Frases


"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (VI - Literatura e Loucura)


Fotos: Denis Akel

Para esta sexta postagem, uma das mesas mais surpreendentes e reveladoras que tive o prazer de assistir nesta Bienal, Literatura e loucura, com Jackson Sampaio. Aconteceu na quinta-feira, 11 de dezembro, às 15h, no Centro de Eventos, na já tradicional sala 2 do mezanino 2.

Quando soube que haveria uma mesa com esse tema, fiquei bastante entusiasmado. A ideia e associação da arte literária com algum tipo de distúrbio psicótico é sempre recorrente, desde tempos remotos, sendo difundida, partilhada e defendida por inúmeros intelectuais do brasil e do mundo. De cara até lembrei de uma participação do grande Rubem Fonseca, em 2012, num evento literário em Portugal, que falava exatamente disso, mas deixarei isto para o fim da postagem. Embora agora eu ainda não soubesse quem era Jackson Sampaio, me inspirou grande curiosidade em conhecê-lo, por tratar esse tema tão interessante e necessário, e vi que provavelmente estava diante de mais um momento marcante deste evento.

Nesta quinta-feira, eu tinha chegado ainda de manhã à Bienal, com o intuito de explorar mais um pouco a feira, as oportunidades. Almoçaria lá mesmo, apesar das fracas opções de pratos e por volta das 14:40 seguiria já para a sala da palestra. Diego Akel, meu irmão, desta vez estava me acompanhando. Ele, inclusive, disse que já conhecia nosso palestrante, Jackson Sampaio, que agora eu soube ser o reitor da UECE, uma das principais universidades aqui de Fortaleza. Diego, que já estudara lá, disse que ele era muito conhecido e conceituado. Fiquei logo pensando "Puxa, o reitor da universidade... com certeza vai dar praticamente uma aula em forma de palestra!", de modo que a excitação só aumentava.

Como já mencionei nas postagens anteriores, era comum todas as mesas e palestras atrasarem, às vezes menos, às vezes mais, o atraso parecia fazer parte do cronograma. Acostumado a isso, resolvi dessa vez chegar mais perto do horário, a fim de passar menos tempo esperando. Contudo, mesmo faltando 15 minutos para as 15h, quando cheguei me deparei com a sala inteiramente vazia, exceto o rapaz que cuidava do sistema de som/vídeo, que na ocasião até me tomou como o palestrante. Desfiz a confusão e ele disse que já poderíamos entrar, se não nos importássemos com o frio da sala. Ora, justamente por isso que eu estava com aquela grossa camisa gola polo, impossível de se usar em casa, nesse calor doentio, mas maravilhosamente boa ali. Aliás, nunca é demais lembrar que os ares-condicionados do Centro de Eventos continuam ótimos. Tomamos, então, lugares bem à frente, pertinho do palco, onde àquela hora as duas poltronas ainda aguardavam, vazias.

Embora marcada para as 15h, foi só nesse horário que começaram a chegar as primeiras pessoas, inclusive o próprio palestrante, Jackson Sampaio. Como falei, ainda não o conhecia, mas Diego sim. E quando surgiu aquele senhor que aparentava grande sabedoria e propriedade, perguntei a meu irmão se ele era Jackson. Diego confirmou com a cabeça. O semblante sério, concentrado, do professor só me fez ter mais certeza de que coisa boa estava por vir. A sala começou a ser ocupada, mas percebi que aqui também haveria um público bem pequeno, o que não seria ruim, se fosse interessado. Uma câmera foi logo instalada num tripé, bem no centro da sala, provavelmente para registrar a conversa, o que parecia ser um hábito comum (já tinha visto em outras), embora eu já soubesse muito bem que esse registro provavelmente não seria divulgado depois.

