Frases


"O coração que se ganha é o que se dá em troca"Marcelino Freire



quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (IV - Milton Hatoum no cinema)

Da esquerda para a direita: Sérgio Machado, Glauber Filho e Milton Hatoum
Fotos: Denis Akel

Nesta quarta postagem relativa à XI Bienal Internacional do Livro do Ceará, o destaque será novamente o escritor amazonense Milton Hatoum, um dos homenageados desta edição do evento.
Milton, que já estivera presente na cerimônia de abertura, bem como na mesa Infância e Memórias, faria agora sua última participação na Bienal, em uma mesa que abordaria a adaptação cinematográfica de sua obra.

Na mesa, intitulada Milton Hatoum no cinema, realizada no dia 8 de dezembro, o escritor dividiria o palco com o diretor Sérgio Machado, com mediação do também diretor Glauber Filho. Era uma das mesas que eu mais queria assistir, pois além de ter a presença de Milton, trataria do tema de adaptação de uma obra literária. Como surge o interesse para a adaptação? A linguagem se modifica? Como se dá o diálogo entre o escritor e o diretor? Qual a liberdade que compete a cada um? Eram algumas das perguntas que me vinham à mente quando pensava nesse tema, um tema sempre pertinente, sempre curioso.

Haveria duas horas e meia de intervalo entre a mesa que vi anteriormente, Biografar brasileiros, e o início desta. Usei este tempo passeando entre os expositores de livros, aproveitando a atmosfera do evento, imerso em leituras ora conhecidas, ora inesperadas, e é incrível como o tempo passou rápido, mal senti passarem essas duas horas e meia! Retornei ao auditório da mesma sala, Contos Escolhidos, pouco antes das 19h, hora prevista para o início. Havia ainda muita movimentação por conta da palestra anterior; Lira Neto podia ainda ser visto nos corredores do mezanino, muito assediado por fãs e amigos. Milton Hatoum, destaque da mesa vindoura, já estava a postos nas imediações, também amplamente solicitado.

Movimento na sala momentos antes do início da mesa

Desta vez, sentei-me ainda mais à frente, como se a cada palestra ganhasse mais confiança, mais vontade, disposto a absorver cada vez melhor os temas e assuntos discutidos. Armei minha base de operações, que consistia num bloquinho de anotações e um iPad e fiquei à espera, observando a movimentação crescente do público, que começava a preencher à sala. E com um atraso habitual de dez ou quinze minutos, a mesa teve início. Após palavras de praxe de patrocinadores e afins, Glauber Filho fez a introdução do tema, citando obras de Milton Hatoum que estão em vias de serem produzidas para o cinema.

Quando escrevi os livros, os romances, não pensava que seriam adaptados. Não penso no cinema quando escrevo, embora literatura e cinema sejam muito tênues. A literatura no século 19 já tinha um tom cinematográfico. – Milton

Não uso computador para escrever. Basta uma caneta bic e uma folha de papel, tudo é muito simples, mas quando isso vai passar para o cinema, tudo se complica. – Milton

Sérgio Machado, que está adaptando obras do escritor amazonense, falou de como Milton surgiu para ele, de como escolheu os livros, através de Maria, uma amiga sua, crítica literária. Ele pediu a ela dez livros para sondar a possibilidade de adaptação. Acabou por ir com ela à livraria. Um destes livros foi de Milton Hatoum, e os contos o fascinaram, pois eram todos feitos de imagem e ação, uma vez que Sérgio disse gostar muito mais de imagem e ação do que de diálogo.



Milton leu trecho do conto "O adeus do comandante", demonstrando um pouco desse contexto visual que permeia sua obra. Sérgio disse que pensa em seguir mais o texto original de Milton na adaptação. O diretor comentou que está fazendo a adaptação junto com Milton e Maria, o que dá ao roteiro um ar mais literário. Ele diz ser um privilégio poder trabalhar junto com Milton, que escreve muito cinematograficamente.




Sérgio então leu um pouco do roteiro, e era bastante perceptível como transbordava de imagens, mas não como um roteiro típico, havia ali um toque literário, a essência da obra estava presente, e percebi também, ao mesmo tempo, como se o roteiro fosse uma continuação do conto de Milton. O escritor escutou a leitura de Sérgio com grande atenção, como se conferindo se tudo estava no lugar certo. Quase não movia um músculo; os nós dos dedos cruzados em profunda reflexão.



A conversa fluía, instigante. Lutei para conseguir, não só assimilar e refletir tudo o que era dito, como também escrever meus apontamentos, filtrando os trechos que me fossem mais valorosos, à medida que eram ditos. Como em todas as palestras, dediquei também um tempo a observar os semblantes, ora do público, ora do trio que discursava. Enquanto observava Milton lendo, fiquei pensando o que ele sentia, ao ler ali, trechos de sua obra. Deve ser algo já comum para ele, mas mesmo assim ainda uma sensação única, e talvez até um pouco amedrontadora. Ele lia com avidez, com gosto, como se de fato vivesse tudo aquilo, acreditasse em toda aquela realidade inventada.



Entre o público, identifiquei várias pessoas que já vira nas palestras anteriores, como a curadora Mileide Flores, e a neta de Moreira Campos, Carolina Campos. Lira Neto, que há algumas horas atrás estava sentando naquele mesmo palco, podia também agora ser visto entre o público que assistia. Ele, inclusive, pediu a palavra e fez alguns comentários sobre uma minissérie de Raquel de Queiroz. O jornalista fez perguntas direcionadas aos dois palestrantes; a Sérgio, quais são os limites artísticos a que um roteirista pode se permitir? Até onde ele tem o direito de mexer na narrativa? E para Milton, como é, para você, escrever um texto originalmente para ser lido e vê-lo chegar ao texto cinematográfico?

O jornalista Lira Neto faz perguntas à mesa e chama a atenção do público

É muito ruim trair o espírito do livro, diz Sérgio, que falou ainda das obras que já adaptou, citando o filme biográfico Padre Cícero, inspirado no livro de autoria de Lira Neto, e como é difícil fazer os cortes num livro grande. Segundo o diretor, um conto é mais tranquilo de ser adaptado, sem ser preciso fazer muitos cortes.

É importante o diálogo com o escritor a ser adaptado. – Sérgio

Já Milton acha uma maluquice que o diretor faça uma cópia do original. Para ele, é meio que uma tradução de uma linguagem para outra. Milton acredita que todo escritor espera ver a essência de sua obra na versão adaptada.

Se você explicar, você mata a literatura. É preciso deixar muitas coisas em aberto. Tchekhov dizia: escreva um conto, tire o começo e o fim, deixe só o miolo. O conto se diz por si, seja breve, intenso, não diga tudo e vá cortando. – Milton

Milton falou muito no poder da imagem, de como a literatura para ele não tem comparação, não conhece fronteiras. O alcance da imagem, contudo, acaba sendo muito maior. Deu ainda uma pequena alfinetada em livros com A Cabana, livros de auto-ajuda em geral, que têm grande alcance mas pouco ou nenhum valor literário. Nesse ponto, discordo em parte. Claro que não se pode comparar, por exemplo, Crime e Castigo com A Cabana, mas daí a dizer que não há valor literário nesse último é ser um pouco extremista. Acho que tudo é muito subjetivo, afinal, se um livro faz bem a quem lê, independente do que fale ou de como fale, é o que realmente importa. A  questão estilística tem valor, com certeza, mas não deve ser o único quesito observado para esse julgamento.

A literatura é um quarto pequeno nos fundos de uma casa, e não toda essa ostentação que se faz sobre as obras cinematográficas. – Milton

Glauber Filho, mediador da mesa, diz que para ele a escrita de Milton tem um tempo muito cinematográfico.



