Frases


"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



sexta-feira, 13 de março de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (FINAL – O conto nosso de cada dia)


Fotos: Denis Akel

Finalmente diante da oitava e última postagem desta extensa série sobre a Bienal do Livro do Ceará 2014. Recapitulando, ao longo dos primeiros meses do ano, postei aqui minhas experiências e impressões de todas as mesas e palestras que pude assistir, bem como do evento em si, que ocorreu entre 6 e 14 de dezembro de 2014. Para encerrar, talvez uma das mesas mais aguardadas, ou pelo menos badaladas: O conto nosso de cada dia, que contou com a presença de Xico Sá e Ricardo Kelmer. Aconteceu no penúltimo dia de Bienal, 13 de dezembro, um sábado, às 19h. Foi a única mesa que vi lotar a sala. O público-recorde provavelmente não se deve pelo interesse real na temática do conto, e acredito que pouco devido a Ricado Kelmer, mas sim por conta de Xico Sá. Uma palavra, contudo, define muito bem o que para mim foi essa mesa: decepção.

Desde o início, este foi um dia agitado na Bienal do Livro. Sábado, penúltimo dia, o Centro de Eventos estava lotado, barulhento, difícil de transitar, com a sensação de que com certeza era um lugar no qual não se queria estar. Isso, aliás, não deve ter sido escolhido ao acaso; óbvio que não colocariam Xico Sá em um dia de semana, e sim em um dia naturalmente movimentado. Cheguei cedo por lá, pouco depois das 14h, imaginando que no dia seguinte não iria, para evitar a loucura ainda maior que seria o último dia (só imaginei, porque acabei indo!). Rodei entre os expositores de livros, na medida do possível – todos cheios, desconfortáveis e sufocantes. Ainda comprei um livrinho aqui, outro acolá, aproveitando oportunidades, mas é mesmo incrível o tempo que se gasta, sem se dar conta, só em pé folheando um possível livro a comprar!

Intensa agitação no penúltimo dia da Bienal

Como falei nas postagens anteriores, nenhuma das mesas costumava começar na hora marcada, e esta não quebraria a tradição, embora algo me dissesse que eu deveria chegar um pouco mais cedo, imaginando que possivelmente haveria uma fila. Xico Sá, por ser cearense, e 'personalidade de TV', com certeza arrastaria um grande público. Foi por volta das 18:30 que cheguei ao mezanino 2, encontrando o corredor já bastante cheio, percebendo que eu estava certo em minhas suspeitas. Como não havia bancos ou lugares para se sentar (uma falha em meio a toda a moderna estrutura do Centro de Eventos), as pessoas ficavam no chão mesmo, encostadas às paredes. Não havia, contudo, nenhuma fila, inclusive a sala continuava fechada. Estranhando, me aproximei, e me informei com um receptivo que por acaso estava por ali. Meu receio era de a sala ter mudado, o que já acontecera antes. Ele, porém, me disse que seria ali mesmo, mas que iria atrasar um pouco, uma vez que havia ainda uma palestra acontecendo, com Carolina Munhoz, alguma coisa referente ao tema juventude fantástica. Afastei-me e, sem opção, me juntei às muitas pessoas que ali estavam, também me sentando na fria cerâmica do piso.



Alguns minutos passados, as portas se abriram, dando saída às dezenas de pessoas que lá estavam, no que constatei que Carolina Munhoz também tinha um grande público. Logo formou-se uma fila à porta da sala, das pessoas que, como eu, estavam ali fora sentadas à espera da mesa de Xico Sá. Como já havia muita gente quando cheguei, tive de ficar atrás de umas trinta pessoas, imaginando que isso me prejudicaria na escolha da cadeira no auditório; certamente todos iriam querer sentar bem na frente. Tudo bem, o que desse para ver, estava bom. Por esses momentos iniciais, de grande movimentação, comecei a desconfiar que esta mesa talvez não fosse bem o que eu estava esperando.




Devo ter passado pelo menos uns 15 minutos em pé, inerte, à espera. A fila, todavia, não parou de crescer, e logo fez uma curva pelo corredor. Nesse meio tempo, pensei, relembrando a Bienal do Livro de 2010, onde também fiquei numa fila, à espera da palestra de Maurício de Sousa, e ainda por cima sob um escaldante sol de meio-dia, nas limitadas dependências do antigo Centro de Convenções. Desta vez, felizmente, não havia sol, mas a sensação de ficar ali, limitado a uma fila, é sempre desagradável. Pensei também se valeria a pena tamanho esforço, dedicação, pelo que poderia ser a vindoura palestra. O que mais me atraiu aqui a princípio foi mesmo o tema, O conto nosso de cada dia. Imaginei que discorreriam sobre esse gênero tão fascinante mas muitas vezes subjulgado, mesmo agora em alta devido à homenagem à Moreira Campos. Já conhecia Xico Sá de outros eventos literários e também de programas de TV, como Cartão Verde e Saia Justa. De vez em quando também lia um ou outro de seus textos pela internet. Quanto a Ricardo Kelmer, não fazia ainda ideia de quem era, mas se poderia acrescentar algo a este tema, com certeza seria bem-vindo.