Marisa Aderaldo, professora de literatura hispano-americana, seria a mediadora, e quando, por volta de 15:20, todos já haviam sentado, ela deu início aos trabalhos. O professor Jackson, então, percebendo a fraca frequência no auditório, sugeriu que todos que estivessem sentados atrás viessem mais para a frente, e os da frente fossem ainda mais para frente. Mais do que isso, ele mesmo puxou algumas das cadeiras das primeiras fileiras, sugerindo que todos fizessem o mesmo, e meio que as circundassem em torno do palco. Uns aceitaram, colocando a cadeira para a frente, outros apenas se deslocaram para uma fileira mais próxima. Com todos já mais perto do coração da conversa, Marisa fez uma breve apresentação do convidado, e aproveitei para conhecer um pouco mais sobre ele. Jackson Sampaio tem formação em medicina, com especialização em psiquiatria. Exerceu diversos cargos em hospitais e em inúmeras universidades pelo Brasil. É autor de diversos livros e publicações científicas, tendo também uma respeitável obra poética e literária. Agora pensei alguma coisa como "Nossa, com uma carreira tão específica, ele ainda se dedica às letras..." e não pude deixar de lembrar do saudoso Moacyr Scliar, um de meus escritores favoritos, também médico.

Jackson então começou, dando continuidade ao que Marisa havia inicialmente proposto, ao falar que boa parte de sua obra, já publicada em vários idiomas, agora começava a ser publicada em húngaro. Ele disse que isso é divertido, pois pela primeira vez não conseguirá entender o que escreve. Ainda, o professor falou um pouco sobre a curiosa origem da língua húngara, desde os tempos dos Montes Urais. Suas palavras pareciam cobertas de grande embasamento, de modo que não havia como questionar ou duvidar. A princípio, abordou literatura e o ato da criação literária. Seguem algumas colocações de Jackson que pude recolher deste começo, antes de necessariamente se entrar no clímax da palestra:

A literatura não deve ser carreira ou orgulho, deve ser como respirar. Toda expressão artística tem a ver com humildade e democracia. 

Se eu não me expresso, eu não sou.

A poesia é rigorosamente fácil, comparada às artes plásticas. Ela pode vir a qualquer hora. 

Não é preciso ser uma pessoa culta para ser um artista. 

Logo, o professor começou a penetrar no tema-base, a relação entre literatura e loucura, estabelecendo interessantes correlações:

A grande vantagem do poeta é que ele vai, finge, e volta. O poeta é um psicótico que alucina de maneira controlada. O esquizofrênico não.

Toda a arte está sempre escapando daquilo que é comum, que é consenso, que é verdade. 

A inutilidade da poesia atual se traduz em enorme liberdade.

Não importa o substrato onde se escreve. Pode ser uma tabuleta ou um tablet, um papel ou pergaminho, você sempre encontra um jeito de se comunicar dentro de um código.

Há momentos em que é preciso produzir algo que ninguém entenda. 

A psicose é simplesmente quando alguém constrói perguntas e respostas que só ele entende.

Exemplificando esses conceitos, citou uma cena de um filme do italiano Pier Pasolini, no qual um pintor quer pintar algo que ninguém entenda, evidenciando traços de uma psicose, e ainda talvez um reflexo do próprio Pasolini, que também era pintor. A cada palavra, sentença, mais me interessei por aquele assunto. O professor falava com grande presença, como que dando mesmo uma aula, com uma dicção e ritmo precisos, que dava gosto de se ouvir.




Grandes poetas eram doentes mentais. Grandes poetas também não eram. Não é uma relação de causa-efeito. 

Gosto muito da metáfora bíblica de Adão, de dar nomes às coisas, dar nomes aos sem nomes. Deus cria Adão e Adão cria a língua. Os escritores, os poetas, sobretudo, continuam o trabalho de Adão, continuam dando nomes, a coisas e sentidos sem nomes.

Jackson contou a peculiar história da origem da palavra maluco, que se relaciona com o topônimo (nome dado a uma localidade) Malucas, (Ilhas Molucas, na Indonésia), partindo do vocábulo local Maluku, em consequência da impressão que os malucos, habitantes daquelas ilhas, teriam causado aos portugueses, pela ação sangrenta e prolongada, de quem luta feroz e cegamente, durante o levantamento que sustentaram em 1570.

Boa parte das palavras ditas pelo professor Jackson vinham acompanhadas de suas origens e curiosidades, de modo que estávamos também tendo quase uma aula de etimologia. O termo 'louco' porém, não foi muito explorado por, segundo o professor, este ter uma origem bastante obscura, não se chegando a um concesso. Ele ainda mencionou algumas possibilidades, e disse que se alguém soubesse mais, se pronunciasse, o que não aconteceu.