Sérgio foi perguntado sobre como é colocar mais um personagem na obra adaptada. Ele disse que isso seria uma grande traição com o escritor. Não é preciso acrescentar nada, pois a obra por si só já prevalece. A adaptação é um encontro da subjetividade do diretor com a do escritor.

Hitchcock só adaptava porcaria. Busco sempre acrescentar um pouco meu, naquela obra que tanto me marcou, sem tirar a essência do original. – Sérgio

Toda a coisa do caráter espacial da obra vai fazer parte da obra cinematográfica, trechos simples da narração vão fazer a passagem de tempo na imagem. Houve uma editora alemã obcecada em ter a planta da casa dos Dois Irmãos – sim, a casa de fato existe. – Milton

Eu tento trabalhar com a ação e a interioridade dos personagens, um estilo conradiano. – Milton, numa referência ao escritor polaco Joseph Conrad.

Sérgio, em um dos momentos, perguntou a Milton se ele escreve biografias ou trechos sobre a vida de seus personagens, ao que o escritor amazonense respondeu:

Os escritores mentem muito. Henry James pensou e escreveu cada personagem. Ele compôs tudo, meticulosamente, cada personagem. Flaubert fazia o mesmo, pensa com cuidado em cada personagem. Eu também prefiro pensar em cada personagem. Você tem que ter um planejamento do personagem, é preciso pensar sobre eles, para saber aonde podem chegar. – Milton



Em inglês, personagem é 'character', ou seja, o caráter da pessoa. Como ela age? como ela pensa? Tudo isso tem que ser planejado – Milton

Glauber pergunta a Milton se o trabalho nesse processo de adaptação pode favorecer mais projetos similares de sua parte. O escritor diz que ainda não, que aí vai querer logo escrever um romance. Sérgio e Maria fizeram uns 87% do roteiro, eu apenas dei algumas ideias, notas de rodapé, conflitos dos personagens. Sérgio é diretor, quando ele tá com a gente, ele já vê o filme. Quem escreve, não vê a princípio o filme. – Milton

Jamais pensei em escrever. A literatura nunca me passou pela cabeça. Seria mais fácil me imaginar coreógrafo do que escritor. Penso mais na imagem. Só sei escrever imaginando a cena, a imagem. Acho o processo de escrita muito fascinante, curioso, e sempre quis entender mais esse processo. Quero aprender mais a escrever, os roteiros que vi até agora carecem de valor literário, que é algo muito inspirador. A sensação de poder filmar isso é enlouquecedora. A força do começo do conto do Milton funciona perfeitamente como imagem, sem precisar tirar ou cortar nada. É minha primeira experiência trabalhando com um escritor. – Sérgio



O mais louco do cinema é ter uma ideia e fazer de tudo para realiza-la e no final ter que tirar a cena – Sérgio

Sou muito obsessivo. Antes de filmar, escrevo um livrão, de pesquisa, de estudo, para me preparar para as filmagens. – Sérgio

Fazer um filme sobre Mário Peixoto foi como se entendesse melhor meu pai. No fundo, eu parecia falar para meu pai, através do filme. – Sérgio

Quero respeitar ao máximo a vida daqueles sobre os quais faço filmes, mas quero descobrir um pouco de mim na vida daquela pessoa. – Sérgio



No momento das perguntas do público, uma professora fez uma pergunta meio sem nexo e sentido, que demorou um tempão para ser formulada e acabaria por ser esquecida por Sérgio (eram várias perguntas dentro de uma), tendo ela que repeti-la com uma agilidade que faltou no momento inicial. Ainda assim, a pergunta continuou confusa, o diretor falou, falou mas não soube se conseguiu respondê-la. Pelo que percebi, acho que ele talvez até já houvesse respondido, em colocações anteriores. São essas típicas perguntas que podem ser resumidas a sentenças simples e diretas mas parece que todos têm um certo prazer em torná-las o mais longas e complexas possíveis.

Pouco tempo depois, Milton fez o seguinte comentário, que considero o ápice da palestra, em resposta a alguém:

Só começo a escrever um romance quando os conflitos estão armados na minha cabeça. Penso muito, e quando isso está meio armado, começo a escrever. Eles já existem antes de eu começar a escrever, pois de certa forma eles já estão na minha vida. Não consigo escrever sobre um assunto que está longe da minha vida. Gosto de romances que o leitor consiga perceber que a vida do escritor está implicada. Quando há uma entrega por parte do autor, me apaixona ainda mais. Graciliano, por exemplo, viveu aquilo, no sertão, viu um monte de coisa. Não tá escrevendo de longe, está enraizado nele. Quando tua vida tá implicada, os personagens passam por essa experiência. Quando o diretor tem um pouco dessa apropriação, é sinal de que se está no caminho certo. – Milton.

Se não houver entrega, não dá certo. Escrever é como filmar uma história de amor séria, não é qualquer namorinho não. – Milton.

E então, após uma hora e meia de palestra, a mesa chegou ao fim. Milton Hatoum agradeceu o suporte de todos e se disse comovido com o cearense, sempre hospitaleiro. Disse que entende bem isso por ser do norte, onde a presença cearense foi fundamental. Falou ainda que quando leu os 136 contos de Moreira Campos se identificou muito, eles literalmente o transformaram. O trio então desceu do palco, e se pôs a cumprimentar os fãs e amigos, em um clima descontraído que precedeu uma sessão de autógrafos com Milton Hatoum, que aconteceria ali mesmo na sala.





Sentado num birô, Milton recebeu com simpatia todos os que se dirigiram a ele. Fiquei imaginando novamente o que se passava na cabeça dele. O que estaria dizendo àquelas pessoas? E ouvindo delas? Do lado de fora, foi mais uma vez montada uma venda de seus livros, e iniciou-se o vai-e-vem de ir até lá, comprar um livro e tornar à fila, para receber o autógrafo. Me mantive observando, de longe, essa movimentação. Decididamente não estava em meus planos comprar um daqueles livros, naquela situação, por razões que comentei na postagem Infância e Memórias, de modo que permaneci lá apenas para fechar esse registro. Enquanto a maioria das pessoas se focava nos autógrafos de Milton, outras poucas conversavam com Sérgio e Glauber, ambos também bastante solícitos.





Saí da sala já por volta das 21h, com uma sensação de profundo enriquecimento, como sempre nos acontece após palestras como essa. Foi um dia muito exaustivo, no qual devo ter passado umas seis horas no centro de eventos, mas extremamente valoroso. Fiquei ainda um bom tempo com as palavras de Milton Hatoum e Sérgio Machado na cabeça, à medida que pensava e repensava o ofício de escritor, em contraponto ao de diretor. Aliás, essa foi uma das palestras que mais me fez ficar lendo e relendo a todo instante o que tinha anotado – mesmo dias depois – para buscar novamente essa sensação, esse prazer. Poder finalmente postá-la aqui é uma dupla realização, primeiro por ter ido assisti-la, depois por poder, de certa maneira, recriá-la. Esse, aliás, é bem o objetivo dessa série de postagens: recriar momentos, revivê-los.

E logo mais, na quinta postagem, a mesa Produção literária brasileira contemporânea, com o escritor Luiz Ruffato.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 (III - Mesa Biografar brasileiros)


Fotos: Denis Akel
Cena do filme O Sujeito Oculto: Google

Dando continuidade à série de postagens sobre a Bienal do Livro do Ceará 2014, enfoco agora a mesa Biografar brasileiros, que aconteceu na segunda-feira, 8 de dezembro.

Assim que a identifiquei e considerei, lendo a programação, percebi também que esse seria um dia bastante cheio, uma vez que haveria ainda uma outra mesa, novamente destacando Milton Hatoum, um dos homenageados do evento. Sabendo que passaria por uma boa maratona de palestras, nesse dia optei por não visitar os expositores de livros, e imagino que com isso com certeza economizei algum dinheiro.

