esta mesa talvez não fosse bem o que eu estava esperando.




Devo ter passado pelo menos uns 15 minutos em pé, inerte, à espera. A fila, todavia, não parou de crescer, e logo fez uma curva pelo corredor. Nesse meio tempo, pensei, relembrando a Bienal do Livro de 2010, onde também fiquei numa fila, à espera da palestra de Maurício de Sousa, e ainda por cima sob um escaldante sol de meio-dia, nas limitadas dependências do antigo Centro de Convenções. Desta vez, felizmente, não havia sol, mas a sensação de ficar ali, limitado a uma fila, é sempre desagradável. Pensei também se valeria a pena tamanho esforço, dedicação, pelo que poderia ser a vindoura palestra. O que mais me atraiu aqui a princípio foi mesmo o tema, O conto nosso de cada dia. Imaginei que discorreriam sobre esse gênero tão fascinante mas muitas vezes subjulgado, mesmo agora em alta devido à homenagem à Moreira Campos. Já conhecia Xico Sá de outros eventos literários e também de programas de TV, como Cartão Verde e Saia Justa. De vez em quando também lia um ou outro de seus textos pela internet. Quanto a Ricardo Kelmer, não fazia ainda ideia de quem era, mas se poderia acrescentar algo a este tema, com certeza seria bem-vindo.

Detalhe das vidraças, refletindo a extensão da fila


Passando um pouquinho da hora marcada para o início, o acesso ao auditório foi enfim liberado. Como pensei, os lugares mais à frente foram rapidamente tomados, e tive de me conformar com a quarta fileira, mas pelo menos fiquei ao lado do corredor, assim teria alguma liberdade quando fosse fazer os registros fotográficos. Em questão de minutos, praticamente todas as cadeiras estavam ocupadas, e havia mais gente do lado de fora querendo entrar. Nunca vi nada parecido, em nenhuma das palestras anteriores que assisti. O público, pelo que pude perceber, não tinha nada de muito chamativo, eram mais jovens, talvez na faixa de 20 a 30 anos, que pareciam quase estar ali para algum show musical ou de stand-up. Logo eu perceberia que, afinal, não seria muito distante disso.





Diferente de todas as mesas anteriores, aqui em nenhum momento vi Xico Sá nas imediações da sala, à espera, como todos, do início de sua mesa. Luiz Ruffato e Milton Hatoum estavam bastante visíveis em seus momentos e Lira Neto estava até sentado nas cadeiras do auditório momentos antes de sua fala. Com Xico Sá, porém, não foi assim. Lá dentro, já sentado, procurei em volta, também sem qualquer sinal do escritor. Era quase como se o estivessem preservando, evitando que tivesse contato com o público antes da hora, talvez para fazer uma entrada triunfal ou algo do tipo. Quanta besteira, pensei, como se ele fosse um ídolo, intocável, feito de vidro. Ricardo Kelmer talvez já estivesse por lá, mas provavelmente entraria junto com ele, pegando uma caroninha em todo aquele oba-oba. Reparei no detalhe que havia pelo menos umas quatro portas de acesso à sala, sendo geralmente usada apenas uma. Por qual delas será que entraria Xico? Seria daquela mais afastada, meio escondida por uma tela de projeção?




Não demorou muito e a sala lotou completamente. Eu já estava com meu notebook no colo, começando a fazer as primeiras anotações quando, passados alguns minutos das 19:00, finalmente vi de relance, por uma brecha entre a parede e a tela, saindo mesmo da última porta, a figura de Xico Sá, curiosamente bem escondida por esta tela de projeção, que acabou funcionando como uma espécie de cortina. Não sei se foi proposital, mas com certeza desnecessário. Via-se apenas detalhes de sua roupa, a camisa estampada, como que para aumentar mais a expectativa.Vi ainda mais vultos, indicando que ele não entrara sozinho. Logo, saíram de trás da tela de projeção os palestrantes daquela mesa, Xico Sá e Ricardo Kelmer, para o delírio da plateia, que prorrompeu gritos eufóricos. Seria toda aquela comoção pelo fato de Xico ser cearense e assim de estar, de certa forma, meio que de volta à casa? Ou pela força de sua presença televisiva? Era uma boa questão. Seguido dos palestrantes, estava também Cleudene Aragão, autora responsável pela mediação do debate, bem como apresentadores da Bienal que logo cuidaram das introduções e patrocinadores. Nessa hora, olhei para trás, percebendo, além da grandeza do auditório cheio, a porta principal ainda aberta, e muita gente ainda lá fora, como que a espera de algum lugar vagar de repente. Para começar a mesa, após cumprimentos gerais a ambos, Cleudene perguntou a Xico se ele venceu na vida. A essa fraca e genérica pergunta, o escritor cearense não pensou muito antes de dizer:

Não tem isso não, a ideia é se emocionar, não tem vitória, não tem triunfo, a gente leva é uma emoção. Não há vitória, não precisa ganhar nada, o essencial é ter emoção e ir levando.

