Fotos: Denis Akel
Chegando agora à sexta postagem relativa à Bienal do Livro 2014, que abordará a mesa A influência estética de Moreira Campos, com Adriano Espínola e Ana Miranda, mediados por Jorge Pieiro. O encontro ocorreu em 11 de dezembro, quinta-feira, a partir das 17h, logo depois da mesa Literatura e Loucura, da qual falei na postagem anterior.
O contista Moreira Campos, grande homenageado desta edição da Bienal, teve, além de uma exposição com fotos e fatos de sua vida e obra (veja na primeira postagem desta série), inúmeras palestras e mesas relacionadas. Diariamente, acontecia sempre às 17h, um seminário sobre a obra do autor, nesta mesma sala que foi cenário de praticamente todas as postagens que fiz desta série. Houve comemorações pelo seu centenário, discussões em torno da atemporalidade de sua obra, a arte literária presente em seus textos e tantos outros temas focando o contista.
Boa parte dessa programação, porém, ou chocaria com o horário das palestras que eu já decidira assistir ou seria justamente depois de uma delas, o que a tornaria muito desgastante, considerando que cada uma durava 1h30m. Assim, me foquei para ver o que tinha planejado, mas pensei que seria bom também assistir a pelo menos uma das mesas dedicadas a Moreira Campos, aproveitando o momento para conhecer um pouco mais do autor, que não lia há algum tempo. Escolhi esta, intitulada a influência estética, imaginando encontrar um bom panorama de seu processo criativo, e de como seu legado perdura até hoje. Acabei por encontrar bem mais do que isso.
Como disse, esta mesa aconteceu logo após a mesa de Jackson Sampaio, da postagem anterior. Só deu tempo de esticar um pouco as pernas pelo corredor e logo voltar à sala. Mais pessoas chegaram, somando-se a umas poucas também remanescentes da palestra anterior. Era perceptível uma outra energia no novo público, um público diferente, mais maduro, senhoras, senhores que pareciam saber perfeitamente bem porque estavam ali, quase como se tivessem conhecido o próprio Moreira Campos (e quem sabe tivessem mesmo, afinal). Identifiquei ainda rostos conhecidos de boa parte das mesas anteriores, como a curadora da Bienal, Mileide Flores, a também curadora e neta de Moreira Campos, Carolina Campos e o simpático jornalista Anderson Sandes.
Compunham a mesa a escritora cearense Ana Miranda, e Adriano Espínola, poeta, professor de literatura e sobrinho de Moreira Campos. A mediação ficou por conta do também escritor Jorge Pieiro. Procurei me sentar quase no mesmo lugar da palestra anterior, ainda que agora todas as cadeiras tivessem voltado para a posição normal. Após as apresentações comuns da Bienal, patrocinadores e afins, Ana Miranda tem a palavra. A escritora agradece a oportunidade, e começa falando um pouco de literatura em geral, passando por sua obra, e chegando a Moreira Campos:
A qualidade de um livro é proporcional à quantidade de sentidos ali contidos. – Ana Miranda
O que torna um autor canônico, segundo Harold Bloom, é a estranheza. – Ana Miranda
A originalidade de uma obra é a originalidade do eu autoral. – Ana Miranda
Tento partir do corriqueiro para chegar ao contexto fantástico, no estilo Moreira Campos. – Ana Miranda
Ana então falou de alguns ensinamentos bem peculiares de Moreira Campos, a lição da parede, a lição do copo, a lição do portão e a lição da cama. Ela então entreolhou Adriano, que lhe sorriu, concordando. Fiquei pensando em que consistiriam estas lições, de nomes tão simples e aparentemente bobos. Na verdade, estava diante de um conhecimento incrivelmente complexo, disfarçado nesta aparente simplicidade. Adriano Espínola faria uma boa explanação destas lições, como direi mais a seguir.