Biografar brasileiros trazia os jornalistas e biógrafos Lira Neto e Mário Magalhães, mediados pela escritora cearense Socorro Acioli. O que mais me atraiu para essa mesa, inicialmente, não foi nenhum dos três, mas apenas o tema em si: biografias. Tenho cada vez mais me interessado pelo assunto, inclusive boa parte dos livros que comprei nesta edição da Bienal foram justamente biografias. A extensa pesquisa feita sobre uma vida, a responsabilidade do biógrafo ante o biografado, o tom da escrita, eram algumas das questões que sempre tinha em mente. Essa mesa me pareceu uma excelente oportunidade de mergulhar um pouco mais neste universo.

Conhecia bem do alto o nome de Lira Neto, que escreveu, entre outras, biografias de Getulio Vargas, Maysa e Padre Cícero. Sabia que ele, embora cearense, morava agora em São Paulo, e era sem dúvida uma autoridade no assunto. Já Mário Magalhães foi uma total surpresa, e muito bem-vinda. Os dois, obviamente, se conheciam há tempos, como ficou perceptível ao início e durante todo o debate. A sala, intitulada "Contos Escolhidos", em virtude à homanagem à Moreira Campos, seria novamente o palco da mesa, marcada para as 15h. Cheguei dessa vez com grande antecedência, o que facilitou a poder escolher um lugar mais à frente, bem como me preparar melhor para poder, tal como fiz na outra palestra, registrar em fotos e por escrito tudo o que pudesse.

Pouco a pouco o público foi chegando, tomando lugares. Não tardei a identificar Lira Neto e Socorro Acioli, tão logo entraram no auditório. Carolina Campos, neta de Moreira Campos, novamente se fazia presente, bem como outras pessoas que não conhecia, mas já vira na mesa anterior e imaginei também terem alguma relevância. A movimentação crescia, ainda que ficasse claro que o público total não lotaria a sala.

Mesmo antes de iniciar a palestra, Lira Neto já era solicitado pelo público
E então teve início a mesa, com um atraso de quinze ou vinte minutos. Socorro Acioli começou fazendo uma breve introdução dos convidados, sobre as extensas pesquisas que fizeram para realizarem suas obras centrais, Getúlio, de Lira Neto, e Marighella, de Mário Magalhães. Seguem então as principais colocações que pude colher, ao longo do seminário:

Sou apaixonado por pesquisa, um rato de arquivo – Mário

Há tesouros nunca remexidos nos arquivos nacionais – Mário

Cada um é legalmente responsável pelo uso que vai fazer dos arquivos públicos – Mário

Não há ar condicionado funcionando no arquivo público do estado da Bahia. O pesquisador acaba por destruir os tesouros históricos, uma vez que os documentos, seculares, não resistem ao contato manual – Mário

É preciso correr atrás. Está tudo lá, apesar das péssimas condições de armazenamento – Mário

Mário Magalhães (autor de Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo), falou um pouco do processo de coleta de dados, das longas pesquisas que precisam ser feitas, na condução da biografia, que explorou todos os detalhes da vida de Carlos Marighella e de como esse trabalho lhe tomou 9 anos. Uma curiosidade imediata surgiu em mim assim que ele mencionou os arquivos nacionais, uma vontade de conhecer esse acervo, que está aberto e disponível a qualquer um. Contudo, o alerta dado a respeito da precária conservação destes documentos foi uma surpresa. Imaginei que documentos históricos, com tanto peso e relevância, seriam mais bem preservados, mas segundo Mário muitos estão em condições lastimáveis, isso quando não acabam sendo descartados pelos próprios responsáveis do acervo.



Após este momento inicial com Mário, a palavra foi passada a Lira Neto, que agradeceu à organização do evento pelo convite, oportunidade de voltar à sua terra, e contrafez os inúmeros elogios feitos por Mário, como grandes amigos que são, um conhecendo muito bem o trabalho do outro. E então fez algumas considerações:

Moreira Campos é um dos maiores autores da literatura universal – Lira Neto

A pesquisa para o livro Getúlio teve vários eixos, em Berlim, Roma, entre outros, uma vez que o próprio Getulio se envolveu com o nazi-facismo – Lira

Getúlio guardava tudo o que escrevia, de modo que isso facilita o trabalho de qualquer um que quiser biografá-lo. Boa parte desse arquivo pode ser acessado pela internet – Lira

O site da biblioteca nacional fornece a qualquer um conteúdo de alto valor histórico – Lira

Há tesouros pedindo para serem visitados, tais como as cartas trocadas entre Getulio e sua filha, Alzira – Lira

Era preciso fazer um trabalho de confiança pessoal com as pessoas dos arquivos, para se ter acesso, pouco a pouco, aos documentos mais importantes – Lira

Há um filme que homenageia Guimarães Rosa, O Sujeito Oculto, que foi amplamente proibido de divulgar a imagem do autor, pois os herdeiros se julgaram donos de sua imagem, de modo que foi preciso recortá-lo de todas as imagens para o lançamento deste – Lira

Cena de O Sujeito Oculto, na qual se vê claramente o recorte onde Guimarães Rosa deveria estar

A legislação hoje autoriza que se queime os arquivos do ministério do trabalho com algumas décadas de existência – Mário, que acredita que tal medida dificulta o trabalho de pesquisadores, pois muitos documentos que podem vir a ser importantes acabam sequer sendo descobertos).

Durante toda a palestra, observei a propriedade com a qual ambos, Lira e Mário, versavam sobre seus temas, seus biografados. Eram tão naturais, quanto ao que diziam e defendiam, com amplo e preciso conhecimento de datas e fatos, quase como se tivessem conhecido de fato seus retratados.

"Isso eu nunca contei pra ninguém", frase que enlouquece qualquer biógrafo ou pesquisador, diz Mário, que entrevistou 256 pessoas, das quais 40 já morreram, tão velhinhas como ele (Marighella).

A grande informação, que é fundamental pro teu livro, pode te valer um capítulo, mas é tão bom quando surge uma história simples e você percebe que ali pode estar o final de seu livro – Mário

Ambos os autores, Lira e Mário, partilham a ideia de que a avidez de informação pode inundar a vida do biógrafo, fazendo-o se dedicar integralmente a isso, e que jornalistas, por se aterem apenas a contar a verdade, ficam frustrados quando por acaso algo que julgar saber se revela como errôneo.

A cada biografia feita, fica a apreensão: será que o livro será publicado? Será que ficará muito tempo nas livrarias? Terá problemas com os herdeiros? – Lira

Lira contou ainda as polêmicas que teve com a Rede Globo, por conta de não colocarem seu nome nos créditos da minissérie Maysa. Disse que assistiria à série, e caso encontrasse nela alguma informação que ele tivesse descoberto, tomaria as medidas cabíveis. Felizmente, ao final, pelo que consta, a emissora voltou atrás e creditou o jornalista.

Muitas vezes a pessoa sabe que pode se machucar emocialmente lendo uma biografia (caso da neta de Getulio) mas sabe da importância de alguém escrever e relatar aquela história tal como ocorreu – Lira.

Mário abordou a questão das biografias não autorizadas e sua fragilidade, de modo que a todo instante pode surgir algum herdeiro; filho, sobrinho ou neto, que tem plenos poderes para tirar o livro de circulação, uma vez que se sinta de alguma maneira ultrajado, caluniado. Isso é uma tragédia, pois faz com que inúmeros projetos não andem, tamanhas as dificuldades. O autor de Marighella também citou os problemas da legislação brasileira, que dificulta todo o trabalho não só de biógrafos como de qualquer artista que por acaso venha  cruzar com herdeiros ou descendentes, que impeçam exposições, filmes, livros e afins. É uma tragédia.