Detalhe das vidraças, refletindo a extensão da fila


Passando um pouquinho da hora marcada para o início, o acesso ao auditório foi enfim liberado. Como pensei, os lugares mais à frente foram rapidamente tomados, e tive de me conformar com a quarta fileira, mas pelo menos fiquei ao lado do corredor, assim teria alguma liberdade quando fosse fazer os registros fotográficos. Em questão de minutos, praticamente todas as cadeiras estavam ocupadas, e havia mais gente do lado de fora querendo entrar. Nunca vi nada parecido, em nenhuma das palestras anteriores que assisti. O público, pelo que pude perceber, não tinha nada de muito chamativo, eram mais jovens, talvez na faixa de 20 a 30 anos, que pareciam quase estar ali para algum show musical ou de stand-up. Logo eu perceberia que, afinal, não seria muito distante disso.





Diferente de todas as mesas anteriores, aqui em nenhum momento vi Xico Sá nas imediações da sala, à espera, como todos, do início de sua mesa. Luiz Ruffato e Milton Hatoum estavam bastante visíveis em seus momentos e Lira Neto estava até sentado nas cadeiras do auditório momentos antes de sua fala. Com Xico Sá, porém, não foi assim. Lá dentro, já sentado, procurei em volta, também sem qualquer sinal do escritor. Era quase como se o estivessem preservando, evitando que tivesse contato com o público antes da hora, talvez para fazer uma entrada triunfal ou algo do tipo. Quanta besteira, pensei, como se ele fosse um ídolo, intocável, feito de vidro. Ricardo Kelmer talvez já estivesse por lá, mas provavelmente entraria junto com ele, pegando uma caroninha em todo aquele oba-oba. Reparei no detalhe que havia pelo menos umas quatro portas de acesso à sala, sendo geralmente usada apenas uma. Por qual delas será que entraria Xico? Seria daquela mais afastada, meio escondida por uma tela de projeção?




Não demorou muito e a sala lotou completamente. Eu já estava com meu notebook no colo, começando a fazer as primeiras anotações quando, passados alguns minutos das 19:00, finalmente vi de relance, por uma brecha entre a parede e a tela, saindo mesmo da última porta, a figura de Xico Sá, curiosamente bem escondida por esta tela de projeção, que acabou funcionando como uma espécie de cortina. Não sei se foi proposital, mas com certeza desnecessário. Via-se apenas detalhes de sua roupa, a camisa estampada, como que para aumentar mais a expectativa.Vi ainda mais vultos, indicando que ele não entrara sozinho. Logo, saíram de trás da tela de projeção os palestrantes daquela mesa, Xico Sá e Ricardo Kelmer, para o delírio da plateia, que prorrompeu gritos eufóricos. Seria toda aquela comoção pelo fato de Xico ser cearense e assim de estar, de certa forma, meio que de volta à casa? Ou pela força de sua presença televisiva? Era uma boa questão. Seguido dos palestrantes, estava também Cleudene Aragão, autora responsável pela mediação do debate, bem como apresentadores da Bienal que logo cuidaram das introduções e patrocinadores. Nessa hora, olhei para trás, percebendo, além da grandeza do auditório cheio, a porta principal ainda aberta, e muita gente ainda lá fora, como que a espera de algum lugar vagar de repente. Para começar a mesa, após cumprimentos gerais a ambos, Cleudene perguntou a Xico se ele venceu na vida. A essa fraca e genérica pergunta, o escritor cearense não pensou muito antes de dizer:

Não tem isso não, a ideia é se emocionar, não tem vitória, não tem triunfo, a gente leva é uma emoção. Não há vitória, não precisa ganhar nada, o essencial é ter emoção e ir levando.

Incontáveis câmeras eram apontadas para o palco, algumas por parte da produção, que além das dos fotógrafos, novamente mantinha uma num tripé, gravando tudo, mas a maioria das lentes vinha mesmo do público. De onde eu estava via, ali na chuva de telinhas, miniaturas do palco. Foquei em uma delas, onde uma diminuta Cleudene agora perguntava: qual a relação de vocês com Moreira Campos e sua obra?




Eu inicialmente só comecei a ler Moreira para impressionar a neta dele, – disse Ricardo Kelmer, em meio a risos, disse ainda que depois se encantou pela obra, de grande vigor e significado, a tendo como inspiração para seus contos.

É impossível não amar um conto de Moreira Campos, aquilo é o melhor entretenimento do mundo, melhor que qualquer televisão do universo. – Xico Sá

Não pensem em literatura como chatice, um conto de Moreira Campos é imensamente divertido. Não fazemos um favor a ele lendo-o, mas sim um favor a nós mesmos. – Completou Xico Sá.

A mesa corria a um ritmo bem progressivo, e a julgar por esse início, parecia até interessante, contudo, logo mais ela começaria a declinar. O público, silencioso, ouvia, interessado. Cleudene seguiu perguntando, agora novamente direcionada a Xico: qual o barato dos gêneros literários?

Perdemos muito tempo buscando definições; conto é isso, crônica é aquilo. Bobagem, o importante é ler. – Xico Sá

Xico ainda tentou explicar um pouco as sutis diferenças entre conto e crônica, mas preferiu dizer que praticamente não há, que os dois gêneros meio que se misturam um no outro, e tecnicamente, são quase como uma coisa só.

A mediadora pediu a Xico que falasse um pouco de seu romance "Big Jato". O escritor começou dizendo como surgiu a ideia para o livro, que na verdade Big Jato é um limpa-fossas, muito conhecido por atuar bastante na área do Crato e Cariri, em meados dos anos 70, 80, quando também popularizou o nome Big Jato como sinônimo de limpa-fossas. O caminhão era destinado a esvaziar as fossas das casas sem encanamento. Ele disse ainda: Quem daqui esteve no Crato, ali por aquela época, e cagou, certamente o Big Jato limpou a merda de vocês – o tom irreverente logo arrancaria mais risos e gracejos do público –. Então, sempre lembrei do Big Jato, que na minha época de infância limpava as merdas de todos. De lá em diante, continuou a limpar, mas dessa vez minhas merdas mentais, concluiu, para mais um forte e exagerado aplauso.