Ana também contou a história de Pedro Salgueiro, que teve em Moreira Campos uma espécie de mentor. Ele admirava muito o escritor, já conhecendo boa parte de sua obra, e embora passasse por ele quase todos os dias, ao cruzar o Bosque de Letras (hoje Bosque Moreira Campos), não tinha coragem de lhe falar. Assim passaram-se quase dez anos. Pedro, que começara então a também escrever contos, conheceu a filha do escritor, a também escritora Natércia Campos, que de certa forma facilitou seu antigo sonho. Fez algumas visitas ao apartamento de Moreira, sendo muito bem recebido por ele e sua esposa, dona Zezé. Numa destas visitas, Pedro teve a coragem de levar um exemplar de seu primeiro livro, pedindo a Moreira que ele, nas palavras do próprio Pedro, "desse uma olhadinha, se pudesse". Moreira Campos deu uma olhadinha, e fez bem mais do que isso.
Segue o artigo completo, que foi lido por Ana na ocasião desta mesa, de autoria do próprio Pedro Salgueiro: Moreira Campos por Pedro Salgueiro.
A mesa foi adiante:
Há uma relação entre Machado de Assis e Moreira Campos, ambos gostam de revolver os lados psicológicos, ambos têm uma dose de descrença na humanidade. – Ana
Na estética de Moreira Campos, descrições devem ser sempre com o mínimo de informações, mas o máximo de sugestões. – Ana
Moreira Campos primava pelo acabamento de seus textos, e sua obra influenciou todos os escritores depois dele. – Ana
Jorge Pieiro leu, com grande emoção, um conto do livro inédito de Moreira, A Gota Delirante. Um texto de leitura intensa e vibrante, como lhe era tão comum. Impossível não lembrar de Dizem que os cães vêem coisas, que considero uma de suas melhores obras. As palavras de Jorge logo absorveram o público, que o acompanhou com grande atenção até a última palavra, a última sensação. De onde eu estava, não pude deixar de reparar, em certo momento, que aquela leitura emocionou também a neta de Moreira, Carolina, sentada à minha extrema esquerda. Ela chegou mesmo a chorar, de modo contido, sensibilizada, talvez lembrando do avô, talvez da mãe, de tudo, toda essa energia, que lhe deve ser comum, mas que agora chegou com mais intensidade, ao ouvir aquela leitura, naquele momento. Fiquei pensando "puxa, ela passou a semana inteira envolvida diretamente nesse evento, e até antes, no planejamento... esteve ainda em quase todas as palestras, deve ter revivido e relembrado muita coisa do avô, da mãe... não dá mesmo para não se emocionar". De certa forma, ouvir ali, naquelas circunstâncias, aquela leitura, deve parecer quase como ouvir o próprio Moreira Campos falando... Ao final do conto, uma enorme salva de palmas encheu a sala. O livro, que seria originalmente publicado em 1990, por conta do falecimento de Moreira, acabou guardado por vinte anos. Agora, por iniciativa de Carolina, ele seria uma das grandes atrações do evento, a ser lançado no dia seguinte, lá mesmo na Bienal.
Jorge então passou a palavra, e antes de começar a falar sobre Moreira Campos, Adriano Espínola disse a princípio achar estranho chamá-lo assim, pois sempre passou a vida o chamando de tio Zé Maria.
Moreira era um admirável contador de histórias, sobretudo anedotas. O contar para ele era natural, contava tudo com muita graça, mesmo com seu ar sério, encantava a todos. – Adriano Espínola
Moreira Campos é um escritor muito importante, deveria ser mais conhecido no Brasil – e Adriano contou que certa vez estava num festival literário no Rio, quando um homem ganhou um prêmio e lembrou, antes de tudo, de Moreira. Adriano achou aquilo incrível, percebendo a força que ele tem e que ainda pode vir a ter.
A maneira como Adriano falava, com grande propriedade, dando o tom certo ao que dizia, cativava de imediato. Era visível que também tinha uma veia contadora de histórias. Imaginei que com certeza ele aprendeu muito com o tio Zé Maria.