Incontáveis câmeras eram apontadas para o palco, algumas por parte da produção, que além das dos fotógrafos, novamente mantinha uma num tripé, gravando tudo, mas a maioria das lentes vinha mesmo do público. De onde eu estava via, ali na chuva de telinhas, miniaturas do palco. Foquei em uma delas, onde uma diminuta Cleudene agora perguntava: qual a relação de vocês com Moreira Campos e sua obra?




Eu inicialmente só comecei a ler Moreira para impressionar a neta dele, – disse Ricardo Kelmer, em meio a risos, disse ainda que depois se encantou pela obra, de grande vigor e significado, a tendo como inspiração para seus contos.

É impossível não amar um conto de Moreira Campos, aquilo é o melhor entretenimento do mundo, melhor que qualquer televisão do universo. – Xico Sá

Não pensem em literatura como chatice, um conto de Moreira Campos é imensamente divertido. Não fazemos um favor a ele lendo-o, mas sim um favor a nós mesmos. – Completou Xico Sá.

A mesa corria a um ritmo bem progressivo, e a julgar por esse início, parecia até interessante, contudo, logo mais ela começaria a declinar. O público, silencioso, ouvia, interessado. Cleudene seguiu perguntando, agora novamente direcionada a Xico: qual o barato dos gêneros literários?

Perdemos muito tempo buscando definições; conto é isso, crônica é aquilo. Bobagem, o importante é ler. – Xico Sá

Xico ainda tentou explicar um pouco as sutis diferenças entre conto e crônica, mas preferiu dizer que praticamente não há, que os dois gêneros meio que se misturam um no outro, e tecnicamente, são quase como uma coisa só.

A mediadora pediu a Xico que falasse um pouco de seu romance "Big Jato". O escritor começou dizendo como surgiu a ideia para o livro, que na verdade Big Jato é um limpa-fossas, muito conhecido por atuar bastante na área do Crato e Cariri, em meados dos anos 70, 80, quando também popularizou o nome Big Jato como sinônimo de limpa-fossas. O caminhão era destinado a esvaziar as fossas das casas sem encanamento. Ele disse ainda: Quem daqui esteve no Crato, ali por aquela época, e cagou, certamente o Big Jato limpou a merda de vocês – o tom irreverente logo arrancaria mais risos e gracejos do público –. Então, sempre lembrei do Big Jato, que na minha época de infância limpava as merdas de todos. De lá em diante, continuou a limpar, mas dessa vez minhas merdas mentais, concluiu, para mais um forte e exagerado aplauso.



O livro é um romance auto-biográfico, que não tem muito compromisso, porém, em retratar fielmente as memórias do autor. Isso, inclusive, é exatamente o que Xico mais gosta, pois diz que não conseguiria lembrar precisamente de todos os detalhes, o que resultaria numa história não fiel à realidade e tampouco uma boa ficção. Optei por uma ficção maluca, de uma região em que eu vivi desde a infância e começo da adolescência, para contar a história de um menino que vive entre um pai trabalhador, motorista do caminhão, e um tio delirante, poeta, que cresce ora sobre a influência de um, ora do outro, sem saber que destino tomar na vida. Xico usou a imagem do Big Jato sobretudo como uma simbologia da região do Cariri, como pano de fundo de uma história de dúvidas e descobertas. O protagonista da história, o menino, ou o cabinha, como chama Xico, vai crescendo com essa dúvida: a que mundo ele pertence? Ao mundo da poesia tresloucada do tio ou ao trabalho sujo e desgarrado do pai?

Após ouvir o autor falando, e agora lendo sobre o livro para poder escrever aqui, não posso conter certa curiosidade em conhecer essa obra, ver como foi feita essa fusão entre realidade e ficção, e mesmo de conhecer a vida deste menino, que cresceu em meio a limpezas de fossas e canções dos Beatles.

Cleudene seguiu, comentando ainda que o livro está em processo de adaptação para filme, ao que Xico Sá confirmou, dizendo que o diretor Claúdio Assis recentemente terminou as filmagens. A mediadora então perguntou se Xico se sente o personagem do livro Big Jato:

Inicialmente, era mais a importância do caminhão que limpava esgotos, mas isso foi aumentando, para poder fantasiar um pouco de minhas memórias e infâncias. – Xico Sá

Desafio alguém a contar a história de sua vida sem aumentar um pouquinho, é impossível, é necessário. – Xico Sá



Em seguida, o foco passou para Ricardo Kelmer, e seu livro mais recente, Indecências para o fim de tarde, que seria lançado na ocasião do evento. A mediadora lhe pediu para falar um pouco sobre a obra. O autor começou logo soltando: dizem que a humanidade é dividida em dois tipos de pessoas, aquelas que gostam de sacanagem e aquelas que assumem que gostam de sacanagem. Disse ainda que seu livro se trata de uma coletânea de contos eróticos, uns mais românticos, uns mais apimentados, mas todos sacanas. Falou que boa parte deles vieram de ideias que seus próprios leitores enviavam, através de seu blog. O tema logo deixou o público meio dividido, mesmo porque havia crianças no ambiente, e percebi várias pessoas deixando a sala. Suas cadeiras não ficavam vazias por muito tempo, porém, uma vez que logo entrava mais gente, no que constatei então que o pessoal estava lá fora só esperando uma oportunidade de entrar. Pensando melhor, agora, bem que houve uns momentos onde eu gostaria de estar lá fora...