O livro é um romance auto-biográfico, que não tem muito compromisso, porém, em retratar fielmente as memórias do autor. Isso, inclusive, é exatamente o que Xico mais gosta, pois diz que não conseguiria lembrar precisamente de todos os detalhes, o que resultaria numa história não fiel à realidade e tampouco uma boa ficção. Optei por uma ficção maluca, de uma região em que eu vivi desde a infância e começo da adolescência, para contar a história de um menino que vive entre um pai trabalhador, motorista do caminhão, e um tio delirante, poeta, que cresce ora sobre a influência de um, ora do outro, sem saber que destino tomar na vida. Xico usou a imagem do Big Jato sobretudo como uma simbologia da região do Cariri, como pano de fundo de uma história de dúvidas e descobertas. O protagonista da história, o menino, ou o cabinha, como chama Xico, vai crescendo com essa dúvida: a que mundo ele pertence? Ao mundo da poesia tresloucada do tio ou ao trabalho sujo e desgarrado do pai?

Após ouvir o autor falando, e agora lendo sobre o livro para poder escrever aqui, não posso conter certa curiosidade em conhecer essa obra, ver como foi feita essa fusão entre realidade e ficção, e mesmo de conhecer a vida deste menino, que cresceu em meio a limpezas de fossas e canções dos Beatles.

Cleudene seguiu, comentando ainda que o livro está em processo de adaptação para filme, ao que Xico Sá confirmou, dizendo que o diretor Claúdio Assis recentemente terminou as filmagens. A mediadora então perguntou se Xico se sente o personagem do livro Big Jato:

Inicialmente, era mais a importância do caminhão que limpava esgotos, mas isso foi aumentando, para poder fantasiar um pouco de minhas memórias e infâncias. – Xico Sá

Desafio alguém a contar a história de sua vida sem aumentar um pouquinho, é impossível, é necessário. – Xico Sá



Em seguida, o foco passou para Ricardo Kelmer, e seu livro mais recente, Indecências para o fim de tarde, que seria lançado na ocasião do evento. A mediadora lhe pediu para falar um pouco sobre a obra. O autor começou logo soltando: dizem que a humanidade é dividida em dois tipos de pessoas, aquelas que gostam de sacanagem e aquelas que assumem que gostam de sacanagem. Disse ainda que seu livro se trata de uma coletânea de contos eróticos, uns mais românticos, uns mais apimentados, mas todos sacanas. Falou que boa parte deles vieram de ideias que seus próprios leitores enviavam, através de seu blog. O tema logo deixou o público meio dividido, mesmo porque havia crianças no ambiente, e percebi várias pessoas deixando a sala. Suas cadeiras não ficavam vazias por muito tempo, porém, uma vez que logo entrava mais gente, no que constatei então que o pessoal estava lá fora só esperando uma oportunidade de entrar. Pensando melhor, agora, bem que houve uns momentos onde eu gostaria de estar lá fora...

Kelmer falou das leitoras de seu blog, de como elas se sentiam à vontade para compartilhar ideias ou fantasias, que ele desenvolvia, e meio que de certa forma as realizava. Disse ser muito importante essa troca, de leitor x escritor, algo que se torna bem mais fácil quando se é um escritor que se auto publica, que é acessível ao leitor.

O feminino é o que move o escritor. – Kelmer

Só existe um sentido de estar vivo: decifrar o ser feminino. – Xico Sá

Queria continuar com a cabeça de menino, que tudo era mais ou menos bonito. – Kelmer

Com toda essa temática feminina trazida à tona, começaram a discorrer, sem razão aparente, sobre estria x celulite, em termos ora quase científicos, ora escrachados. A mediadora parecia levemente desconcertada. Comecei a me perguntar o que eu estava fazendo ali. Onde tinha ido parar a literatura, o conto? Moreira Campos? Eu parecia estar novamente certo em minhas suspeitas, que aquela mesa não era bem o que eu esperava, a literatura não estava exatamente em foco. A presença de Xico Sá ali não era muito como escritor, mas mais como um astro, um ícone, que metade das coisas que dizia era motivo para risos exagerados e aplausos cegos e descontidos. Mas ainda havia conteúdo interessante a ser aproveitado, felizmente:

O google acabou com as idades. Não tem mais idade, tem google. – Xico Sá, ao dizer que hoje em dia não tem mais essa coisa de velhice, ou não pode mais fazer isso ou aquilo. Com o google se pode tudo, se sabe tudo, não há limites.

Gosto muito de Macunaíma, de Mario de Andrade. Todo homem tem um pouco disso, todo homem é meio preguiçoso e chorão em relação a mulher. – Xico Sá.



Xico me lembrava bastante Fabrício Carpinejar, como se desempenhasse quase um papel, um tipo, um tipo que, evidentemente, logo cairia nas graças do público, aliás já tinha caído, desde antes de surgir ali naquela noite, uma vez que era a principal causa daquele monte de gente. Afinal, em diversos momentos, a mesa era quase um show de stand-up mesmo, com piadas meio forçadas, mas que todos riam, não sei se por realmente acharem graça ou por educação. Ele ainda trouxe à tona um de seus decálogos, que novamente dissipou um pouco o tema literário na mesa, transformando-a quase em uma das entrevistas que costuma dar na TV. Não lembro agora se foi o decálogo do homem feio ou do macho jurubeba, mas foram enumerados cada um de seus mandamentos, em um tempo que eu esperava que estivessem abordando a estrutura do conto, eventuais autores favoritos, como e porquê escrevê-los... enfim algo mais pertinente ao tema. Não que não se falasse, mas o tema literário me parecia forçado e arrastado na conversa.