E então, Adriano abordou novamente as quatro lições. A lição da água foi a primeira. Tudo começou quando ele, há muito tempo, ainda estudante de letras, costumava, na saída das aulas, passar na casa de Moreira Campos, na época próxima ao campus do Benfica, para conversarem, ou "literarem". Em um desses dias, Adriano estava refletindo sobre o real valor da literatura, e disse a seu tio que obras literárias, por provirem da imaginação, não passam, portanto de uma mentira. Moreira não se abalou, e disse: É, pode até ser uma mentira, mas as fábulas de La Fontaine têm mais verdade humana do que essa parede, e apontou logo para uma parede a seu lado. E continuou: É mentira que uma raposa possa falar e pensar, mas o que ela diz, na fábula, sobre uvas que não pôde alcançar, a verdade humana que está aí, meu velho, vai durar mais que esta parede! Moreira Campos não poderia estar mais correto; a parede a qual ele se referia já não existe hoje em dia, uma vez que sua casa foi demolida em 2005 para dar lugar a uma expansão de estacionamento do shopping Benfica... mas a verdade humana, essa sem dúvida, perdura e sempre perdurará. Adriano assim entenderia o sentido da literatura, sua atemporalidade, através da lição da parede.
Para as demais lições, encontrei esse link, de uma fala proferida pelo próprio Adriano, em 1994, poucos meses após o falecimento de Moreira. Aqui, ele relembra o convívio com o escritor, bem como as célebres lições de seu legado: Quatro lições do mestre Moreira Campos.
E a mesa então prosseguiu:
A literatura tem que ser clara como um copo d'água – Adriano, citando a lição do copo d'água.
É um autor extremamente visual, como João Cabral. Com poucas palavras e recursos, arma toda uma cena com funcionalidade imediata. Moreira, contudo, não gostava de João Cabral. – Adriano
Machado de Assis sempre foi um grande mestre, para Moreira. – Adriano
Moreira tinha uma grande admiração por Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Guimarães Rosa – Adriano.
Outro grande mestre do conto que também foi bastante lembrado na mesa foi o dramaturgo russo Anton Tchékhov. Sua obra, caracterizada sobretudo por narrativas curtas, influenciou inúmeros outros escritores, como Katherine Mansfield, Virginia Woolf e o próprio Moreira Campos. Através de um tema de Tchékhov, a metáfora da mosca prisioneira, surgiram inúmeros textos com temática similar, como A Mosca, de Mansfield, O vestido novo, de Woolf e A Grande Mosca no copo de Leite, de Moreira. O contista cearense ainda levou a temática tchekhoviana a outra vertente. Em vez da ideia da mosca retida, presa, incapaz de soltar-se, da dor do viver aprisionado, Moreira parte de um sentimento de injustiça com uma situação para criar uma revolta, uma indignação. O conto é forte, talvez para propor essa sensação e a metáfora então passa a representar coragem e resistência, em um tom menos denso do que visto em Tchékhov, apesar do caráter sádico usado pelo cearense. O conto pode ser lido aqui.
Ainda sobre Tchékhov, Adriano Espínola disse que Moreira Campos costumava citar e adotar muito também um outro princípio dramático provindo do escritor russo, conhecido atualmente como a arma de Tchékhov. Basicamente, consiste em evitar adornos, objetos e qualquer elemento desnecessário à história. Se foi citado um revólver, por exemplo, ele deverá ser usado:
Ninguém deve colocar um rifle carregado no palco se ninguém estiver pensando em dispará-lo. – Anton Tchékhov
A ideia é simples: não se demorar em detalhes irrelevantes, sem importância, filtrar ao máximo apenas o essencial para o desenvolvimento da história. O termo "arma", pelo que pesquisei, é bem genérico, podendo aqui estar qualquer outro elemento que ocupe similar função. Moreira Campos, segundo Adriano Espínola, a lembrava com a imagem de uma espingarda, e ia até um pouco além da máxima tchekhoviana, ao dizer que a arma não só deveria ser usada, como deveria ser colocada logo de volta no lugar.