A mesa seguiu, a química entre os dois era notável, moldando a palestra com um ar de conversa informal. À medida que eu assistia, vez ou outra virava a cabeça para as pessoas do público. É sempre interessante ver as expressões, os comportamentos, perceber como aquilo parece mudar também aquelas outras pessoas. Houve um momento bastante curioso, no qual uma pessoa da plateia, subitamente, sem qualquer razão aparente, começou a bater palmas ruidosamente, durante uma fala de Lira. Não sei se por concordar muito com o que ele dizia, ou talvez só por ironia, mas atenção ele certamente conseguiu chamar.

Em um dos momentos finais, um senhor com o cabelo levemente azulado, sentado à primeira fileira, disse a Lira Neto, em tom quase profético, que deveria se fazer a biografia de um grande cearense, Edson Queiroz. Lira, calmamente, limitou-se a dizer que não fazia biografias encomendadas, e seguiram-se aplausos de todos. O homem de cabelo azul ficou ainda perdido numa exclamação de surpresa, antes de ser absorvido nas palmas do público. Chegava ao fim a mesa.


Em seguida, houve ainda um breve momento no qual ambos autografaram seus livros e conversaram mais um pouco com os mais interessados. Nesse momento, tratei de rever o que tinha escrito e colhido da palestra, percebendo uma boa dimensão de tudo o que fora falado, além de tudo o que não consegui registrar, mas apenas sentir e refletir. Essa, com toda a certeza, foi uma das melhores mesas que pude assistir da Bienal, por ter desvelado minúcias e peculiaridades que fazem parte do trabalho do biógrafo.

Antes de encerrar, aproveito a oportunidade para falar mais um pouco sobre o filme O Sujeito Oculto. Por se tratar de um filme sem fins lucrativos, ele está disponível no Youtube, neste link, e o  recomendo imensamente. O filme enfoca uma viagem feita por Guimarães Rosa com um grupo de vaqueiros, em Minas Gerais – mas vai bem além disso. Por conta da impossibilidade de se usar a imagem do escritor, a obra adquiriu um ar de protesto, em prol do direito e da liberdade de se contar uma história. Afinal, é bem como Lira Neto e Mário Magalhães falaram: herdeiros e descendentes se julgam mesmo donos de imagens e, como o filme completa, imagens que se não forem lembradas, homenageadas, tendem mesmo é a ser esquecidas.

Na próxima postagem,  a mesa Milton Hatoum no cinema.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Bienal do Livro do Ceará 2014 - (II - Mesa: Infância e memórias)


Fotos: Denis Akel

Após a extensa postagem anterior, na qual falei em detalhes de minhas vivências e impressões da XI Bienal Internacional do Livro do Ceará, agora comentarei brevemente sobre algumas das mesas e palestras que pude assistir, ao longo do evento. Para começar, a mesa Infância e memórias, que foi a primeira a me chamar a atenção, por trazer a participação do escritor Milton Hatoum. 

Milton Hatoum, escritor amazonense com descendência libanesa, foi um dos homenageados desta edição da Bienal, ao lado do contista Moreira Campos e do poeta Antonio Girão Barroso. Milton fez ainda a conferência de abertura do evento, a qual infelizmente não pude ir. Para minha satisfação, o escritor ainda estaria presente em duas mesas, das quais esta e mais uma, tema de uma futura postagem desta série.

Ainda não tive oportunidade de ler Milton, sequer tenho nenhum de seus livros, mas já o conheço um pouco, de entrevistas e participações em outros eventos literários, como a FLIP e a Fliporto. Por ser um dos autores contemporâneos de grande expressividade (e também por simpatizar com seu lado libanês, pois também tenho um pouco dessa descendência) senti que deveria aproveitar essa oportunidade, abraçando essas duas palestras, uma vez que já perdera a abertura. 

Pelo título desta primeira mesa, Infância e memórias, imaginei que estes dois temas seriam amplamente explorados por Milton e os demais que a compunham. Temas, inclusive, que têm me fascinado bastante ultimamente, na figura de recordações da infância, memórias que guardamos muito bem e que volta e meia retornam com tanta intensidade que nos sentimos quase perdidos, desorientados, em contraponto à vida atual. É um tema, ainda, do qual tenho trabalhado bastante em meus escritos, de tal forma que essa palestra certamente muito me ensinaria. 

A mesa era composta por Milton Hatoum, Carlos Augusto Viana e Fernanda Coutinho, com a mediação ficando a cargo de Aila Sampaio. Sendo sincero, esses nomes (exceto o de Milton) me vêm agora facilmente graças a uma colinha no folheto da programação. Meu interesse maior nessa palestra, como já mencionei, era mesmo no escritor amazonense. Diego Akel, meu irmão, que estava mais uma vez comigo, reconheceu Carlos Augusto Viana como um antigo professor de literatura, de um passado longínquo e que provavelmente não se lembraria dele. 

Por ainda estar me reacostumando às dependências do lugar, o Centro de Eventos, demorei um pouco além do esperado entre os estandes de livros, de modo que ao chegar ao mezanino 2, local onde ficava a sala da palestra, encontrei a porta fechada. O receptivo me disse que já havia começado. Entrei com certa contrição. Felizmente ainda bem no início, mas os lugares mais à frente, todos ocupados. Sentamos à média distância e procurei então me concentrar no que estavam falando, uma vez que é difícil chegar assim, no meio de uma fala, no meio de uma ideia, exigindo dedicação para se pegar o fio do debate. Quem falava, na ocasião, era Fernanda Coutinho e tentei, muito, entender o que ela dizia, mas o contexto me limitava, só percebendo que se tratava de algo referente à obra de Milton. Ainda que pouco, os instantes perdidos da palestra fizeram falta. Tudo bem, esperei a palavra passar adiante, à medida que ia me familiarizando com quem era quem, e já me preparava para registrar o que fosse possível da palestra, fazendo rápidas anotações.

Em seguida, Milton completou a fala de Fernanda, agradecendo as palavras que lhe cabiam, e disse ainda que em geral os críticos literários fazem comentários diferentes de um leitor comum, que por isso eles representam um quê a mais, uma opinião mais significativa. Aqui, porém, não pude esconder certa decepção, pois parecia que, ao dizer isto, ele desprezava a voz dos leitores comuns, valorizando tão somente os críticos. A meu ver, este desdém foi totalmente desnecessário, uma vez que ali naquela plateia certamente havia bem mais leitores casuais do que críticos, o que torna tal comentário em quase uma ofensa.

Esperei que de fato entrassem nos assuntos pertinentes ao tema, e logo foi a vez de Aila Sampaio, a mediadora, fazer um aparte, e iniciar de fato o escopo da mesa. Ela começou dizendo que o tema da infância é um dos principais da literatura, em seguida leu trechos de obras de Milton Hatoum, bem como fragmentos que pareceram ter sido escritos sobre o autor, para aquele momento. Após este breve momento introdutório, Aila levantou as seguintes perguntas para Milton, que foram alicerces para se desenvolver toda a conversa.

O que é a infância para o escritor? Que peso essa fase da vida tem para ele?
Como é trabalhar com tantas infâncias diferentes? (no caso de diferentes personagens)

Milton Hatoum começou dizendo que a infância é uma literatura sem memória, da qual se leva muito e ao mesmo tempo muito se esquece. Disse ainda que literatura deve falar do passado, que ao presente compete mais a voz do jornalista. Para ele, o escritor deve esperar o tempo passar, dar mais espessura ao passado, esperar mesmo o esquecimento. Citou ainda o escritor argentino Jorge Luis Borges, ao dizer que o esquecimento é uma das formas da memória.