Kelmer falou das leitoras de seu blog, de como elas se sentiam à vontade para compartilhar ideias ou fantasias, que ele desenvolvia, e meio que de certa forma as realizava. Disse ser muito importante essa troca, de leitor x escritor, algo que se torna bem mais fácil quando se é um escritor que se auto publica, que é acessível ao leitor.

O feminino é o que move o escritor. – Kelmer

Só existe um sentido de estar vivo: decifrar o ser feminino. – Xico Sá

Queria continuar com a cabeça de menino, que tudo era mais ou menos bonito. – Kelmer

Com toda essa temática feminina trazida à tona, começaram a discorrer, sem razão aparente, sobre estria x celulite, em termos ora quase científicos, ora escrachados. A mediadora parecia levemente desconcertada. Comecei a me perguntar o que eu estava fazendo ali. Onde tinha ido parar a literatura, o conto? Moreira Campos? Eu parecia estar novamente certo em minhas suspeitas, que aquela mesa não era bem o que eu esperava, a literatura não estava exatamente em foco. A presença de Xico Sá ali não era muito como escritor, mas mais como um astro, um ícone, que metade das coisas que dizia era motivo para risos exagerados e aplausos cegos e descontidos. Mas ainda havia conteúdo interessante a ser aproveitado, felizmente:

O google acabou com as idades. Não tem mais idade, tem google. – Xico Sá, ao dizer que hoje em dia não tem mais essa coisa de velhice, ou não pode mais fazer isso ou aquilo. Com o google se pode tudo, se sabe tudo, não há limites.

Gosto muito de Macunaíma, de Mario de Andrade. Todo homem tem um pouco disso, todo homem é meio preguiçoso e chorão em relação a mulher. – Xico Sá.



Xico me lembrava bastante Fabrício Carpinejar, como se desempenhasse quase um papel, um tipo, um tipo que, evidentemente, logo cairia nas graças do público, aliás já tinha caído, desde antes de surgir ali naquela noite, uma vez que era a principal causa daquele monte de gente. Afinal, em diversos momentos, a mesa era quase um show de stand-up mesmo, com piadas meio forçadas, mas que todos riam, não sei se por realmente acharem graça ou por educação. Ele ainda trouxe à tona um de seus decálogos, que novamente dissipou um pouco o tema literário na mesa, transformando-a quase em uma das entrevistas que costuma dar na TV. Não lembro agora se foi o decálogo do homem feio ou do macho jurubeba, mas foram enumerados cada um de seus mandamentos, em um tempo que eu esperava que estivessem abordando a estrutura do conto, eventuais autores favoritos, como e porquê escrevê-los... enfim algo mais pertinente ao tema. Não que não se falasse, mas o tema literário me parecia forçado e arrastado na conversa.

Lygia Fagundes Telles é parente de Moreira Campos, no sentido de ser também grande contista. – Xico Sá, que parece ter lembrado de citar de novo o mestre Moreira Campos.

Tem hora que a gente não conta as horas, não precisa. – Xico, referindo-se ao dia-a-dia de hoje, no qual temos hora para tudo, mas certas coisas precisam de um descontrole, uma imprecisão, para melhor serem vividas.

A gente esquece de viver e apenas fotografa. – Xico, que falava sobre memórias, enfocando como, nessa vida de hoje, em meio a tantas redes sociais, estamos muitas vezes mais preocupados em registrar um momento do que propriamente vivê-lo.

E eis que finalmente falaram de inspiração criativa:

Às vezes a inspiração do escritor vem do nada, às vezes vem de tudo, é mesmo uma vadia. – Ricardo Kelmer

Xico comentou um pouco de seu processo criativo: às vezes escrevo uma ou duas coisas e penso "nossa, que maravilha de texto que eu fiz!" e aí quando acordo no dia seguinte, penso "mas que porcaria é essa, quem foi o idiota que escreveu isso?

A inspiração parece coisa feminina, é imprevisível, quando você chama, ela não vem, quando você não pode, ela chega, se você não aproveitar logo, depois fica complicado. Quem inspirou as histórias de meu livro foram as mulheres, o arquétipo feminino. – Kelmer

Gosto muito do mundo pop, do mundo da cultura de massa, de dividir a ideia da paixão de um homem comum por uma personalidade inatingível. – Xico, que neste momento citou seu livro "O livro das mulheres extraordinárias", no qual homenageia, como ele mesmo diz, com uma devoção escancarada, centenas de mulheres brasileiras, numa coletânea de perfis, crônicas e elogios amorosos.



Gosto de falar como a cabeça do homem, genericamente, pensa, essa ideia narrativa é boa para se compartilhar. – Xico Sá

Deveríamos ser menos solenes na literatura, tratá-la como um prazer, uma coisa do dia-a-dia. – Xico Sá

A ideia de relato, de contar uma história, uma coisa comum, acessível, assim é que é bom pensar na literatura. – Xico Sá, fazendo valer o tema da mesa.