Lygia Fagundes Telles é parente de Moreira Campos, no sentido de ser também grande contista. – Xico Sá, que parece ter lembrado de citar de novo o mestre Moreira Campos.

Tem hora que a gente não conta as horas, não precisa. – Xico, referindo-se ao dia-a-dia de hoje, no qual temos hora para tudo, mas certas coisas precisam de um descontrole, uma imprecisão, para melhor serem vividas.

A gente esquece de viver e apenas fotografa. – Xico, que falava sobre memórias, enfocando como, nessa vida de hoje, em meio a tantas redes sociais, estamos muitas vezes mais preocupados em registrar um momento do que propriamente vivê-lo.

E eis que finalmente falaram de inspiração criativa:

Às vezes a inspiração do escritor vem do nada, às vezes vem de tudo, é mesmo uma vadia. – Ricardo Kelmer

Xico comentou um pouco de seu processo criativo: às vezes escrevo uma ou duas coisas e penso "nossa, que maravilha de texto que eu fiz!" e aí quando acordo no dia seguinte, penso "mas que porcaria é essa, quem foi o idiota que escreveu isso?

A inspiração parece coisa feminina, é imprevisível, quando você chama, ela não vem, quando você não pode, ela chega, se você não aproveitar logo, depois fica complicado. Quem inspirou as histórias de meu livro foram as mulheres, o arquétipo feminino. – Kelmer

Gosto muito do mundo pop, do mundo da cultura de massa, de dividir a ideia da paixão de um homem comum por uma personalidade inatingível. – Xico, que neste momento citou seu livro "O livro das mulheres extraordinárias", no qual homenageia, como ele mesmo diz, com uma devoção escancarada, centenas de mulheres brasileiras, numa coletânea de perfis, crônicas e elogios amorosos.



Gosto de falar como a cabeça do homem, genericamente, pensa, essa ideia narrativa é boa para se compartilhar. – Xico Sá

Deveríamos ser menos solenes na literatura, tratá-la como um prazer, uma coisa do dia-a-dia. – Xico Sá

A ideia de relato, de contar uma história, uma coisa comum, acessível, assim é que é bom pensar na literatura. – Xico Sá, fazendo valer o tema da mesa.

A Mediadora então começou a falar do escritor que promove a sua escritura, a exemplo de Kelmer, e manteve um bom foco na discussão literária:

O mercado editorial hoje em dia é muito perverso, as editoras brasileiras estão se afiliando às internacionais. – Xico Sá

Precisamos ser agressivos, personalizar a literatura como conversa. – Xico Sá

O artista precisa, antes de tudo, ultrapassar a visibilidade, ser notado. Sempre gostei de interação com o leitor, o que ele pode me inspirar. – Kelmer

Gosto muito da ideia do movimento punk inglês, o Faça Você Mesmo. Tenha juízo, reclame, fale mal da cadeia perversa mas junte um ou quatro amigos e façam vocês mesmos. Grave uma coisa, faça uma coisa sua e deixe o mercado ir atrás, não vá buscar uma guarita, um selo de editora ou algo assim. – Xico Sá



Não tenho questão mercadológica, me inspiro nas pessoas que buscam algo e acabam chegando ao meu blog. – Kelmer

Aos futuros escritores, se diferencie tentando chegar um pouco mais próximo de seus leitores. – Kelmer

Cleudene seguiu perguntando e mantendo o foco literário: estão trabalhando em novos livros?

Estou no meio de um romance, depois do Big Jato, tomei gosto pelo gênero. O humor cearense é muito existencialista. Estou gostando muito, apesar do difícil processo criativo. – Xico Sá

Kelmer falou sobre sua época espiritualista. Usou algumas vezes a expressão 'Paulo Coelho da Caatinga', como era conhecido, causando furor de risadas no público. Hoje em dia estou pensando em escrever um livro sobre os bastidores desta época, os bastidores de um grupo esotérico-cearense no Rio.

E então chequei as horas; já pertinho do final, e ainda não havia sido aberto para o público se posicionar. Não era possível que achassem que com o auditório lotado não haveria perguntas... ou talvez fosse proposital para não tomar muito tempo... De um jeito ou de outro, Cleudene seguiu, com outra pergunta: como vocês, cearenses, circulam pelo Rio?

A gente sempre é nomeado, isso que é bom. "Ei cearense!" – Xico, que lembrou uma história de Câmara Cascudo – Mentalmente, nossa alma é do lugar.

A grande tristeza é o povo do Rio não entender as suas piadas, essa é a grande ideia da solidão, do exílio, tirar a mesma onda. É preciso primeiro educá-los a rir da gente. Essa demora é a maior angústia mesmo. Depois de 20 anos, quando eles finalmente entendem, você vai embora. – Xico, olhando para Kelmer, que confirmou sorrindo, como se entendesse exatamente o que ele quis dizer.



Ricardo Kelmer também se mostrava um típico performer, numa tentativa meio desesperada de fazer humor. Claro que muita gente ria, com uma ou duas piadinhas bobas e desnecessárias. Agora me era perceptível, então, mais do que nunca, que aqueles dois, Xico e Kelmer, se completavam bem. Suas obras versavam por caminhos similares, os dois são do Ceará, eram quase comediantes, em suma, era mesmo a "mesa perfeita".