Falou da curiosa origem de Gotham City, como sendo o apelido carinhoso de Nova Iorque. A história conta que, segundos provérbios ingleses, haveria uma vila chamada Gotham ou Gottam, significando Goat's Town (Cidade das Cabras) em antigo anglo-saxão. As pessoas que moravam nessa vila eram consideradas pouco inteligentes, bobas, talvez porque a cabra fosse considerada um animal burro. Dizem ainda que na verdade as pessoas só se faziam de bobas, para evitar a ira do rei John, assim desviando o rei da rota da vila. Jackson desenvolveu mais um pouco, e concluiu brincando: estão vendo até onde uma conversa como essa pode nos levar? Ao Batman! Risos gerais preencheram o auditório.

Todos os super-heróis são esquizofrênicos, são duplos. Quem são realmente?

Loucura, hoje, é todo comportamento que não se ajustar ao ideal que uma sociedade tenha de sim mesmo. A palavra deixou de habitar o mundo da psiquiatria. Por isso, quem faz poesia, só pode ser louco (risos). Poesia, uma coisa que não tem qualquer valor de troca. 

A poesia é o oposto da Coca-cola. O máximo valor de troca pelo menor valor de uso. O valor da Coca-cola é o valor que o marketing cria.

A poesia hoje não tem quase nenhum valor de troca, mas o máximo valor de uso, pois segue dando nome ao inominável, e dando sentido àquilo que não sabemos que sentimos. 

O conceito de novo e velho não tem nada a ver com arte, com poesia. Os autores antigos, gregos, são bem mais interessantes que a revista Piauí. 

Uma boa poesia não significa que seus sentimentos são bons.




Com pouco mais de uma hora decorridos, a palestra se abriu para perguntas do público. A primeira pergunta foi na verdade um pedido, para que o professor fizesse uma reflexão sobre um possível elogio à loucura, ao que Jackson respondeu em vários segmentos, dos quais destaco os centrais:

A angústia dos jovens de hoje é simultaneamente quererem e não quererem ter estatuto.

A arte é reconhecida pela fruição de um outro. 

O desabar na psicose é desabar num mundo sem sentido. Quando se delira, mais se aprofunda a lógica psicótica do que a supera. 

Disney digeriu e cuspiu todas as histórias da idade média. De origem nas histórias dos irmão Grimm, elas perderam sua essência. 

Carolina Campos, neta do contista Moreira Campos, que mais uma vez estava presente a um debate, fez um pequeno aparte, citando o artigo "Escrever", do poeta inglês W. H. Auden, que lera na publicação Serrote nº16. Auden é considerado o maior poeta inglês do século XX, sua obra influenciou e influencia gerações de poetas. Uma de suas célebres citações: "Por que você quer escrever poesia?" Se o jovem responde: "Tenho coisas importantes a dizer", então não é um poeta. Se responde: 'Gosto de curtir as palavras, ouvindo o que elas têm a dizer', então talvez se torne um poeta." Carolina contou ainda que sua mãe, a escritora Natércia Campos, costumava dizer que um escritor deve sempre começar com um 'era uma vez' e terminar com um fecho, que não se pode viver no conto.

O escritor não tem que esperar esse insight criativo, não precisa enlouquecer para produzir. – Jackson Sampaio

Não tenho nenhuma alucinação que tive na juventude, tenho liberdade por não ter mais esses desejos. – Jackson Sampaio

As perguntas iam se tornando mais comentários do que questionamentos, pedindo a ele que discorresse mais sobre alguns temas, explorando assuntos paralelos que se ramificavam dos centrais. O professor seguia, expondo seus ideais:

Nós temos uma sociedade que acha que não tem marca. Temos uma volúpia quase neurótica pela juventude. Hoje não há limites para adolescentes, muitas pessoas de 50, 60 anos, levam a vida sem qualquer preocupação, como se fossem adolescentes.

Tudo o que é sólido desmancha no ar – Jackson cita Marx, em seu pensamento metafórico, na questão da modernidade, da sociedade burguesa, em contraponto à atual.