Ainda sobre a infância e seus mistérios, Hatoum leu um conto (não lembro se era ou não de sua autoria), que dizia que o medo é uma das lembranças mais intensas dessa fase da vida e que aos 5 ou 6 anos de idade, você acredita em tudo. Fiquei um bom tempo refletindo a intensidade dessas sentenças, e percebendo como de fato a infância é um celeiro de medos, traumas e afins, que muitas vezes perpassam essa fase. A quase ingenuidade infantil, de acreditar em tudo, é também igualmente interessante, de modo que é nessa fase que a imaginação aflora, e tudo parece se transformar, tudo parece ser o que muitas vezes não é; o mundo tem um peso diferente, único dessa fase, e talvez isso seja justamente a origem desses medos.

Seguem agora trechos da mesa, tal como os coletei, seguidos ocasionalmente de alguns comentários:

No momento em que se escreve, tem-se que ter a coragem de romper certos limites, certos pudores – Milton Hatoum, que acredita que o livro depende muito dessa coragem que o autor precisa ter no ato da escrita, uma coragem que muitas vezes ele pode não ter fora dela.

Muitas lembranças da infância são transformadas pela imaginação, força motriz da literatura. – Milton, que considera a imaginação como grande agente transformador, capaz de mudar realidades, fronteiras, memórias. Essa ideia ficou um bom tempo em minha mente, percebendo que de fato a imaginação é como um tempero especial, engrandecendo e rompendo limites. Não pude deixar de lembrar também da célebre máxima de Einstein: a imaginação é mais importante que o conhecimento.

Um livro sem imaginação corre o risco de virar uma reportagem – Milton, estabelecendo novamente a relevância que a imaginação tem numa obra, sem a qual pode-se mudar radicalmente de direção.

A tela usurpou a infância das crianças – Milton, referindo-se a essa evolução tecnológica que cada vez mais nos transforma.

As crianças dão muita energia pra gente, física e mental – Milton, falando sobre a ocasião da publicação de um livro seu, que acelerou a produção após o nascimento de seu filho. O livro acabou sendo bastante premiado, e o escritor atribuiu o nascimento do filho como incentivador. – Claro que é um trabalho a mais, ainda pra mim que fui pai coroa, e já não posso passar tanto tempo lendo em minha rede, e isso para um amazonense é difícil (risos).

Mesmo estruturando o que se escreve, na hora de escrever o imprevisível faz sua parte. Muitas vezes, o esboço não corresponde ao que se escreve de fato. – Milton

O conto tem que ser perfeito, como um trabalho de relojoeiro – Carolina Campos, neta de Moreira Campos, que esteve presente em boa parte das mesas e sempre tecia ótimos comentários, complementando bem os debates.

Atualmente, prosa e poesia estão fundidas – Carlos Augusto Viana, que acredita que ambos os conceitos se entrechocam, e meio que se alimentam um do outro, sem prevalecer esse ou aquele.

Todo escritor de prosa tem inveja do poeta, e vice-versa. O poeta quando quer fazer romance, é traído pelo conto. O romancista, ao tentar poesia, acaba contista – Carlos, em uma curiosa correlação entre os dois ofícios, um ponto de vista bem peculiar.

A grande literatura árabe é poesia, desconsidera os romances. Os grandes escritores árabes são grandes poetas, pois a origem da literatura é o óraculo. Dizer com sentimento e com poucas palavras e se criar tudo. Ambos, prosa e poesia, se remetem a uma totalidade. – Milton

Para finalizar, no momento da participação do público, surgiu uma pergunta, feita por um rapaz que citou inúmeros escritores e críticos literários, uma pergunta chata e arrastada que poderia com certeza ter sido reduzida a uma simples sentença, ainda que desse modo o rapaz não pudesse exibir todo o seu "saber". Da mesma forma como não lembro o rebuscado que foi essa pergunta, lembro pouco também da resposta de Milton, que, muito respeitosamente, ouviu-a com grande atenção e respondeu de maneira abrangente. Me pareceu que a pergunta era se havia algum escritor que Milton considerava à altura dos grandes nomes mundiais ou algo assim. O escritor amazonense, após versar e considerar vários fatores, disse: a habilidade é você não dizer explicitamente as coisas. Machado e sua obra de contos não deve em nada aos grandes contistas.



A mesa então chegou ao fim, sob vastos aplausos. Ao todo, uma hora e meia de duração (tempo médio de todas as mesas) e demonstrou bem o que ainda estava por vir nas demais, que com certeza seguiriam a mesma estrutura. Só uma coisa que estranhei bastante, nesta edição da Bienal, foi o fato de não haver mesas, literalmente, nas mesas. Nem mesa, nem bancada, nada. Em 2012, uma bancada muito bem alinhada deu suporte a todas as palestras. Desta vez, porém, havia somente poltronas, e nada mais. Era inegável que assim tudo ficava mais informal, menos sério, com ar de uma simples conversa, mas de certa maneira ressaltava um pouco do ar improvisado do evento, que falei no post anterior. Não havia sequer mesinhas de apoio, e garrafas e copos d'água dos palestrantes tinham de ser grosseiramente acomodados no chão. Um dos convidados inclusive, em uma das mesas chegou até a dizer, em tom de brincadeira: é um prazer estar aqui nesta mesa... apesar de não haver nenhuma mesa aqui...

Do lado de fora, ao término da mesa, havia uma venda de livros de Milton Hatoum. A movimentação de pessoas em volta era enorme, e pude perceber nelas um interesse que pareceu não existir durante toda a palestra do escritor. Mas seria mesmo interesse? Ou talvez apenas para comprar o livro e conseguir o autógrafo? Será que todos leriam mesmo aqueles livros? Sondei os preços – altíssimos para uma Bienal – mas isso não continha a multidão de pessoas, que exibiam cédulas de cinquenta, cem, cartões de créditos. Os livros iam sendo vendidos a uma velocidade que invejaria os expositores de livros por dez reais. Como falei no início desse texto, não tenho nenhum livro de Milton Hatoum, e até cogitei adquirir um nessa ocasião, mas é um grande absurdo um evento deste porte vender livros pelo mesmo preço de livraria. Não comprei, e procurei, ao longo de todos os dias seguintes, livros do autor entre todos os estandes de expositores, sem sucesso. Não havia nenhum livro de Milton Hatoum, quase como se tivessem sido erradicados de propósito, num premeditado plano para se aproveitar da presença do escritor e assim poder vender seus livros ao preço comum, sabendo que venderiam, pois seriam os únicos do evento, e ainda poderiam dar ao "felizardo" comprador a chance de ter um autógrafo do autor.



Enfim, Infância e memórias mostrou-se um debate bem consistente, que talvez não tenha incidido tão diretamente nos pontos que eu imaginava, mas trouxe outros bem interessantes, como a questão do valor imaginativo do texto e a relação entre memória e esquecimento, gerando uma boa reflexão que certamente não será esquecida.

Na próxima postagem desta série, a mesa Biografar brasileiros, com Lira Neto e Mário Magalhães.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Bienal do Livro do Ceará 2014 (I - O evento)


Fotos: Denis Akel 

Decididamente, não estava nos meus planos escrever sobre a Bienal do Livro esse ano. Devo dizer, ainda, que não estava também muito empolgado com o evento. O desânimo para esse, que é o maior evento local dedicado à literatura, foi completo principalmente pela dificuldade de informação por parte da própria organização, que demorou muito, mas muito mesmo, até efetivamente apresentar ao público o que de fato seria a Bienal. Uma vergonha que se viu refletida até os últimos dias da feira, com programação atrasada, poucos destaques, quase ausência de convidados internacionais e tudo muito mal divulgado. Tais fatores demonstraram toda a fragilidade que foi essa Bienal, que pareceu a todo o momento feita às pressas, sem preparo, como se só de última hora tivessem feito seu planejamento. Claro que teve seus bons momentos, mas ainda penso nela mais como uma bienal improvisada. Ao longo dessa postagem, conto desde o início como foi minha experiência com o evento, um panorama geral do que vi. 