Perguntas do público foram finalmente iniciadas às 20:30, praticamente já no final da mesa, que se estenderia um pouquinho por conta do atraso. Se não me engano houve apenas uma ou duas, uma delas mais uma observação quanto à maneira como Xico escreveu um artigo para um jornal, ao que o escritor logo defendeu seu trabalho, explicando as nuances do referido artigo. Não pude deixar de observar, também, que em tudo, ou quase tudo o que Xico dizia, uma moça sentada na primeira fileira sempre puxava palmas, mas não de modo natural, ela o fazia com grande vontade, de maneira meio frenética, quase grosseira, como se estivesse quase ironizando.

Alguém perguntou, ainda sobre o ato de se autopublicar, como divulgar o trabalho ou mesmo manter o foco inicial:

Invejo jovens que se juntam e realizam coisas, sem precisar de grandes corporações, ou no mínimo inverter as coisas, deixar as corporações irem atrás de você. – Xico

Mesmo que esteja dentro das corporações, você ainda pode manter a sua essência. – Kelmer

Logo a mediadora Cleudene Aragão agradeceu a Xico, Kelmer, e a todos os que tinham comparecido, dando por encerrada a mesa. Aplausos e gritos vieram da multidão que me cercava no auditório, e logo que os palestrantes se levantaram, várias pessoas foram na direção deles. Inclusive, momentos antes da mesa terminar, fiquei pensando "como será que vão fazer com os autógrafos?" Lá fora, havia uma mesinha vendendo livros de Xico Sá, onde certamente poderia encontrar o Big Jato por um preço realmente Big, mas o autor iria até lá ou ficaria numa mesa, ali mesmo na sala, atendendo às dezenas de pessoas que certamente lhe solicitariam, como fizeram Luiz Ruffato e Milton Hatoum? Na verdade, nem uma coisa nem outra.



O que se viu foram todos se amontoarem em volta de Xico, lutando por uma autógrafo ou ainda uma foto com ele, que era só sorrisos, e atendeu a todos de pé mesmo. Do outro lado, Ricardo Kelmer, também foi procurado pelo público, mas por bem menos pessoas. O autor disse que quem estivesse interessado em algum livro de sua obra, bastava fazer o contato com ele mesmo. Aproveitei toda a descontração daquele momento (até os receptivos queria tirar fotos de Xico Sá) para também fazer algumas fotos, que acho que retratam bem o que foi a mesa.









Quando saí da sala do Centro de Eventos, neste dia, me senti diferente. Não estava completo, realizado com a palestra, como acontecera em todas as anteriores, era mesmo uma sensação de decepção, como escrevi no início deste texto. A mesa não foi exatamente ruim, claro, mas estava longe de ser o que eu acreditei que poderia ser. Não foi bem uma defesa do conto como gênero, mas mais dos interesses de cada autor. Por que falar tanto de um romance (Big Jato) quando o tema proposto eram os contos? Toda a badalação em torno de Xico Sá sufocou o tema proposto. É até curioso, pois o próprio Xico disse que deveríamos ser menos solenes com a literatura, tratá-la como uma coisa do dia-a-dia, no entanto não foi bem isso que ele fez, ao meio que fugir do primeiro contato com seus fãs, executando sua entrada escondida por trás da tela de projeção, o que com certeza não é uma coisa que se vê no dia-a-dia.

Já Ricardo Kelmer apresentou uma obra de delicada aceitação, uma tema que sempre envolve certa polêmica, certo desconforto. Não deve ter sido à toa que muita gente se retirou da sala, não só nestes momentos bem como quando ele ou Xico falavam assuntos que não tinham qualquer relevância ao tema, e entre as pessoas que saíram vi até alguns jornalistas. Gostei, no entanto, da conduta de Kelmer, em se auto-publicar, se auto-divulgar. Demonstra que há, acima de tudo, uma vontade, um querer.

Achei a mediação de Cleudene Aragão um pouco fraca, com perguntas vazias e de pouca profundidade, que mal raspavam no cerne do tema, sem desenvolvê-lo. Um de seus pontos altos foi que pelo menos ela conseguia voltar ao tema literário quando este se perdia entre um assunto e outro.

Talvez o melhor momento, ou pelo menos o que me ficou de mais memorável, tenha sido a menção do movimento punk, tanto por parte de Xico como de Kelmer, a ideologia do fazer você mesmo, sem precisar de nenhuma mega corporação, que é um direcionamento que eu mesmo também procuro seguir, em meus textos e em alguns trabalhos que realizo em parceria com meu irmão, Diego Akel. É um modo sobretudo libertador de se produzir, no qual focamos sempre o estar sempre fazendo, sempre produzindo algo, nunca ficar à espera, pois muitas vezes ficamos à espera de algo que no fundo sabemos que pode ser que nunca chegue.

Enfim, hora de encerrar esta série, que ao longo destas oito postagens, buscou transmitir um pouco de minha experiência pela Bienal do Livro do Ceará 2014. É provável que algumas delas não tenham conseguido passar exatamente o que eu queria, devido ao longo tempo já decorrido do evento, mas imagino que o principal tenha sido transmitido, um pouco da atmosfera do lugar, bem como minhas impressões pessoais, críticas, de tudo ou quase tudo o que pude ver ou interagir. Nesta mesa em particular, não fiz questão, em nenhum momento, ao longo deste texto, de esconder minha insatisfação, mas reforço, porém, que é tão somente minha opinião, que a postura de Xico Sá ou de Ricardo Kelmer, ou de qualquer outro foi mesmo o que tinha de ser, e assim é a vida.