Em certo momento, o professor foi perguntado a respeito de seu processo de criação, se costumar registrar todas suas ideias, e se por acaso se levanta do sono para anotar alguma coisa. Jackson foi direto: O texto é uma expressão, se tem intenção, já virou livro de auto-ajuda. Toda arte é policênica. Todo artigo científico é monocênico. Se uma ideia não permanece na minha memória no dia seguinte, é porque não era boa. Não costumo me levantar do sono para anotar ideia nenhuma.




O professor falou também de um exercício que lhe foi proposto por um jornal, o qual ele já faz há anos. Consiste em se por ideias complexas em apenas 2000 caracteres com espaço. Disse que é uma experiência muita rica, na qual visa sempre manter a clareza, e isso lhe permite controlar e filtrar muito bem suas ideias.

Prestes a concluir a palestra, Jackson mencionou (e repetiu várias vezes para que se pudesse anotar) ainda as três modalidades da poesia, ou três modos retóricos, de acordo com o poeta americano Ezra Pound:

Melopeia – Aquela em que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta seu significado.
Fanopeia – Um lance de imagens sobre a imaginação visual
Logopeia – "A dança do intelecto entre as palavras", que trabalha no domínio específico das manifestações verbais e não se pode conter em música ou em plástica.

Uma poesia tem que estar próxima da música. – Jackson Sampaio

Após esta última colocação, seguiu-se um breve silêncio e percebi que afinal chegáramos ao fim da palestra. A professora Marisa então assumiu a palavra: Não sabemos o que está saindo na cabeça de cada um, mas com certeza estamos saindo dessa conversa mais ricos, conclui, sorrindo. Uma grande salva de palmas se fez ouvir. Jackson então finalizou: Quem veio para cá, foi atraído pela loucura ou pela literatura? Deixando o público numa inusitada – e bem-vinda – interrogação, propondo uma reflexão que afinal só poderia começar ali, no final da conversa. Bem, acredito que fui mesmo por ambas, para ver como uma alimentava a outra, e o resultado foi surpreendente.

Ao contrário de boa parte das mesas e palestras anteriores, nesta não houve momento para autógrafos ou nada parecido, o que foi de certa forma lamentável. Fiquei muito curioso para conhecer os livros de Jackson Sampaio, sua obra poética, ou mesmo os livros acadêmicos. O professor apenas conversou com um ou outro, nos momentos pós-palestra e logo deixou a sala.

Uma palestra-aula brilhantemente conduzida. A iniciativa de Jackson em aproximar as cadeiras do palco, quebrando o protocolo, a tornou uma conversa com ar mais informal, quase como se todos tivessem se reunido para escutar histórias do pai ou de um tio que há muito não viam. E para encerrar a postagem, aproveitando o tema da loucura, volto a falar na intervenção de Rubem Fonseca, que mencionei lá no início, e que cabe tão bem aqui. Quando saí do mezanino 2, da palestra de Jackson, a todo instante lembrava de Rubem, do seu "Nós aqui nessa mesa somos todos loucos, cada um à sua maneira", de modo que acho a circunstância perfeita para trazer o vídeo à tona:




Na ocasião, Rubem citou, em um discurso cativante, o que se precisa ser para ser escritor: louco, alfabetizado, motivado, paciente e imaginativo. A citação de Doctorow: Escrever é uma forma aceita de esquizofrenia, com a qual ele inicia sua fala, pode resumir e explicar muito bem toda essa questão de literatura x loucura, somada a tudo o que foi dito por Jackson Sampaio em sua palestra.

A seguir, a penúltima postagem desta série, com a mesa A Influência estética de Moreira Campos, com Ana Miranda, Adriano Espínola e Jorge Pieiro.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (V - Produção literária brasileira contemporânea)


Fotos: Denis Akel

Seguindo com a série relativa à Bienal do Livro do Ceará 2014, chego agora à quinta postagem, centrada na participação do escritor Luiz Ruffato, na mesa Produção literária brasileira contemporânea. A palestra, mediada por Sarah Diva, aconteceu na mesma sala que as anteriores, no mezanino 2, do Centro de Eventos, no dia 9 de dezembro, uma terça-feira, 19:00.