Num conto, todos os elementos têm que ter uma coesão extraordinária, é preciso ter coerência para tudo. – Adriano.
Tchékhov dizia que se deve escrever contos sobre coisas longas, de formas curtas. A concisão é irmã do talento. Quanto mais conciso, mais forte. – Adriano.
Para mim, Moreira foi um modelo, me deu a medida da dignidade do que é ser escritor. Dava grande dignidade ao ofício de escrever. Assumiu isso – elegância, dignidade, dimensão extraordinária – para mim e para todos os que circulavam perto dele. – Adriano.
Neste ponto, olhei o relógio, constatando que a mesa já estava prestes a terminar. Que pena, agora que a conversa estava tão produtiva... como passou depressa.
Era um homem de convívio agradável. Educado, mas implacável na observação do bicho homem; grande observador das fraquezas humanas. – Adriano
Nos momentos finais, uma nota de Raquel de Queiroz, que já havia sido lida no início por Ana Miranda, foi lida novamente por Adriano. A nota encontra-se na orelha do livro Dizem que os cães vêem coisas:
Como prosador, poucos, neste País, terão um tal seguro domínio do idioma, um tal senso de aproveitamento de valores, prosa tão límpida, formosa e equilibrada, tanto foge à vulgaridade dos efeitos fáceis quanto aos preciosismos e invenções. Moreira Campos usa e enriquece a língua portuguesa do Brasil com sabedoria de professor e bom gosto de artista verdadeiro. – Rachel de Queiroz
O pequeno, mas interessado público da sala começou a aplaudir, mas Adriano ainda tinha uma última coisa a dizer:
Moreira Campos, por opção, nunca quis sair de sua terra, mas não é nenhum absurdo dizer que ele é um dos maiores nomes da literatura mundial, tanto quanto Balzac, Fitzgerald ou Tchékhov. Moreira é o pai de todos os contistas, escritores, do passado, presente e futuro, aqui do Ceará. – Adriano.
E eclodiram aplausos vivos e entusiasmados. Mais uma mesa que chegava ao fim, e mais uma vez a sensação de enriquecimento por ter podido assisti-la. O trio, Ana Miranda, Adriano Espínola e Jorge Pieiro levantou-se, sendo logo cumprimentado por amigos e parabenizado pelo belo debate. Os rostos de todos faiscavam, satisfeitos. O meu também. Registrei, tanto quanto possível, estes momentos. Não havia, e nem fazia sentido haver, qualquer mesa de autógrafos ou similar. O objetivo daquela mesa não era vender livros, mas homenagear Moreira Campos. Os palestrantes ainda dedicaram uns bons minutos a conversar com o público, ali mesmo na sala, antes do encerramento total.
Da esquerda para a direita: Anderson Sandes, Adriano Espínola, Jorge Pieiro, Carolina Campos e Ana Miranda |
Levei muita coisa desse momento, e acho que só percebo melhor isso agora, após escrever este texto. Além da questão prática, da estética literária, as histórias de vida que pude, de certa forma, conhecer, desde a de Pedro Salgueiro, a sutil aproximação do leitor com o escritor, que se deu quase como um aprendiz conhecendo seu mestre; a relação entre Moreira Campos e Adriano Espínola, que com certeza era bastante especial, quase fraternal, como se Moreira pudesse responder a quase tudo que Adriano perguntasse; e até a expressão emocionada no rosto de Carolina Campos, uma marca de um sentimento único, puro, que se manifestou verdadeiramente, a saudade de seu avô. Uma palestra que me fez crescer muito como escritor, mas bem mais como ser humano.
A seguir, a oitava e última postagem desta série, centrada na participação de Xico Sá e Ricardo Kelmer, com a mesa O conto nosso de cada dia.
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