A Mediadora então começou a falar do escritor que promove a sua escritura, a exemplo de Kelmer, e manteve um bom foco na discussão literária:

O mercado editorial hoje em dia é muito perverso, as editoras brasileiras estão se afiliando às internacionais. – Xico Sá

Precisamos ser agressivos, personalizar a literatura como conversa. – Xico Sá

O artista precisa, antes de tudo, ultrapassar a visibilidade, ser notado. Sempre gostei de interação com o leitor, o que ele pode me inspirar. – Kelmer

Gosto muito da ideia do movimento punk inglês, o Faça Você Mesmo. Tenha juízo, reclame, fale mal da cadeia perversa mas junte um ou quatro amigos e façam vocês mesmos. Grave uma coisa, faça uma coisa sua e deixe o mercado ir atrás, não vá buscar uma guarita, um selo de editora ou algo assim. – Xico Sá



Não tenho questão mercadológica, me inspiro nas pessoas que buscam algo e acabam chegando ao meu blog. – Kelmer

Aos futuros escritores, se diferencie tentando chegar um pouco mais próximo de seus leitores. – Kelmer

Cleudene seguiu perguntando e mantendo o foco literário: estão trabalhando em novos livros?

Estou no meio de um romance, depois do Big Jato, tomei gosto pelo gênero. O humor cearense é muito existencialista. Estou gostando muito, apesar do difícil processo criativo. – Xico Sá

Kelmer falou sobre sua época espiritualista. Usou algumas vezes a expressão 'Paulo Coelho da Caatinga', como era conhecido, causando furor de risadas no público. Hoje em dia estou pensando em escrever um livro sobre os bastidores desta época, os bastidores de um grupo esotérico-cearense no Rio.

E então chequei as horas; já pertinho do final, e ainda não havia sido aberto para o público se posicionar. Não era possível que achassem que com o auditório lotado não haveria perguntas... ou talvez fosse proposital para não tomar muito tempo... De um jeito ou de outro, Cleudene seguiu, com outra pergunta: como vocês, cearenses, circulam pelo Rio?

A gente sempre é nomeado, isso que é bom. "Ei cearense!" – Xico, que lembrou uma história de Câmara Cascudo – Mentalmente, nossa alma é do lugar.

A grande tristeza é o povo do Rio não entender as suas piadas, essa é a grande ideia da solidão, do exílio, tirar a mesma onda. É preciso primeiro educá-los a rir da gente. Essa demora é a maior angústia mesmo. Depois de 20 anos, quando eles finalmente entendem, você vai embora. – Xico, olhando para Kelmer, que confirmou sorrindo, como se entendesse exatamente o que ele quis dizer.



Ricardo Kelmer também se mostrava um típico performer, numa tentativa meio desesperada de fazer humor. Claro que muita gente ria, com uma ou duas piadinhas bobas e desnecessárias. Agora me era perceptível, então, mais do que nunca, que aqueles dois, Xico e Kelmer, se completavam bem. Suas obras versavam por caminhos similares, os dois são do Ceará, eram quase comediantes, em suma, era mesmo a "mesa perfeita".

Perguntas do público foram finalmente iniciadas às 20:30, praticamente já no final da mesa, que se estenderia um pouquinho por conta do atraso. Se não me engano houve apenas uma ou duas, uma delas mais uma observação quanto à maneira como Xico escreveu um artigo para um jornal, ao que o escritor logo defendeu seu trabalho, explicando as nuances do referido artigo. Não pude deixar de observar, também, que em tudo, ou quase tudo o que Xico dizia, uma moça sentada na primeira fileira sempre puxava palmas, mas não de modo natural, ela o fazia com grande vontade, de maneira meio frenética, quase grosseira, como se estivesse quase ironizando.

Alguém perguntou, ainda sobre o ato de se autopublicar, como divulgar o trabalho ou mesmo manter o foco inicial:

Invejo jovens que se juntam e realizam coisas, sem precisar de grandes corporações, ou no mínimo inverter as coisas, deixar as corporações irem atrás de você. – Xico

Mesmo que esteja dentro das corporações, você ainda pode manter a sua essência. – Kelmer

Logo a mediadora Cleudene Aragão agradeceu a Xico, Kelmer, e a todos os que tinham comparecido, dando por encerrada a mesa. Aplausos e gritos vieram da multidão que me cercava no auditório, e logo que os palestrantes se levantaram, várias pessoas foram na direção deles. Inclusive, momentos antes da mesa terminar, fiquei pensando "como será que vão fazer com os autógrafos?" Lá fora, havia uma mesinha vendendo livros de Xico Sá, onde certamente poderia encontrar o Big Jato por um preço realmente Big, mas o autor iria até lá ou ficaria numa mesa, ali mesmo na sala, atendendo às dezenas de pessoas que certamente lhe solicitariam, como fizeram Luiz Ruffato e Milton Hatoum? Na verdade, nem uma coisa nem outra.