Ver o nome de Luiz Ruffato entre os destaques da programação desta Bienal foi uma grande satisfação. O escritor mineiro talvez possa ser considerado um dos mais destacáveis escritores brasileiros em atividade, com uma carreira relativamente nova, mas significativa. Já o conhecia de nome de inúmeros festivais, entrevistas e palestras, no âmbito literário e jornalístico. Acho, porém, que a organização da Bienal poderia ter dado mais importância a Ruffato, uma vez que não havia sequer uma foto sua no folheto de programação, diferente de Lira Neto ou Xico Sá, outros "pesos pesados" que puxariam – ou deveriam puxar – os maiores públicos. Uma palestra que tivesse Luis Ruffato para tratar da questão da produção literária brasileira sem dúvida seria de suma importância num evento como a Bienal, e agora, um tempo depois, posso afirmar sem dúvida que ela foi tão boa quanto a de Lira e bastante superior à de Xico.

Cheguei por volta das 18:50. Percebi que não adiantava chegar muito cedo, uma vez que as mesas e palestras sempre atrasavam consideravelmente. Subi direto ao mezanino 2, pois seria mais um dia que não pretendia comprar livros nos expositores. Logo de cara, já vi Luiz Ruffato, à entrada da sala. Ao lado do escritor, a tradicional mesinha com seus livros à venda. Entrei e tomei um lugar, bem à frente; a sala estava vaga, com um público bem reduzido, talvez o menor que eu tenha visto até então. Felizmente, até o final, este público aumentaria, não muito, mas aumentaria. Abri o notebook, que dessa vez seria a peça base para anotar trechos e apontamentos e esperei, observando a movimentação crescente à minha volta.

Após as introduções e patrocinadores, Sarah Diva e Luiz Ruffato assumiram suas posições no palco. Sarah Diva, professora de literatura comparada e mestra em estudos literários, estaria à frente desta conversa, que enfocaria não só um panorama da produção literária brasileira, mas também um pouco da vida e obra do próprio Ruffato.

Com a palavra, Sarah fez uma breve apresentação de Ruffato, mencionando que seu primeiro livro, Histórias de Remorsos e Rancores, data de 1998, e que de lá para cá já tem 16 anos de uma carreira literária de grande sucesso, traduzido já para várias línguas, passando por vários gêneros – uma carreira extremamente rápida. Procurei não dar muita atenção a esses dados, números e estatísticas, que muitas vezes não representam a real grandeza do artista, apenas servindo para meio que "justificar" o fato de ele estar ali, no centro dos holofotes, como se, não fosse tudo isso, não estivesse apto àquele momento. Esta é sempre uma boa reflexão a se fazer.

Sarah então começou perguntando como ele se sente hoje, se olha para o passado ou se está sempre pensando no próximo projeto literário. Luiz Ruffato, primeiramente, agradeceu o convite e a todos os que estavam ali presente, em plena terça à noite. Em seguida, disse que é de uma família pobre, que por isso não teve qualquer registro fotográfico de sua infância e adolescência. Para ele, é quase como se tivesse duas vidas. Não tem lembrança nenhuma de ter qualquer interesse de pensar em futuro. Em sua infância e adolescência, desejava apenas ser uma pessoa honesta, ter estudo, seguir os ideais que seus pais desejavam para ele. Falou ainda da época em que fez tornearia mecânica, que seus pais acharam que ele finalmente deslancharia. De lá, acabou fazendo um curso, depois chegou ao jornalismo e em seguida à literatura. Ruffato comentou ainda que se sentia ignorante perto de seus colegas de universidade. Para mudar isso, começou a ler compulsivamente.

Há dois grandes momentos de pensar na literatura brasileira. No século XIX, com José de Alencar, e no XX, com Mário de Andrade. Não considero Mário de Andrade um grande escritor, mas é essencial para se entender a literatura brasileira, a partir do que aconteceu no século XIX. Embora Andrade não cite Alencar de maneira explícita, está sempre dialogando com ele. – Luiz Ruffato

Ruffato contou como José Lins do Rego, a quem considera absolutamente verossímil no universo da literatura rural, lhe foi uma grande influência, no início de sua carreira. Inicialmente, percebeu que não havia representação do trabalhador urbano na literatura brasileira, por isso decidiu escrever sobre isso, focar nesse tema, tal como Rego focou sua literatura regional. Ruffato passou 15 anos querendo, mas não podendo, por não ter competência para tal. Então partiu de um exercício para buscar a estética necessária para conseguir escrever finalmente o primeiro romance.