A princípio, tudo o que se sabia era que a XI Bienal do Livro do Ceará aconteceria apenas no segundo semestre, próximo ao final do ano, em virtude de outros eventos como a Copa do Mundo e as eleições. Com o passar dos meses, porém, nenhuma informação foi divulgada. Pesquisei pelo google, e cheguei a descobrir a data, bem como o homenageado, Moreira Campos, mas nada mais além disso. Tudo a respeito da bienal era ainda bastante nebuloso.

Seguiram-se dias, meses, sem qualquer divulgação. Foi apenas no final de novembro que começaram a surgir as primeiras notas e publicações, através do Facebook e um ou outro site cultural. Por falar em site, aliás, o primeiro que recorri foi o oficial do evento, e qual não foi minha decepção, ao ver ainda em destaque a edição de 2012, quase como se esta tivesse acontecido ainda ontem. Pelo Facebook, foram então liberadas as atrações e destaques da nova edição, através de publicações chamativas. A essa altura, contudo, já faltava menos de uma semana para o início da Bienal. Procurei, agora com um crescente entusiasmo, entre essas publicações, a programação completa, mas para minha indignação, não havia nenhuma. Custei a acreditar que praticamente às vésperas da abertura não havia programação. E não somente eu; inúmeras pessoas manifestavam opiniões semelhantes nos comentários às publicações do Face. Sempre que alguém perguntava pela programação completa, a resposta era a mesma: “Divulgaremos a programação completa em breve, nome da pessoa que perguntou”. Não havia nenhuma justificativa, não importasse o que a pessoa tinha dito ou questionado. De vez em quando, ainda diziam que já tinham divulgado boa parte da programação principais nessas publicações, e de fato já era possível saber alguns palestrantes, shows e atividades, mas tudo era ainda muito vago, não sendo possível traçar uma boa meta de visitação.

Comecei então a pensar nas Bienais do Livro de outros estados, como São Paulo ou Rio de Janeiro, onde a programação começa a ser divulgada quase um ano antes, e parece haver bem mais respeito com o público, na figura de que tudo é amplamente revelado, dando tempo para que as pessoas possam se preparar, para quem planeja ir apenas a essa ou àquela palestra, para quem mora no interior ou em outros estados, enfim, age com transparência. A Bienal do Livro do Ceará definitivamente não tinha transparência, pelo contrário, tudo parecia estar meio fechado, escondido, inacessível. E então, um ou dois dias antes da abertura, eis que finalmente surge a programação completa. O site de 2012 afinal sai de cena, para dar lugar ao de 2014, este bem mais simplificado e resumido, tipicamente feito às pressas, como parece que foi tudo nesta edição. Nele, pude finalmente ver a programação completa, do primeiro ao último dia, 6 a 14 de dezembro. A distribuição de palestras, shows e atividades aconteceria se valendo de toda a excelente estrutura do Centro de Eventos do Ceará, gigantesco espaço que abrigaria mais uma vez a Bienal do Livro.

Li rapidamente a programação relativa aos primeiros dias, para ter uma breve noção do que estaria por vir. Dada a grande quantidade de atrações, palestras e mesas, pensei que seria melhor me orientar pela programação impressa, o tradicional folheto que certamente estaria à disposição do público lá no evento. Este ano, por alguns contratempos, não pude ir no primeiro dia, perdendo a cerimônia de abertura, feita pelo escritor amazonense Milton Hatoum. Felizmente, Milton ainda teria duas participações no evento.

Foi mesmo no domingo, dia 7 de dezembro, segundo dia de bienal, que pude ir ao Centro de Eventos. Como já seria a segunda edição a acontecer no novo Centro, eu já sabia bem o que esperar das instalações, com base no que vira em 2012. Dessa forma, esperava poder usufruir melhor do evento, assistir a mais palestras e seminários, além de apenas andar pelos tradicionais estandes de livros. Lembrei de levar comigo, nesse primeiro momento, uma caneta vermelha, que seria de fundamental importância. Com ela, iria, uma vez de posse da programação impressa, fazer as devidas marcações, me programar efetivamente, sublinhando tudo o que de alguma maneira me interessasse, em meio às dezenas de opções.

Chegando ao Centro de Eventos, já eram perceptíveis algumas diferenças em relação a 2012. Para começar, a entrada dessa vez seria propriamente pela frente do prédio, não mais pela lateral. Por conseguinte, o estacionamento também seria o da frente, e dessa vez parecia bem mais organizado. As cancelas, ainda inoperantes há dois anos (na época o Centro tinha sido recentemente inaugurado), agora operavam plenamente, sob uma abusiva taxa de R$15 como valor único. Havia guardas e assistentes, e não parecia haver nenhum conflito ou tumulto por conta de vagas e afins. Ver a fachada da frente do Centro com os chamativos banners e painéis da Bienal foi o incentivo que faltava para me animar para a Bienal, agora sim eu estava preparado para respirar livros e literatura.



Pelas postagens divulgadas no Facebook, já era perceptível que a identidade visual da Bienal esse ano seria bem mais limpa que há dois anos. Para a homenagem a Moreira Campos, foram escolhidas cores fortes e chamativas, bem como as letras da palavra "bienal", que tinham sido concebidas como se fossem livros, e era incrível o esmero com que aparentemente foram uma a uma recortadas. Cada letra meio que representava um livro, só esperando para ser aberto, incentivando desde já a leitura. Aparentemente simples, mas muito funcional, pensei, assim que comecei a caminhar pelo estacionamento, antes de entrar no centro.

Tão logo atravessei os limites do portão de entrada B, me vi logo invadido (e amplamente aliviado do calor, por conta dos intensos ares condicionados), pela atmosfera definitiva da Bienal. Ali, comecei pouco a pouco a pensar, que apesar dos problemas e complicações com a programação e falta de divulgação, ainda era a Bienal do Livro, ainda era um evento de literatura de porte e, como tal, merecia e deveria ser aproveitado.



Ao longo do saguão principal, que há dois anos abrigaram painéis sobre a Padaria Espiritual, vi agora uma exposição dedicada ao principal homenageado desta edição, Moreira Campos. Com o tema A Fortaleza de Moreira Campos, o contista cearense era o foco central dos holofotes. Nesta exposição, inúmeras fotos do autor, de variados momentos de sua vida, bem como breves textos bibliográficos, e até desenhos. Havia ainda imagens de seus históricos escolares, juntamente a fotos históricas e memoráveis, como a em que aparece ao lado de Rachel de Queiroz. Por estar sempre à entrada, esta exposição era um ótimo convite a conhecer um pouco mais sobre a vida do grande contista. Aproveitei, então, para sempre visitá-la, a cada entrada ou saída do centro de eventos.










Outros homenageados, dentro da programação, seriam o escritor Milton Hatoum e o poeta Antonio Girão Barroso.

Antes de adentrar ao pavilhão da feira de livros, localizei a área destinada ao cordel, ou a Praça do Cordel, que ficava ainda no saguão central. Um pequeno palco diante de alguns bancos seria a base para apresentações, palestras, shows e tudo o mais desse gênero tão popular e característico. Inúmeros cordelistas também se agrupavam nas proximidades, em extensas mesas retangulares, divulgando e vendendo seu trabalho. Além dos clássicos livretos, havia ainda xilogravuras, camisetas e afins. Como ali era uma zona de grande movimento, pela proximidade aos expositores, era impossível não dar uma esticada para conferir essa literatura tão peculiar que está sempre presente na Bienal.