O que se viu foram todos se amontoarem em volta de Xico, lutando por uma autógrafo ou ainda uma foto com ele, que era só sorrisos, e atendeu a todos de pé mesmo. Do outro lado, Ricardo Kelmer, também foi procurado pelo público, mas por bem menos pessoas. O autor disse que quem estivesse interessado em algum livro de sua obra, bastava fazer o contato com ele mesmo. Aproveitei toda a descontração daquele momento (até os receptivos queria tirar fotos de Xico Sá) para também fazer algumas fotos, que acho que retratam bem o que foi a mesa.









Quando saí da sala do Centro de Eventos, neste dia, me senti diferente. Não estava completo, realizado com a palestra, como acontecera em todas as anteriores, era mesmo uma sensação de decepção, como escrevi no início deste texto. A mesa não foi exatamente ruim, claro, mas estava longe de ser o que eu acreditei que poderia ser. Não foi bem uma defesa do conto como gênero, mas mais dos interesses de cada autor. Por que falar tanto de um romance (Big Jato) quando o tema proposto eram os contos? Toda a badalação em torno de Xico Sá sufocou o tema proposto. É até curioso, pois o próprio Xico disse que deveríamos ser menos solenes com a literatura, tratá-la como uma coisa do dia-a-dia, no entanto não foi bem isso que ele fez, ao meio que fugir do primeiro contato com seus fãs, executando sua entrada escondida por trás da tela de projeção, o que com certeza não é uma coisa que se vê no dia-a-dia.

Já Ricardo Kelmer apresentou uma obra de delicada aceitação, uma tema que sempre envolve certa polêmica, certo desconforto. Não deve ter sido à toa que muita gente se retirou da sala, não só nestes momentos bem como quando ele ou Xico falavam assuntos que não tinham qualquer relevância ao tema, e entre as pessoas que saíram vi até alguns jornalistas. Gostei, no entanto, da conduta de Kelmer, em se auto-publicar, se auto-divulgar. Demonstra que há, acima de tudo, uma vontade, um querer.

Achei a mediação de Cleudene Aragão um pouco fraca, com perguntas vazias e de pouca profundidade, que mal raspavam no cerne do tema, sem desenvolvê-lo. Um de seus pontos altos foi que pelo menos ela conseguia voltar ao tema literário quando este se perdia entre um assunto e outro.

Talvez o melhor momento, ou pelo menos o que me ficou de mais memorável, tenha sido a menção do movimento punk, tanto por parte de Xico como de Kelmer, a ideologia do fazer você mesmo, sem precisar de nenhuma mega corporação, que é um direcionamento que eu mesmo também procuro seguir, em meus textos e em alguns trabalhos que realizo em parceria com meu irmão, Diego Akel. É um modo sobretudo libertador de se produzir, no qual focamos sempre o estar sempre fazendo, sempre produzindo algo, nunca ficar à espera, pois muitas vezes ficamos à espera de algo que no fundo sabemos que pode ser que nunca chegue.

Enfim, hora de encerrar esta série, que ao longo destas oito postagens, buscou transmitir um pouco de minha experiência pela Bienal do Livro do Ceará 2014. É provável que algumas delas não tenham conseguido passar exatamente o que eu queria, devido ao longo tempo já decorrido do evento, mas imagino que o principal tenha sido transmitido, um pouco da atmosfera do lugar, bem como minhas impressões pessoais, críticas, de tudo ou quase tudo o que pude ver ou interagir. Nesta mesa em particular, não fiz questão, em nenhum momento, ao longo deste texto, de esconder minha insatisfação, mas reforço, porém, que é tão somente minha opinião, que a postura de Xico Sá ou de Ricardo Kelmer, ou de qualquer outro foi mesmo o que tinha de ser, e assim é a vida.

Escrever estas postagens, apesar de cansativo, foi um grande prazer, pois foi, além de um exercício de reviver um passado, uma chance de quase recontá-lo, recriá-lo, numa pequena narrativa. Surge assim a sensação de viver novamente um momento, uma cena da qual fui personagem, da qual pude de certa forma imortalizar, não deixando se perder no tempo, como certamente vão ficar os registros integrais de vídeo que a produção da Bienal fez. É sobretudo um registro bem pessoal, no qual tentei fazer literatura para falar de literatura.

Meus agradecimentos a meu irmão, Diego Akel e minha mãe Izabel Akel, que me acompanharam ao longo desta pequena grande jornada, e a todos que porventura lerem qualquer uma das postagens.


quinta-feira, 5 de março de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (VII - A influência estética de Moreira Campos)


Fotos: Denis Akel

Chegando agora à sexta postagem relativa à Bienal do Livro 2014, que abordará a mesa A influência estética de Moreira Campos, com Adriano Espínola e Ana Miranda, mediados por Jorge Pieiro. O encontro ocorreu em 11 de dezembro, quinta-feira, a partir das 17h, logo depois da mesa Literatura e Loucura, da qual falei na postagem anterior.