É importante ter pretensão para conseguir construir um lugar singular na literatura brasileira. Como não havia ninguém que se dedicasse àquele momento, decidi me dedicar a ele. Publicava contos, mas chamava de romances, e vendia. Me diziam que contos não vendiam, não davam nada.  – Luiz Ruffato



Quando perguntado sobre a questão de prêmios, disse não estar preocupado com isso, mas sim com a construção de seu projeto literário, O Inferno Provisório, obra composta de cinco livros sobre o operariado brasileiro, concluída em 2011. Sarah completou, citando a metodologia de outros escritores, como Guimarães Rosa e Murilo Rubião, onde o primeiro cuida de seus textos como se fossem filhos, até a hora de publicar; o segundo os refazia exaustivamente.

Eu escrevo para leitores, não para pesquisadores. Nada contra pesquisadores, claro – Luiz Ruffato

A professora trouxe ainda à tona a série Amores Expressos, perguntando a Ruffato como foi a experiência de participar do projeto da editora Companhia das Letras, que levou 16 escritores a 16 cidades ao redor do mundo, com o objetivo de escrever um romance na volta. Aproveito para dizer o quão interessante é esse projeto, com sua proposta inovadora, que deveria servir de base para outros similares, uma vez que expande nosso eixo cultural, traz um pouco dessas cidades para cá, leva daqui para lá, encurtando distâncias e criando sonhos, sejam na ficção ou não. Foi produzida ainda uma série de 16 episódios, mini-documentários, nos quais se acompanha um pouco da vivência do escritor na cidade, bem como suas ideias e possibilidades de escrita. Infelizmente, esse conteúdo – que deveria estar sempre em evidência – fica fechado a passar vez ou outra em canais como o Arte 1 e TV Cultura. Na internet, encontrei somente trailers e teasers. Uma pena.

Sempre fui péssimo repórter, na época do jornalismo. Consegui me achar como editor. Como repórter, não conseguia cumprir pauta. Inventava coisas, escrevia horóscopos, escrevia cartas para eu mesmo responder, até ver que não dava. Fui o primeiro autor a ser convidado ao Amores Expressos, durante um carnaval com meu filho.

Na ocasião, inclusive, ele contou que a ligação veio para o celular de seu filho, pois nas palavras do próprio Ruffato: não tenho celular, nunca tive e nunca terei. O escritor, que inicialmente seria designado a Paris, disse que recusou a capital francesa, optando por Lisboa, pois queria um personagem seu, brasileiro, indo a terras portuguesas, e isso seria bem inverossímil de se ver em Paris.

Leio muito prosa de ficção, sou viciado. Gosto ainda de história e poesia. Sempre tenho três ou quatro livros de poesia. Não gosto de ler o livro inteiro. Gosto de ler o mesmo poema às vezes repetidas vezes. Tenho veneração por poesia por achá-la quase outro gênero, diferente de literatura. – Luiz Ruffato

O legal da poesia é republicar o mesmo livro sempre, bastando mudar o título, por um ou outro poema. As pessoas sempre vão comprá-lo. – Luiz Ruffato

Larguei o jornalismo em 2003, para o bem do jornalismo. – Luiz Ruffato

O escritor não pode ser acomodado. Precisa trabalhar todos os dias, se dedicar, não pode esperar que a esperança bata à sua porta. – Luiz Ruffato

Enquanto a conversa fluía, corri um pouco a atenção pela sala, prestando atenção às outras pessoas e a como elas pareciam ouvir aquilo. Perto de mim, duas tomavam notas com grande afinco. Suas canetas, intrépidas, não paravam de escrever; seus olhos pareciam brilhar a cada título de livro, cada fala de Ruffato, como que realizados. Fiquei curioso para saber quem eram, o que pretendiam, focados daquele jeito.