Os expositores ficavam exatamente no mesmo espaço que há dois anos, e não há muita novidade a se falar deles, com relação a como eram em 2012. Tradicionalmente como banquinhas, perfiladas, uma ao lado das outras, entrecortadas por um vistoso tapete alaranjado. Havia os de sempre: Paulus, Escala, Premius, Cortez Editora, Top Livros etc. Havia ainda os luxuosos e mais investidos, como o do Senac e os que sempre chamavam mais a atenção, como Os Menores Livros do Mundo. Todos disputavam a atenção dos visitantes, que eram a todo o momento fustigados por promoções e placas e letreiros chamativos de ofertas.









Como sempre gosto de fazer nos primeiros momentos, me dediquei apenas a andar entre os estandes, reconhecendo o ambiente que não via há dois anos. Embora já fizesse uma ou outra comprinha, procurava não me deter muito em nenhum deles, ainda não. Ainda não era hora de me debruçar sobre pilhas e mais pilhas de livros de 5 ou 10 reais. O movimento, ainda bastante reduzido, favorecia uma tranquila caminhada pelos corredores. Havia ainda uma música de fundo, que a princípio pensei vir de algum expositor, e que de uma maneira ou de outra dava todo um clima de relaxamento, tornando minha experiência ali ainda mais leve e tranquila.

Após algum tempo, estranhei não ver nenhum folheto com a programação, nem com os receptivos, nem nos balcões de informações e tampouco nos expositores. Será que não havia? Para esclarecer, perguntei a uma receptiva que me olhava com solicitude. Ela disse que a programação estava toda na internet, ao que eu falei que já sabia, mas se não haveria uma versão impressa e tal, para facilitar a consulta. A mulher não soube dizer, e mostrou na sua prancheta apenas folhas de papel com a programação impressa rudemente, tal como estava no site. Perguntei ainda se não fariam mesmo o folhetinho bonitinho, ao que ela disse algo como: "Olha, eles tão dizendo aí que amanhã vai sair". Agradeci e sai, decepcionado. Acabei por voltar para casa, encerrando a Bienal para mim neste dia. A pobre caneta vermelha, que tinha levado especialmente para grifar a programação, voltaria sem sequer ter sido destampada. Mas a hora dela ainda estava por vir.


Brilhos e luzes, convite a uma noite de leituras

Após esse primeiro dia, e essa decepção, tive que pensar com cuidado como faria nos dias seguintes. Era absolutamente vergonhoso um evento desse porte não dispor da programação a tempo hábil. "Está na internet". Grande coisa. Uma programação como a da Bienal não é uma programação qualquer, há centenas de atividades, muitas até simultâneas, de modo que fica quase impossível pensar "vou ver isso, isso e isso outro" e memorizar locais e horários, uma vez que ao chegar lá não terei internet para confirmar tudo (até onde vi não há redes wi-fi abertas nas dependências do Centro de Evento, outra decepção). 

Sem opção, tive de me aprofundar mesmo na programação divulgada no site, tentando assimilar e quase decorar o que queria ver ou assistir. Foi nesse momento que percebi um detalhe curioso. Não havia, aparentemente, nenhum convidado internacional nesta edição, ninguém que justificasse o rótulo de Bienal Internacional do Livro do Ceará. Em 2012 a situação era bem diferente: houve a ilustre participação do nigeriano Wole Soyinka, Nobel de literatura (1986). Dessa vez não havia ninguém com tamanha expressão, mas será que havia alguém de fora? Pesquisei com mais avidez todas as atividades ao longo dos nove dias, e encontrei um ou outro nome, entre os palestrantes de mesas e seminários, vindos da Alemanha, Portugal e São Tomé e Príncipe. Não havia, porém, nenhum destaque às suas presenças e creio que devem ter passado quase que despercebidos, embora estrategicamente convocados para manter o rótulo Internacional

Dessa vez, diferente das últimas edições da Bienal, fiz um esforço para conseguir ir o máximo possível, assistir a tudo o que pudesse, à medida, claro, que conseguia encontrar na programação. Com o passar dos dias, ficava cada vez mais fácil me localizar entre os expositores e achar o caminho de volta aos mezaninos, para as mesas e palestras. Em um desses dias, resolvi almoçar por lá, me lembrando de que em 2012 havia um espaço inteiro dedicado às refeições, quase uma praça de alimentação, com a presença de restaurantes conceituados, como o Spettus e lanchonetes mais populares. Esse ano, procurei muito por essa área, mas sem sucesso. Tudo o que havia agora eram lanchonetes, espalhadas ao longo de um corredor, numa das extremidades do pavilhão onde estavam os expositores, ou seja, no meio dos livros. Lembrei-me então de que essa praça de alimentação ficava além das passarelas... as passarelas que cruzavam a área dos expositores, claro! Como pude me esquecer de um dos principais destaques da Bienal de 2012? De onde era possível ter uma esplêndida panorâmica do evento, bem como da magnífica estrutura do Centro? Contudo, esse ano o sonho terminaria antes de começar. De lá de baixo, nas minhas andanças pelos estandes, não vi nenhum movimento na passarela, que parecia fora de uso. Na primeira oportunidade, contornei o saguão e subi ao primeiro mezanino, constatando que de fato a passarela estava, por alguma razão, interditada, e juntamente com ela, o acesso a essa praça de alimentação que tão bem nos alimentou há dois anos. Lembrei-me logo de um curioso episódio vivido por mim, enquanto passava por essa passarela, lá em 2012. A passarela meio que oscilava, durante o caminhar, e um segurança, ao me ver fotografando, chamou minha atenção, dizendo que ali era apenas para "ida e vinda". Cheguei a questionar, replicando que não havia nenhuma sinalização disso e ainda que o local era muito propício a fotografar e era quase impossível não parar um pouco para contemplar aquela visão. Inclusive, disse ainda que se fosse assim tão sério, melhor seria mesmo ter desativado a passarela. O homem disse que levaria minhas observações aos responsáveis. Pois bem, agora em 2014, não sei se por causa disso, mas a passarela estava desativada. O segurança teria bem menos trabalho, mas ninguém teria mais aquela bela panorâmica, grande destaque da Bienal do Livro, desde que acontecia no novo Centro de Eventos. 

Sem a praça de alimentação, restaram as lachonetes, bem como pipoqueiros, churros, chocolates e até sorvetes, espalhados ao longo de um trecho da área dos expositores, no coração da feira. Por um lado, essa medida foi boa, pois deixou tudo mais unificado, a feira e as refeições, tornou a experiência mais intensa, mas por outro, favoreceu a superlotação das poucas e desconfortáveis mesas e cadeiras de plástico. Ainda, os preços dos salgados eram literalmente bastante salgados. Cinco reais era o preço constante. A variedade até boa, mas a qualidade deixava muito a desejar, e muitas vezes fiquei pensando se valeria mais a pena investir aqueles cinco reais em um livro do estande que havia logo ao lado da lanchonete.

Ainda falando no âmbito de alimentação, a Bienal este ano trouxe novamente o tradicional Café Literário, um espaço especialmente preparado para se tomar um café enquanto se acompanha, periodicamente, a palestras e lançamentos de livros, num palco adaptado lá mesmo, na área do Café. A iniciativa sempre é interessante, e esse ano acho que se mostrou melhor do que visto em 2012. Agora o Café estava bem mais reservado, a um canto, fechado por paredes envidraçadas, para melhor reter o som, e bem preparado, com um vasto carpete acinzentado e mesas de ponta. Dois murais, com os homenageados do ano, Moreira Campos e Milton Hatoum, podiam ser vistos lá dentro. Passei bons tempos por lá, enquanto começava a esboçar este texto. Em termos comparativos, essa versão do Café Literário, a meu ver, se sobressai ante a de 2012, mas ambas ainda não chegam aos pés do que foi o espetacular Café Galo de Ouro, nome dado a ele na Bienal do Livro de 2010, que na ocasião homenageou a escritora Rachel de Queiroz. 