O contista Moreira Campos, grande homenageado desta edição da Bienal, teve, além de uma exposição com fotos e fatos de sua vida e obra (veja na primeira postagem desta série), inúmeras palestras e mesas relacionadas. Diariamente, acontecia sempre às 17h, um seminário sobre a obra do autor, nesta mesma sala que foi cenário de praticamente todas as postagens que fiz desta série. Houve comemorações pelo seu centenário, discussões em torno da atemporalidade de sua obra, a arte literária presente em seus textos e tantos outros temas focando o contista.

Boa parte dessa programação, porém, ou chocaria com o horário das palestras que eu já decidira assistir ou seria justamente depois de uma delas, o que a tornaria muito desgastante, considerando que cada uma durava 1h30m. Assim, me foquei para ver o que tinha planejado, mas pensei que seria bom também assistir a pelo menos uma das mesas dedicadas a Moreira Campos, aproveitando o momento para conhecer um pouco mais do autor, que não lia há algum tempo. Escolhi esta, intitulada a influência estética, imaginando encontrar um bom panorama de seu processo criativo, e de como seu legado perdura até hoje. Acabei por encontrar bem mais do que isso.

Como disse, esta mesa aconteceu logo após a mesa de Jackson Sampaio, da postagem anterior. Só deu tempo de esticar um pouco as pernas pelo corredor e logo voltar à sala. Mais pessoas chegaram, somando-se a umas poucas também remanescentes da palestra anterior. Era perceptível uma outra energia no novo público, um público diferente, mais maduro, senhoras, senhores que pareciam saber perfeitamente bem porque estavam ali, quase como se tivessem conhecido o próprio Moreira Campos (e quem sabe tivessem mesmo, afinal). Identifiquei ainda rostos conhecidos de boa parte das mesas anteriores, como a curadora da Bienal, Mileide Flores, a também curadora e neta de Moreira Campos, Carolina Campos e o simpático jornalista Anderson Sandes.

Compunham a mesa a escritora cearense Ana Miranda, e Adriano Espínola, poeta, professor de literatura e sobrinho de Moreira Campos. A mediação ficou por conta do também escritor Jorge Pieiro. Procurei me sentar quase no mesmo lugar da palestra anterior, ainda que agora todas as cadeiras tivessem voltado para a posição normal. Após as apresentações comuns da Bienal, patrocinadores e afins, Ana Miranda tem a palavra. A escritora agradece a oportunidade, e começa falando um pouco de literatura em geral, passando por sua obra, e chegando a Moreira Campos:

A qualidade de um livro é proporcional à quantidade de sentidos ali contidos. – Ana Miranda

O que torna um autor canônico, segundo Harold Bloom, é a estranheza. – Ana Miranda

A originalidade de uma obra é a originalidade do eu autoral. – Ana Miranda

Tento partir do corriqueiro para chegar ao contexto fantástico, no estilo Moreira Campos. – Ana Miranda



Ana então falou de alguns ensinamentos bem peculiares de Moreira Campos, a lição da parede, a lição do copo, a lição do portão e a lição da cama. Ela então entreolhou Adriano, que lhe sorriu, concordando. Fiquei pensando em que consistiriam estas lições, de nomes tão simples e aparentemente bobos. Na verdade, estava diante de um conhecimento incrivelmente complexo, disfarçado nesta aparente simplicidade. Adriano Espínola faria uma boa explanação destas lições, como direi mais a seguir.

Ana também contou a história de Pedro Salgueiro, que teve em Moreira Campos uma espécie de mentor. Ele admirava muito o escritor, já conhecendo boa parte de sua obra, e embora passasse por ele quase todos os dias, ao cruzar o Bosque de Letras (hoje Bosque Moreira Campos), não tinha coragem de lhe falar. Assim passaram-se quase dez anos. Pedro, que começara então a também escrever contos, conheceu a filha do escritor, a também escritora Natércia Campos, que de certa forma facilitou seu antigo sonho. Fez algumas visitas ao apartamento de Moreira, sendo muito bem recebido por ele e sua esposa, dona Zezé. Numa destas visitas, Pedro teve a coragem de levar um exemplar de seu primeiro livro, pedindo a Moreira que ele, nas palavras do próprio Pedro, "desse uma olhadinha, se pudesse". Moreira Campos deu uma olhadinha, e fez bem mais do que isso.

Segue o artigo completo, que foi lido por Ana na ocasião desta mesa, de autoria do próprio Pedro Salgueiro: Moreira Campos por Pedro Salgueiro.