O que mata um escritor é a sensação de conforto. Não se pode virar uma máquina de repetição. Em cada livro meu, busquei uma sensação de desconforto.  – Luiz Ruffato

Com quase uma hora decorrida de palestra, Sarah Diva abriu para perguntas do público. A primeira pergunta foi sobre seus livros futuros, vinda de um canto da plateia que parecia abrigar os fãs e seguidores mais fervorosos do autor, que conheciam – ou deviam conhecer bem –  suas obras. Eles disseram ter visto Ruffato escrevendo alguma coisa ali nos arredores do Centro de Eventos e queriam saber do que se tratava. O escritor riu, disse que tem projetos para novos livros, mas ainda em estágios iniciais. Atualmente, tem se ocupado muito de sua coluna semanal no jornal El País, e era justamente o que estava escrevendo quando foi visto.

Coluna semanal dá uma trabalheira danada. Às vezes é preciso escrevê-la em todas as brechas possíveis. – Luiz Ruffato.

Ruffato citou uma pergunta que lhe foi feita pelo jornal Zero Hora. Em ocasião do final do ano, perguntaram-lhe: o que aprendeu em 2014? Não aprendi exatamente, mas aprofundei mais a amar as pessoas. O escritor falou ainda da crise que as eleições causaram nas pessoas, de separá-las, julgando seu modo de pensar, mas que nunca deixou de amar ou os amou menos por conta disso. Cada um é diferente do outro. Ninguém é igual.

Amar é um grande exercício de tolerância. – Luiz Ruffato

A vida pode ser inverossímil, a arte não. – Luiz Ruffato

As histórias fantásticas tem que ter uma coerência interna, a coerência da literatura, não da vida.  – Luiz Ruffato



Ainda dentro do tema, citou o escritor italiano Luigi Pirandello, que trabalha com o absurdo com a verdade da literatura, não da vida. A questão do tempo e espaço me interessam muito particularmente. Os romances do século XIX eram no tempo sucessivo, tudo tinha uma ordem para acontecer. Hoje em dia já devem ser em tempo simultâneo, onde tudo acontece ao mesmo tempo. O romance tradicional foi criado para a burguesia, para se contrapor à aristocracia. Nessa época, ele é totalmente simbólico; há o amor, há a dor, são signos. A burguesia então criou uma espécie de carteira de identidade, identificando portanto personagens.

Ruffato, além de dizer não usar celular, disse também não ter qualquer rede social, dando particular ênfase ao facebook. Quando perguntado do porquê não ter um perfil, disse simplesmente que não tem porque não lhe pagam, soltando uma gargalhada em seguida. Eu também adoraria ter um blog, mas como não teria retorno financeiro, prefiro não. Seu tom pareceu irônico demais, muito forçado, já quase querendo se tornar engraçado. Fiquei em dúvida se ele falava sério ou estava brincando, mas logo ele próprio acabaria se contradizendo, como observei mais a seguir.

Não tenho nada contra a internet, muito pelo contrário, acho que ela valorizou muito a literatura. Hoje em dia, todos estão escrevendo, todos estão publicando, e há ainda os militistas que criticam, sem motivo, as feiras de livros, as vendas de livros etc. Qual o problema de vender livros? Isso é ótimo para Fortaleza, é ótimo para o brasil. 

O escritor abordou também a arte abstrata, mencionando uma exposição que viu certa vez, que reunia inúmeros calçados jogados a um canto. Achou aquilo estranho, e tentou entendê-los de todo o jeito, mas não conseguiu. Na verdade, achou aquilo uma bobagem, uma besteira, e por isso se pôs a tentar desvendar aquilo, até que o curador lhe explicou que os sapatos ali amontoados tinham um sentido, cada um pertencera a uma pessoa, tinha deixado marcas, pegadas etc. Somente aí a mente do escritor se clareou, e ele passou a compreender melhor essa linha artística.

Ruffato, conforme observei em alguns momentos, demonstrava uma certa teatricidade no palco, com traquejos linguísticos que eram ganchos perfeitos para risadas e descontração, o que a princípio achei desnecessário, mas depois considerei talvez não ser realmente ruim, uma vez que pelo menos estava conseguindo ter a atenção de todos, à medida que explorava esse ou aquele assunto.

