Frases


"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



domingo, 1 de abril de 2012

Livro: O Exército De Um Homem Só


Fotos: Denis Akel

Ah, O Exército de um homem só! Há muito, muito tempo, estava de olho nesse livro. De autoria de Moacyr Scliar, talvez a maior de minhas referências e influências, cuja obra comecei a conhecer ainda na escola, com o livro Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar, que, de alguma forma, me inclinou a descobrir o prazer e gosto pela leitura e, principalmente, pela escrita, como já comentei aqui em outros textos.

Antes de começar esta leitura, lembro que de cara já tinha sido fisgado pelo título, enquanto ainda descobria quem era Scliar, anos atrás. Como poderia haver um exército de um só homem? Quem seria este homem? Pelo quê e contra quem lutaria? Estava ansioso por estas respostas. Agora, depois de ter passado alguns meses imerso em suas páginas, percebo que tudo é muito mais complexo do que eu poderia imaginar. Tentarei expor alguns pontos interessantes da obra, sem me aprofundar muito, nas linhas seguintes.

A primeira imagem que talvez venha à cabeça é que o livro gire em torno de guerras, conflitos – o que de fato acontece, porém a maior guerra desta história não é exatamente um conflito armado, mas a que o protagonista, Mayer Guinzburg, traz acesa dentro de si. Uma guerra por um mundo mais justo, por uma nova sociedade, por tudo o que acredita, um desejo incessante; chama que jamais se extinguirá.



Mayer Guinzburg é um personagem fascinante. Judeu, emigrante russo, chegou a Porto Alegre ainda menino, na década de 1920. Tem um forte lado comunista, marxista, que o impele a querer mudar a  sociedade, que tanto o desagrada. Suas ideias o transformam em uma figura marcante da sociedade gaúcha, principalmente devido a sua empolgação e euforia com Birobidjan, uma colônia coletiva de judeus na Rússia, que receberia incentivos do governo soviético. De tanto falar nela, acabou apelidado, sem mais delongas, Capitão Birobidjan.




Qual seria a nova sociedade almejada pelo Capitão? Seu sonho é extremente utópico, quase uma alucinação que o persegue, o comanda (a ponto de até ver homenzinhos, que só ele vê, de baixa estatura, que o aplaudem a cada ação). Desobedeceria o pai, os costumes judaícos, teria crises familiares, para em seguida lutar, sozinho, pelo seu ideal.

Um dos grandes atrativos desta obra, na minha opinião, é o intenso ar de romance histórico que percorre suas páginas. Fatos reais se misturam e enlaçam à ficção, dando-lhe uma aura incrivelmente realista. A situação de Israel, os conflitos travados com o Egito, os nomes envolvidos neles, tudo é perfeitamente encaixado. Chega-se a pensar, por um momento, que o Capitão Birobidjan realmente existiu, uma vez que nomes como Ben Gurion, Stalin e Rosa Luxemburgo são frequentemente citados. De certa forma, o livro é quase como uma aula de história. Toda essa apropriação histórica, presente em muitas obras de Scliar, contribui para integrar a cultura judaica à cultura gaúcha e, consequentemente, à brasileira.

Além disso, o texto fluente, leve, alegre, otimista, transborda sensações. Outro detalhe que o maximiza é o humor negro, a ironia típica de Moacyr Scliar, que faz o Capitão passar pelas mais inusitadas situações, sempre com seu ar lunático, revolucionário, sempre disposto a realizar seu sonho utópico, e completamente alheio a nada que não fosse isso. Por essas e outras razões, inclusive, Mayer Guinzburg ou Capitão Birobidjan, é sempre comparado ao lendário Dom Quixote, obra máxima de Miguel de Cervantes. O ar quixotesco neste texto de Scliar é mesmo notório, uma vez que percebemos as semelhanças entre ambos os protagonistas. O próprio Moacyr Scliar respondeu a essa inevitável comparação com o seguinte:

"Bem, para mim a comparação é elogiosa. Mas acho, sim, que o personagem tem muito de 'Dom Quixote', como tinham todos os jovens de minha geração que lutavam por uma sociedade mais justa".

Brilhantemente narrado em terceira pessoa, acompanhamos toda a trajetória da vida de Guinzburg, através de um ano ou conjunto de anos importantes. É fantástico observar as mudanças que vão ocorrendo no personagem com o decorrer do tempo, as ideias que são mantidas, a rebeldia, tudo. O narrador, ainda, muitas vezes quase alimenta a loucura de Mayer, chamando-o de Capitão Birobidjan e tornando mais verossímeis seus delírios. O livro também não entrega tudo de bandeja, e nos mostra vários elementos semi definidos, vários trechos onde encaixam-se várias acepções, de uma maneira bem característica ao texto de Moacyr Scliar, que nasce de um mar de dúvidas e incertezas.




O Exército de um Homem Só é considerado uma das principais obras de ficção dos anos 70 (inspirou até uma música do Engenheiros do Hawaii) e, curiosamente, foi apenas o segundo romance de Scliar. Uma outra curiosidade que descobri há pouco: à época da publicação do livro, em meados de 1973, Moacyr Scliar visitou Érico Veríssimo para conversar sobre literatura. Que conversa não deve ter sido!

Após refletir por um tempo, depois de terminar o livro, percebi que a história até se confunde, de certa maneira, com a do próprio Scliar, que é filho de imigrantes judeus. Sob certa ótica, esse tema está invariavelmente presente em suas obras. A ambientação no Bom Fim, bairro de Porto Alegre onde o escritor nasceu, as citações, tudo traz traços de suas próprias vivências, inclusive o desejo por um mundo mais justo.

Para encerrar esse texto, falarei um poquinho sobre esse grande autor que muito representa para mim, e para nosso cenário literário.

Moacyr Scliar, médico, escritor, professor, jornalista, autor de cerca de oitenta livros, com forte ressonância internacional, membro ativo da Academia Brasileira de Letras, presença constante em seminários, feiras e eventos literários no país e no mundo. Scliar viajava muito, era um homem em trânsito. Todos brincavam dizendo não entender como ele conseguia estar em tantos locais em tão pouco intervalo de tempo. E como conseguia escrever tanto, entre livros e colunas em jornais, e como ainda dava palestras na área médica, e como nunca faltava às sessões da ABL. Scliar era isso tudo e muito mais, um grande contador de histórias. Ele dizia, bem-humorado, que o escritor é aquele que escreve, então não fazia nada além do seu "trabalho".




Veio a falecer em fevereiro do ano passado. Infelizmente não tive o prazer de conhecê-lo, esse que sem dúvida era por si só um "exército de um homem só". Imagino que todos nós devemos ser um pouco como Mayer Guinzburg, que nunca desistiu de seu ideal, por mais absurdo e inatingível que este pudesse parecer.

Dêem uma chance a este belo livro, que diverte, empolga, emociona, entristece, assusta, anima, arrebata; um jogo de sensações, daquele jeito que só Moacyr Scliar soube, sabe, e saberá fazer, inclusive às futuras gerações, àqueles que tentarão mais uma vez iniciar a construção de uma nova sociedade.



Essa não é a primeira, e com certeza não será a última vez que falo de Moacyr Scliar por aqui. Vejam mais sobre ele nos posts abaixo:

Palavras de Moacyr Scliar (1º de março de 2010)
Moacyr Scliar... (1º de março de 2011)