Escrever estas postagens, apesar de cansativo, foi um grande prazer, pois foi, além de um exercício de reviver um passado, uma chance de quase recontá-lo, recriá-lo, numa pequena narrativa. Surge assim a sensação de viver novamente um momento, uma cena da qual fui personagem, da qual pude de certa forma imortalizar, não deixando se perder no tempo, como certamente vão ficar os registros integrais de vídeo que a produção da Bienal fez. É sobretudo um registro bem pessoal, no qual tentei fazer literatura para falar de literatura.

Meus agradecimentos a meu irmão, Diego Akel e minha mãe Izabel Akel, que me acompanharam ao longo desta pequena grande jornada, e a todos que porventura lerem qualquer uma das postagens.


quinta-feira, 5 de março de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (VII - A influência estética de Moreira Campos)


Fotos: Denis Akel

Chegando agora à sexta postagem relativa à Bienal do Livro 2014, que abordará a mesa A influência estética de Moreira Campos, com Adriano Espínola e Ana Miranda, mediados por Jorge Pieiro. O encontro ocorreu em 11 de dezembro, quinta-feira, a partir das 17h, logo depois da mesa Literatura e Loucura, da qual falei na postagem anterior.

O contista Moreira Campos, grande homenageado desta edição da Bienal, teve, além de uma exposição com fotos e fatos de sua vida e obra (veja na primeira postagem desta série), inúmeras palestras e mesas relacionadas. Diariamente, acontecia sempre às 17h, um seminário sobre a obra do autor, nesta mesma sala que foi cenário de praticamente todas as postagens que fiz desta série. Houve comemorações pelo seu centenário, discussões em torno da atemporalidade de sua obra, a arte literária presente em seus textos e tantos outros temas focando o contista.

Boa parte dessa programação, porém, ou chocaria com o horário das palestras que eu já decidira assistir ou seria justamente depois de uma delas, o que a tornaria muito desgastante, considerando que cada uma durava 1h30m. Assim, me foquei para ver o que tinha planejado, mas pensei que seria bom também assistir a pelo menos uma das mesas dedicadas a Moreira Campos, aproveitando o momento para conhecer um pouco mais do autor, que não lia há algum tempo. Escolhi esta, intitulada a influência estética, imaginando encontrar um bom panorama de seu processo criativo, e de como seu legado perdura até hoje. Acabei por encontrar bem mais do que isso.

Como disse, esta mesa aconteceu logo após a mesa de Jackson Sampaio, da postagem anterior. Só deu tempo de esticar um pouco as pernas pelo corredor e logo voltar à sala. Mais pessoas chegaram, somando-se a umas poucas também remanescentes da palestra anterior. Era perceptível uma outra energia no novo público, um público diferente, mais maduro, senhoras, senhores que pareciam saber perfeitamente bem porque estavam ali, quase como se tivessem conhecido o próprio Moreira Campos (e quem sabe tivessem mesmo, afinal). Identifiquei ainda rostos conhecidos de boa parte das mesas anteriores, como a curadora da Bienal, Mileide Flores, a também curadora e neta de Moreira Campos, Carolina Campos e o simpático jornalista Anderson Sandes.

Compunham a mesa a escritora cearense Ana Miranda, e Adriano Espínola, poeta, professor de literatura e sobrinho de Moreira Campos. A mediação ficou por conta do também escritor Jorge Pieiro. Procurei me sentar quase no mesmo lugar da palestra anterior, ainda que agora todas as cadeiras tivessem voltado para a posição normal. Após as apresentações comuns da Bienal, patrocinadores e afins, Ana Miranda tem a palavra. A escritora agradece a oportunidade, e começa falando um pouco de literatura em geral, passando por sua obra, e chegando a Moreira Campos:

A qualidade de um livro é proporcional à quantidade de sentidos ali contidos. – Ana Miranda

O que torna um autor canônico, segundo Harold Bloom, é a estranheza. – Ana Miranda

A originalidade de uma obra é a originalidade do eu autoral. – Ana Miranda

Tento partir do corriqueiro para chegar ao contexto fantástico, no estilo Moreira Campos. – Ana Miranda



Ana então falou de alguns ensinamentos bem peculiares de Moreira Campos, a lição da parede, a lição do copo, a lição do portão e a lição da cama. Ela então entreolhou Adriano, que lhe sorriu, concordando. Fiquei pensando em que consistiriam estas lições, de nomes tão simples e aparentemente bobos. Na verdade, estava diante de um conhecimento incrivelmente complexo, disfarçado nesta aparente simplicidade. Adriano Espínola faria uma boa explanação destas lições, como direi mais a seguir.

Ana também contou a história de Pedro Salgueiro, que teve em Moreira Campos uma espécie de mentor. Ele admirava muito o escritor, já conhecendo boa parte de sua obra, e embora passasse por ele quase todos os dias, ao cruzar o Bosque de Letras (hoje Bosque Moreira Campos), não tinha coragem de lhe falar. Assim passaram-se quase dez anos. Pedro, que começara então a também escrever contos, conheceu a filha do escritor, a também escritora Natércia Campos, que de certa forma facilitou seu antigo sonho. Fez algumas visitas ao apartamento de Moreira, sendo muito bem recebido por ele e sua esposa, dona Zezé. Numa destas visitas, Pedro teve a coragem de levar um exemplar de seu primeiro livro, pedindo a Moreira que ele, nas palavras do próprio Pedro, "desse uma olhadinha, se pudesse". Moreira Campos deu uma olhadinha, e fez bem mais do que isso.