No Café Literário, tomava-se um café na companhia de Moreira Campos e Milton Hatoum

Além dos estandes, lanchonetes e do Café, a área dos expositores contava ainda com alguns espaços de recreação, áreas livres, apenas para se sentar, sem nenhuma pretensão ou compromisso. Entre elas, havia recriações do Bosque Moreira Campos, Praça José de Alencar e até do Passeio Público. Estes locais eram uma boa opção para uma pausa estratégica, para ver melhor o que se comprou, tomar uma água ou apenas relaxar. Ocasionalmente, aconteciam pequenas atividades nesses espaços, como o Almoço com Poesia, que consistia em uma homenagem a poetas como Manoel de Barros e Mário de Andrade, feita através da declamação de poemas, além de conversas e bate-papos mais informais.








Foi somente lá pelo quarto dia de evento que finalmente saiu o bendito folheto com a programação. E acabaria sendo bem como meu irmão, Diego Akel, que me acompanhou em boa parte de tudo, falou: "Eles atrasam mas quando sair, vão distribuir tanto que logo vai ter um monte jogado no chão". Não cheguei a ver exatamente essa cena, mas de fato até o final todos os cantos estavam entupidos dele. Felicidade da minha caneta vermelha, que enfim teria sua função, e assim que tive o livreto em mãos, me pus a marcar tudo o que ainda me interessaria nos dias restantes da Bienal. 




Bom, antes de encerrar esta postagem, não posso deixar de falar um pouco mais sobre a feira de livros, os inúmeros expositores, nos quais passei boa parte do tempo, às vezes antes de uma palestra, ou depois, e até pertinho da hora de fechar. Com a experiência das Bienais anteriores, continuo percebendo que o melhor é fazer compras nos primeiros dias, quando o movimento ainda é favorável. Aquela ideia de encontrar um livro bom e pensar "ah, depois eu volto aqui e compro, tem muito tempo ainda" me levou a perder a Interpretação dos Sonhos, de Freud, que esgotou rapidamente em todos os estandes de que me lembrava de tê-lo visto. Quem sabe na próxima.

O sortimento de livros me pareceu novamente de amplo alcance, chegando facilmente aos mais variados públicos. Romances e contos seguem, como não poderia deixar de ser, em maior número. Infantis e variados também se faziam notar, chamando muitas crianças. Muitos expositores traziam também livros de áreas como direito, medicina, informática (esta bem desatualizada) etc, a preços mais acessíveis. Porém, alguns, como sempre acontece, traziam livros pelo mesmo preço das livrarias, ou até mais caros, o que era um absurdo. A meu ver, as Bienais do Livro, cujo objetivo maior seria incentivar a leitura, não deveriam aceitar essa atitude. Qual o sentindo de ir a uma Bienal para comprar um livro pelo preço de livraria? O mais incrível é que, de uma maneira ou de outra, esses livros estavam vendendo, e ninguém parecia se importar muito com as cifras...




Fiz minhas compras aos poucos, um pouquinho em cada dia, aceitando o fato de que era impossível ver tudo de uma só vez, e dando total preferência a valores realmente promocionais. Tantos livros, tantos expositores, logo não tardaria a vir aquele cansaço mental comum a essa experiência. Nessa hora, parava um pouco, tomava um café ou comia algo, para em seguida recomeçar. Então, enquanto remexia em meio aos livros, ou observava outros nesse processo, processo muitas vezes bastante mecânico, comecei a pensar o que de fato isso representava. Estar ali, em meio a dezenas, centenas, milhares de livros, procurando muitas vezes não se sabe nem o quê, mas procurando; lendo incontáveis sinopses, orelhas, contracapas; passando por livros estranhos que com certeza jamais compraríamos. É cansativo, desgastante, mas aquela é a alma do evento. Tenho vários ótimos livros aqui hoje que foram adquiridos justamente nessas condições, nas últimas edições. Na  Bienal de 2012, tentei ser o mais contido possível na escolha do que comprar. Muitas vezes o preço convidativo pode induzir a uma compra desnecessária. Garimpar é uma palavra de ordem, na Bienal e em eventos do tipo. Mas mesmo garimpando, é preciso ter freios.





É sempre valoroso ver um evento dedicado à leitura e literatura tão cheio, tão incendiado por calor humano. As noites e principalmente os últimos dias foram os mais intensos. O vai-e-vai frenético, a dificuldade de andar entre os estandes, ou mesmo no interior destes, o altíssimo barulho de vozes e gritos, tudo estava presente. Fiquei me perguntando se todos que estava comprando livros realmente iria lê-los ou era apenas para aproveitar o preço. Inconscientemente, eu também era alvo desta pergunta. Por mais que tivesse certeza de que queria determinado livro, muitas vezes era assaltado pela ideia "será que ele me será mesmo útil?". É sempre difícil fazer escolhas, embora sejam tão necessárias.





Para este ano, minha vontade foi comprar ainda menos, apenas o realmente necessário, e olhe lá. Claro que boas oportunidades e supresas sempre podem aparecer, e acabei mesmo por revirar mais uma vez livros e mais livros, atitude que, apesar de exaustiva, tem lá seu lado divertido. Priorizei biografias, antologias de contos, linguística e análise semiótica, de autores ou sobre autores que de alguma maneira li ou pretendo ler. Essa peneirada favoreceu a manter o foco no que realmente me interessava. O melhor da feira de livros da Bienal é mesmo essa liberdade de escolha. E no meio de tanta garimpagem, podemos encontrar boas pepitas de ouro.  

Um pensamento engraçado me veio certa vez, enquanto esperava o ônibus na parada, ao lado de inúmeras outras pessoas também saídas do centro de eventos, todas com sacolas cheias de livros. Fiquei pensando: "o que será que tem na sacola de livros alheia?". A ideia me fascinou de tal forma que fiquei pensando nela por horas. Seria possível saber muito da personalidade através do gosto literário... ao mesmo tempo, pensei o quão boba essa ideia poderia se tornar, em um típico telejornal, no qual um repórter sem sal faz essa pergunta aos visitantes de um evento literário, haha...

Nos dois últimos dias, a movimentação nos estandes era monstruosa, a ponto de ser difícil até para andar. O tumulto era ainda coroado pelo show de Gilberto Gil, que encerraria a Bienal com louvor. Não tinha interesse no show, nem em sua fila que cedo começou a se formar. Felizmente, nesse momento eu já estava satisfeito, com o que consegui comprar e sobretudo com o que consegui assistir, nas palestras. A Bienal do Livro 2014, apesar de todos os percalços, foi maravilhosa. Poder conhecer um pouco mais da vida e obra de Moreira Campos, as mesas com Milton Hatoum, Luiz Ruffato... enfim, assuntos para próximas postagens...

Último dia de Bienal trouxe movimentação caótica


Ufa, não estava nos meus planos escrever sobre a Bienal, mas acabei escrevendo, e muito! E logo mais, postagens sobre as mesas e palestras que pude assistir, até lá!



Foto: Diego Akel

Ah, e aproveito ainda para relembrar os posts referentes à Bienal do Livro de 2012, cuja qual me referi bastante neste texto:

Bienal do Livro do Ceará 2012 (I - O evento)
Bienal do Livro do Ceará 2012 (II - Ignácio de Loyola Brandão)
Bienal do Livro do Ceará 2012 (III - Márcia Tiburi)

E ainda sobre o tema Bienal do Livro, postagens referentes à edição de 2010, primeira que passei a acompanhar com afinco e a postar aqui:

Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (I- Introdução)
Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (II- Emir Sader/Cordel)
Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (III- Ziraldo)
Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (IV- Moacir C. Lopes)
Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (V- Pedro Bandeira)
Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (VI- Maurício de Sousa)
Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (VII- Marina Colasanti)
Bienal do Livro do Ceará 2010: minhas impressões (VIII- Conclusão)