A mesa foi adiante:

Há uma relação entre Machado de Assis e Moreira Campos, ambos gostam de revolver os lados psicológicos, ambos têm uma dose de descrença na humanidade. – Ana

Na estética de Moreira Campos, descrições devem ser sempre com o mínimo de informações, mas o máximo de sugestões. – Ana

Moreira Campos primava pelo acabamento de seus textos, e sua obra influenciou todos os escritores depois dele. – Ana

Jorge Pieiro leu, com grande emoção, um conto do livro inédito de Moreira, A Gota Delirante. Um texto de leitura intensa e vibrante, como lhe era tão comum. Impossível não lembrar de Dizem que os cães vêem coisas, que considero uma de suas melhores obras. As palavras de Jorge logo absorveram o público, que o acompanhou com grande atenção até a última palavra, a última sensação. De onde eu estava, não pude deixar de reparar, em certo momento, que aquela leitura emocionou também a neta de Moreira, Carolina, sentada à minha extrema esquerda. Ela chegou mesmo a chorar, de modo contido, sensibilizada, talvez lembrando do avô, talvez da mãe, de tudo, toda essa energia, que lhe deve ser comum, mas que agora chegou com mais intensidade, ao ouvir aquela leitura, naquele momento. Fiquei pensando "puxa, ela passou a semana inteira envolvida diretamente nesse evento, e até antes, no planejamento... esteve ainda em quase todas as palestras, deve ter revivido e relembrado muita coisa do avô, da mãe... não dá mesmo para não se emocionar". De certa forma, ouvir ali, naquelas circunstâncias, aquela leitura, deve parecer quase como ouvir o próprio Moreira Campos falando... Ao final do conto, uma enorme salva de palmas encheu a sala. O livro, que seria originalmente publicado em 1990, por conta do falecimento de Moreira, acabou guardado por vinte anos. Agora, por iniciativa de Carolina, ele seria uma das grandes atrações do evento, a ser lançado no dia seguinte, lá mesmo na Bienal.



Jorge então passou a palavra, e antes de começar a falar sobre Moreira Campos, Adriano Espínola disse a princípio achar estranho chamá-lo assim, pois sempre passou a vida o chamando de tio Zé Maria.

Moreira era um admirável contador de histórias, sobretudo anedotas. O contar para ele era natural, contava tudo com muita graça, mesmo com seu ar sério, encantava a todos. – Adriano Espínola

Moreira Campos é um escritor muito importante, deveria ser mais conhecido no Brasil – e Adriano contou que certa vez estava num festival literário no Rio, quando um homem ganhou um prêmio e lembrou, antes de tudo, de Moreira. Adriano achou aquilo incrível, percebendo a força que ele tem e que ainda pode vir a ter.

A maneira como Adriano falava, com grande propriedade, dando o tom certo ao que dizia, cativava de imediato. Era visível que também tinha uma veia contadora de histórias. Imaginei que com certeza ele aprendeu muito com o tio Zé Maria.



E então, Adriano abordou novamente as quatro lições. A lição da água foi a primeira. Tudo começou quando ele, há muito tempo, ainda estudante de letras, costumava, na saída das aulas, passar na casa de Moreira Campos, na época próxima ao campus do Benfica, para conversarem, ou "literarem". Em um desses dias, Adriano estava refletindo sobre o real valor da literatura, e disse a seu tio que obras literárias, por provirem da imaginação, não passam, portanto de uma mentira. Moreira não se abalou, e disse: É, pode até ser uma mentira, mas as fábulas de La Fontaine têm mais verdade humana do que essa parede, e apontou logo para uma parede a seu lado. E continuou: É mentira que uma raposa possa falar e pensar, mas o que ela diz, na fábula, sobre uvas que não pôde alcançar, a verdade humana que está aí, meu velho, vai durar mais que esta parede! Moreira Campos não poderia estar mais correto; a parede a qual ele se referia já não existe hoje em dia, uma vez que sua casa foi demolida em 2005 para dar lugar a uma expansão de estacionamento do shopping Benfica... mas a verdade humana, essa sem dúvida, perdura e sempre perdurará. Adriano assim entenderia o sentido da literatura, sua atemporalidade, através da lição da parede.

Para as demais lições, encontrei esse link, de uma fala proferida pelo próprio Adriano, em 1994, poucos meses após o falecimento de Moreira. Aqui, ele relembra o convívio com o escritor, bem como as célebres lições de seu legado: Quatro lições do mestre Moreira Campos.

E a mesa então prosseguiu:

A literatura tem que ser clara como um copo d'água – Adriano, citando a lição do copo d'água.

É um autor extremamente visual, como João Cabral. Com poucas palavras e recursos, arma toda uma cena com funcionalidade imediata. Moreira, contudo, não gostava de João Cabral.  – Adriano

Machado de Assis sempre foi um grande mestre, para Moreira. – Adriano

Moreira tinha uma grande admiração por Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Guimarães Rosa – Adriano.



Outro grande mestre do conto que também foi bastante lembrado na mesa foi o dramaturgo russo Anton Tchékhov. Sua obra, caracterizada sobretudo por narrativas curtas, influenciou inúmeros outros escritores, como Katherine Mansfield, Virginia Woolf e o próprio Moreira Campos. Através de um tema de Tchékhov, a metáfora da mosca prisioneira, surgiram inúmeros textos com temática similar, como A Mosca, de Mansfield, O vestido novo, de Woolf e A Grande Mosca no copo de Leite, de Moreira. O contista cearense ainda levou a temática tchekhoviana a outra vertente. Em vez da ideia da mosca retida, presa, incapaz de soltar-se, da dor do viver aprisionado, Moreira parte de um sentimento de injustiça com uma situação para criar uma revolta, uma indignação. O conto é forte, talvez para propor essa sensação e a metáfora então passa a representar coragem e resistência, em um tom menos denso do que visto em Tchékhov, apesar do caráter sádico usado pelo cearense. O conto pode ser lido aqui.