Segue o artigo completo, que foi lido por Ana na ocasião desta mesa, de autoria do próprio Pedro Salgueiro: Moreira Campos por Pedro Salgueiro.

A mesa foi adiante:

Há uma relação entre Machado de Assis e Moreira Campos, ambos gostam de revolver os lados psicológicos, ambos têm uma dose de descrença na humanidade. – Ana

Na estética de Moreira Campos, descrições devem ser sempre com o mínimo de informações, mas o máximo de sugestões. – Ana

Moreira Campos primava pelo acabamento de seus textos, e sua obra influenciou todos os escritores depois dele. – Ana

Jorge Pieiro leu, com grande emoção, um conto do livro inédito de Moreira, A Gota Delirante. Um texto de leitura intensa e vibrante, como lhe era tão comum. Impossível não lembrar de Dizem que os cães vêem coisas, que considero uma de suas melhores obras. As palavras de Jorge logo absorveram o público, que o acompanhou com grande atenção até a última palavra, a última sensação. De onde eu estava, não pude deixar de reparar, em certo momento, que aquela leitura emocionou também a neta de Moreira, Carolina, sentada à minha extrema esquerda. Ela chegou mesmo a chorar, de modo contido, sensibilizada, talvez lembrando do avô, talvez da mãe, de tudo, toda essa energia, que lhe deve ser comum, mas que agora chegou com mais intensidade, ao ouvir aquela leitura, naquele momento. Fiquei pensando "puxa, ela passou a semana inteira envolvida diretamente nesse evento, e até antes, no planejamento... esteve ainda em quase todas as palestras, deve ter revivido e relembrado muita coisa do avô, da mãe... não dá mesmo para não se emocionar". De certa forma, ouvir ali, naquelas circunstâncias, aquela leitura, deve parecer quase como ouvir o próprio Moreira Campos falando... Ao final do conto, uma enorme salva de palmas encheu a sala. O livro, que seria originalmente publicado em 1990, por conta do falecimento de Moreira, acabou guardado por vinte anos. Agora, por iniciativa de Carolina, ele seria uma das grandes atrações do evento, a ser lançado no dia seguinte, lá mesmo na Bienal.



Jorge então passou a palavra, e antes de começar a falar sobre Moreira Campos, Adriano Espínola disse a princípio achar estranho chamá-lo assim, pois sempre passou a vida o chamando de tio Zé Maria.

Moreira era um admirável contador de histórias, sobretudo anedotas. O contar para ele era natural, contava tudo com muita graça, mesmo com seu ar sério, encantava a todos. – Adriano Espínola

Moreira Campos é um escritor muito importante, deveria ser mais conhecido no Brasil – e Adriano contou que certa vez estava num festival literário no Rio, quando um homem ganhou um prêmio e lembrou, antes de tudo, de Moreira. Adriano achou aquilo incrível, percebendo a força que ele tem e que ainda pode vir a ter.

A maneira como Adriano falava, com grande propriedade, dando o tom certo ao que dizia, cativava de imediato. Era visível que também tinha uma veia contadora de histórias. Imaginei que com certeza ele aprendeu muito com o tio Zé Maria.



E então, Adriano abordou novamente as quatro lições. A lição da água foi a primeira. Tudo começou quando ele, há muito tempo, ainda estudante de letras, costumava, na saída das aulas, passar na casa de Moreira Campos, na época próxima ao campus do Benfica, para conversarem, ou "literarem". Em um desses dias, Adriano estava refletindo sobre o real valor da literatura, e disse a seu tio que obras literárias, por provirem da imaginação, não passam, portanto de uma mentira. Moreira não se abalou, e disse: É, pode até ser uma mentira, mas as fábulas de La Fontaine têm mais verdade humana do que essa parede, e apontou logo para uma parede a seu lado. E continuou: É mentira que uma raposa possa falar e pensar, mas o que ela diz, na fábula, sobre uvas que não pôde alcançar, a verdade humana que está aí, meu velho, vai durar mais que esta parede! Moreira Campos não poderia estar mais correto; a parede a qual ele se referia já não existe hoje em dia, uma vez que sua casa foi demolida em 2005 para dar lugar a uma expansão de estacionamento do shopping Benfica... mas a verdade humana, essa sem dúvida, perdura e sempre perdurará. Adriano assim entenderia o sentido da literatura, sua atemporalidade, através da lição da parede.

Para as demais lições, encontrei esse link, de uma fala proferida pelo próprio Adriano, em 1994, poucos meses após o falecimento de Moreira. Aqui, ele relembra o convívio com o escritor, bem como as célebres lições de seu legado: Quatro lições do mestre Moreira Campos.

E a mesa então prosseguiu:

A literatura tem que ser clara como um copo d'água – Adriano, citando a lição do copo d'água.

É um autor extremamente visual, como João Cabral. Com poucas palavras e recursos, arma toda uma cena com funcionalidade imediata. Moreira, contudo, não gostava de João Cabral.  – Adriano

Machado de Assis sempre foi um grande mestre, para Moreira. – Adriano

Moreira tinha uma grande admiração por Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Guimarães Rosa – Adriano.