Explicou ainda os conceitos de romances com foco no realismo socialista e capitalista: realismo socialista, uma coisa horrorosa. Romances coletivos onde o homem comum não interessa, só interessava a história. Já o realismo capitalista é construído a partir das histórias individuais, tal como ficou O Inferno Provisório, que tenta escrever biografias de pessoas que não tem biografias, expor histórias de pessoas quase invisíveis. Jogar uma luz sobre pessoas que ninguém vê e não tem a menor importância. 

Queria colocar nomes nas ruas de pessoas que nunca tem seus nomes nas ruas, como "pipoqueiro fulano de tal" – Uma citação muito válida, que leva a uma contundente reflexão sobre dar importância a quem não a tem. Ainda, esta curiosa citação não foi por mero acaso, uma vez que o pai de Ruffato foi pipoqueiro e o próprio escritor também desempenhou o ofício, durante a juventude.

Perguntado sobre como as obras novas podem ficar no futuro, ele citou o filósofo alemão Heigel, que diz que quando você faz história, você não sabe que está fazendo história. Isso não deve ser preocupação do escritor, ele deve simplesmente escrever, e bem. O escritor não deve se preocupar com essas bobagens. A mesma pessoa tornou a perguntar: como chegar às editoras? através de concursos? Ruffato foi incisivo: não choramingar, batalhar. Se você acredita que é um escritor de verdade, vá à luta, tenha coragem. É uma batalha diária, acredite no seu trabalho. Quem está batalhando sempre vai à frente, diferente daquele que apenas diz que faz, e não faz. 

Para finalizar, o escritor paulista fez questão de citar dois livros que nenhum escritor pode deixar de ler, por questões estéticas. Fez ainda uma breve pausa de suspense antes de revele-los, com pompa de quem iria dizer quase um segredo indizível: Dom Quixote, toda a pós modernidade está nele; e Ilusões Perdidas, por ver toda essa coisa do escritor que quer chegar lá mas não faz por conta. Leia os dois livros, quem quiser ser escritor vai aprender um monte de coisas neles. 

Concluída a palestra, Luiz Ruffato foi aplaudido e logo se dirigiu a uma mesinha, ali mesmo na sala, onde se pôs a autografar livros, recebendo a todos com um simpático sorriso. Pensei em adquirir algum de seus livros, mas não ali, onde deviam estar caríssimos. Diferente do que aconteceu a Milton Hatoum, porém, vi livros de Ruffato em vários expositores da Bienal, logo seria melhor tentar pechinchar depois, embora seus livros não fossem uma prioridade para mim no momento. Fiz então mais algumas fotos do pós-palestra, e saí, com a mente fervilhando, considerando e refletindo tudo o que fora dito ali naquela noite tão produtiva.




Do lado de fora da sala, grande movimentação para comprar livros do autor, para em seguida pegar seu autógrafo



Só fico até agora pensando, porém, nesse lado capitalista, quase mercenário, que se desenhou na palestra quando ele disse que não tem facebook ou blog porque não lhe pagam. Ora, essa ideia é muito relativa. É muito conveniente um escritor como ele, já estabilizado, afirmar isto, mas e quanto aos que visam se tornarem escritores? Como devem começar? Essa pergunta foi feita lá, e foi respondida por ele. Ao dizer que o escritor iniciante deve batalhar, escrever sempre, Ruffato meio que se contradiz, afinal nos tempos de hoje, usar essas ferramentas, como blog/facebook, só aumenta a abrangência que um texto pode ter. E ainda, não é fácil mal começar já querendo dinheiro, esse pensamento talvez sequer devesse ser considerado, de modo que no início da estrada é preciso escrever puramente pelo prazer da escrita, pela conquista dessa batalha diária. Uma coisa que fiquei pensando até agora... será que ele não tem celular também porque não lhe pagam?

No mais, foi uma boa palestra, melhor do que eu poderia imaginar. Luiz Ruffato traçou um interessante panorama literário, desvelando conceitos, refinando ideias, clareando um entendimento e uma curiosidade que certamente poderia fazer aquela palestra durar bem mais do que durou. Mais um grande momento desta Bienal do Livro, mais um grande aprendizado.

Para a próxima postagem, a reveladora mesa Literatura e Loucura, com Jackson Sampaio.