Ainda sobre Tchékhov, Adriano Espínola disse que Moreira Campos costumava citar e adotar muito também um outro princípio dramático provindo do escritor russo, conhecido atualmente como a arma de Tchékhov. Basicamente, consiste em evitar adornos, objetos e qualquer elemento desnecessário à história. Se foi citado um revólver, por exemplo, ele deverá ser usado:

Ninguém deve colocar um rifle carregado no palco se ninguém estiver pensando em dispará-lo. – Anton Tchékhov

A ideia é simples: não se demorar em detalhes irrelevantes, sem importância, filtrar ao máximo apenas o essencial para o desenvolvimento da história. O termo "arma", pelo que pesquisei, é bem genérico, podendo aqui estar qualquer outro elemento que ocupe similar função. Moreira Campos, segundo Adriano Espínola, a lembrava com a imagem de uma espingarda, e ia até um pouco além da máxima tchekhoviana, ao dizer que a arma não só deveria ser usada, como deveria ser colocada logo de volta no lugar.

Num conto, todos os elementos têm que ter uma coesão extraordinária, é preciso ter coerência para tudo. – Adriano.

Tchékhov dizia que se deve escrever contos sobre coisas longas, de formas curtas. A concisão é irmã do talento. Quanto mais conciso, mais forte. – Adriano.

Para mim, Moreira foi um modelo, me deu a medida da dignidade do que é ser escritor. Dava grande dignidade ao ofício de escrever. Assumiu isso – elegância, dignidade, dimensão extraordinária – para mim e para todos os que circulavam perto dele. – Adriano.

Neste ponto, olhei o relógio, constatando que a mesa já estava prestes a terminar. Que pena, agora que a conversa estava tão produtiva... como passou depressa.

Era um homem de convívio agradável. Educado, mas implacável na observação do bicho homem; grande observador das fraquezas humanas. – Adriano

Nos momentos finais, uma nota de Raquel de Queiroz, que já havia sido lida no início por Ana Miranda, foi lida novamente por Adriano. A nota encontra-se na orelha do livro Dizem que os cães vêem coisas:

Como prosador, poucos, neste País, terão um tal seguro domínio do idioma, um tal senso de aproveitamento de valores, prosa tão límpida, formosa e equilibrada, tanto foge à vulgaridade dos efeitos fáceis quanto aos preciosismos e invenções. Moreira Campos usa e enriquece a língua portuguesa do Brasil com sabedoria de professor e bom gosto de artista verdadeiro. – Rachel de Queiroz

O pequeno, mas interessado público da sala começou a aplaudir, mas Adriano ainda tinha uma última coisa a dizer:

Moreira Campos, por opção, nunca quis sair de sua terra, mas não é nenhum absurdo dizer que ele é um dos maiores nomes da literatura mundial, tanto quanto Balzac, Fitzgerald ou Tchékhov. Moreira é o pai de todos os contistas, escritores, do passado, presente e futuro, aqui do Ceará. – Adriano.



E eclodiram aplausos vivos e entusiasmados. Mais uma mesa que chegava ao fim, e mais uma vez a sensação de enriquecimento por ter podido assisti-la. O trio, Ana Miranda, Adriano Espínola e Jorge Pieiro levantou-se, sendo logo cumprimentado por amigos e parabenizado pelo belo debate. Os rostos de todos faiscavam, satisfeitos. O meu também. Registrei, tanto quanto possível, estes momentos. Não havia, e nem fazia sentido haver, qualquer mesa de autógrafos ou similar. O objetivo daquela mesa não era vender livros, mas homenagear Moreira Campos. Os palestrantes ainda dedicaram uns bons minutos a conversar com o público, ali mesmo na sala, antes do encerramento total.

Da esquerda para a direita: Anderson Sandes, Adriano Espínola, Jorge Pieiro, Carolina Campos e Ana Miranda





Levei muita coisa desse momento, e acho que só percebo melhor isso agora, após escrever este texto. Além da questão prática, da estética literária, as histórias de vida que pude, de certa forma, conhecer, desde a de Pedro Salgueiro, a sutil aproximação do leitor com o escritor, que se deu quase como um aprendiz conhecendo seu mestre; a relação entre Moreira Campos e Adriano Espínola, que com certeza era bastante especial, quase fraternal, como se Moreira pudesse responder a quase tudo que Adriano perguntasse; e até a expressão emocionada no rosto de Carolina Campos, uma marca de um sentimento único, puro, que se manifestou verdadeiramente, a saudade de seu avô. Uma palestra que me fez crescer muito como escritor, mas bem mais como ser humano.




A seguir, a oitava e última postagem desta série, centrada na participação de Xico Sá e Ricardo Kelmer, com a mesa O conto nosso de cada dia.