Outro grande mestre do conto que também foi bastante lembrado na mesa foi o dramaturgo russo Anton Tchékhov. Sua obra, caracterizada sobretudo por narrativas curtas, influenciou inúmeros outros escritores, como Katherine Mansfield, Virginia Woolf e o próprio Moreira Campos. Através de um tema de Tchékhov, a metáfora da mosca prisioneira, surgiram inúmeros textos com temática similar, como A Mosca, de Mansfield, O vestido novo, de Woolf e A Grande Mosca no copo de Leite, de Moreira. O contista cearense ainda levou a temática tchekhoviana a outra vertente. Em vez da ideia da mosca retida, presa, incapaz de soltar-se, da dor do viver aprisionado, Moreira parte de um sentimento de injustiça com uma situação para criar uma revolta, uma indignação. O conto é forte, talvez para propor essa sensação e a metáfora então passa a representar coragem e resistência, em um tom menos denso do que visto em Tchékhov, apesar do caráter sádico usado pelo cearense. O conto pode ser lido aqui.

Ainda sobre Tchékhov, Adriano Espínola disse que Moreira Campos costumava citar e adotar muito também um outro princípio dramático provindo do escritor russo, conhecido atualmente como a arma de Tchékhov. Basicamente, consiste em evitar adornos, objetos e qualquer elemento desnecessário à história. Se foi citado um revólver, por exemplo, ele deverá ser usado:

Ninguém deve colocar um rifle carregado no palco se ninguém estiver pensando em dispará-lo. – Anton Tchékhov

A ideia é simples: não se demorar em detalhes irrelevantes, sem importância, filtrar ao máximo apenas o essencial para o desenvolvimento da história. O termo "arma", pelo que pesquisei, é bem genérico, podendo aqui estar qualquer outro elemento que ocupe similar função. Moreira Campos, segundo Adriano Espínola, a lembrava com a imagem de uma espingarda, e ia até um pouco além da máxima tchekhoviana, ao dizer que a arma não só deveria ser usada, como deveria ser colocada logo de volta no lugar.

Num conto, todos os elementos têm que ter uma coesão extraordinária, é preciso ter coerência para tudo. – Adriano.

Tchékhov dizia que se deve escrever contos sobre coisas longas, de formas curtas. A concisão é irmã do talento. Quanto mais conciso, mais forte. – Adriano.

Para mim, Moreira foi um modelo, me deu a medida da dignidade do que é ser escritor. Dava grande dignidade ao ofício de escrever. Assumiu isso – elegância, dignidade, dimensão extraordinária – para mim e para todos os que circulavam perto dele. – Adriano.

Neste ponto, olhei o relógio, constatando que a mesa já estava prestes a terminar. Que pena, agora que a conversa estava tão produtiva... como passou depressa.

Era um homem de convívio agradável. Educado, mas implacável na observação do bicho homem; grande observador das fraquezas humanas. – Adriano

Nos momentos finais, uma nota de Raquel de Queiroz, que já havia sido lida no início por Ana Miranda, foi lida novamente por Adriano. A nota encontra-se na orelha do livro Dizem que os cães vêem coisas:

Como prosador, poucos, neste País, terão um tal seguro domínio do idioma, um tal senso de aproveitamento de valores, prosa tão límpida, formosa e equilibrada, tanto foge à vulgaridade dos efeitos fáceis quanto aos preciosismos e invenções. Moreira Campos usa e enriquece a língua portuguesa do Brasil com sabedoria de professor e bom gosto de artista verdadeiro. – Rachel de Queiroz

O pequeno, mas interessado público da sala começou a aplaudir, mas Adriano ainda tinha uma última coisa a dizer:

Moreira Campos, por opção, nunca quis sair de sua terra, mas não é nenhum absurdo dizer que ele é um dos maiores nomes da literatura mundial, tanto quanto Balzac, Fitzgerald ou Tchékhov. Moreira é o pai de todos os contistas, escritores, do passado, presente e futuro, aqui do Ceará. – Adriano.



E eclodiram aplausos vivos e entusiasmados. Mais uma mesa que chegava ao fim, e mais uma vez a sensação de enriquecimento por ter podido assisti-la. O trio, Ana Miranda, Adriano Espínola e Jorge Pieiro levantou-se, sendo logo cumprimentado por amigos e parabenizado pelo belo debate. Os rostos de todos faiscavam, satisfeitos. O meu também. Registrei, tanto quanto possível, estes momentos. Não havia, e nem fazia sentido haver, qualquer mesa de autógrafos ou similar. O objetivo daquela mesa não era vender livros, mas homenagear Moreira Campos. Os palestrantes ainda dedicaram uns bons minutos a conversar com o público, ali mesmo na sala, antes do encerramento total.

Da esquerda para a direita: Anderson Sandes, Adriano Espínola, Jorge Pieiro, Carolina Campos e Ana Miranda





Levei muita coisa desse momento, e acho que só percebo melhor isso agora, após escrever este texto. Além da questão prática, da estética literária, as histórias de vida que pude, de certa forma, conhecer, desde a de Pedro Salgueiro, a sutil aproximação do leitor com o escritor, que se deu quase como um aprendiz conhecendo seu mestre; a relação entre Moreira Campos e Adriano Espínola, que com certeza era bastante especial, quase fraternal, como se Moreira pudesse responder a quase tudo que Adriano perguntasse; e até a expressão emocionada no rosto de Carolina Campos, uma marca de um sentimento único, puro, que se manifestou verdadeiramente, a saudade de seu avô. Uma palestra que me fez crescer muito como escritor, mas bem mais como ser humano.




A seguir, a oitava e última postagem desta série, centrada na participação de Xico Sá e Ricardo Kelmer, com a mesa O conto nosso de cada dia.