Fotos: Denis Akel
Seguindo com esta série de posts da viagem que fiz com meu irmão à Festa Literária Internacional de Paraty, em julho deste ano, vamos à segunda parte do post anterior, dedicado a algumas das mesas e palestras que pudemos assistir. Novamente, continuando exatamente do ponto deixado no post anterior, o fim da mesa Zé Kleber.
A PRÓXIMA MESA: DE MICRÓBIOS E SOLDADOS
Saímos de toda a movimentação da mesa Zé Kleber por volta das 13:30, e tivemos apenas uma pequena brecha para o almoço, antes desta próxima mesa, marcada para as 15:00. Escolhi esta mesa, De micróbios e soldados, pelo contexto que ela parecia trazer. Diego Vecchio e Sasa Stanisic, de acordo com o folheto da programação, eram dois destaques da ficção contemporânea. Em resumo, Diego transformou sua mania de doenças num livro, Micróbios. Já Sasa tinha a experiência da guerra da Bósnia recorrente em seus romances. Na Flip, ele lançaria Antes da festa, sobre um vilarejo na Alemanha que luta contra o desaparecimento e a extinção de sua memória. Parecia sem dúvida um interessante entrechoque, dois universos bem distintos, que colidiriam naquela tarde. Além de tudo, o encontro teria a mediação de Joca Reiners Teron, escritor que já conhecia de vista de outros eventos, sempre muito perspicaz em suas colocações.
Esta seria a segunda mesa que assistiria de dentro da tenda. Como disse no post anterior, comprara ingressos apenas para duas mesas, esta e a última, Livro de Cabeceira. A mesa Zé Kleber foi gratuita, e apesar de todas as mesas serem também gratuitamente transmitidas no telão na parte externa da tenda, era uma sensação única estar lá dentro, ver de perto toda aquela ação, sentir aquela pulsação, aquele frenesi. E além da mesa em si, seria possível ver e viver todo um mundo de pequenos acontecimentos; inesperados, surpreendentes, curiosos, que direi ao longo deste texto.
A FILA DOS PATRONOS
Após o almoço, e já de posse do ingresso, eu estava sossegado, mas tentei não demorar muito para garantir um bom lugar no auditório. Quando tornamos à tenda dos autores, porém, vi um movimento colossal em volta da entrada, e logo nos achegamos, ficando atrás de onde a fila parecia começar. Nesse momento vimos o que parecia ser uma outra entrada, na outra extremidade, onde também havia uma fila, menor, porém que já permitia a entrada. Descobriríamos depois que esta fila era um acesso preferencial, destinado a jornalistas e também aos chamados "patronos", que eram pessoas que tinham de alguma maneira contribuído para o evento, seja através de doações de dinheiro ou livros, e portanto tinham, entre outros benefícios, um crachá especial, direito a entrar primeiro, e por essa entrada preferencial. Havia até bastantes patronos, e sempre que víamos alguma pessoa munida daquele curioso crachá verde, ficávamos pensando o que ele significaria.
Meu irmão, Diego, desta vez decidiu não assistir na tenda, iria dar um passeio pelas imediações, respirar um pouco outros ares, e além de tudo economizaríamos um pouco de dinheiro. Depois soube que ele acabou parando no telão e assistindo um pouco, o que foi bem interessante, pois assim pudemos trocar experiências de ambos os pontos de vista. Diego ficaria ainda comigo na fila, conversando, enquanto aguardávamos a liberação de entrada. Eu estava novamente bastante ansioso, à expectativa de mais aquela mesa. Os minutos passavam, vagarosos, enquanto ali estávamos, e mais e mais pessoas foram chegando. Logo nos vimos imersos numa multidão gigantesca, um mar de gente, de vozes, de expressões, e tudo nunca pareceu tão bom, estar no coração daquele caos.
Movimentação antes da mesa. Ao fundo, a fila dos patronos e Paulo Werneck, curador da Flip, em uma entrevista |
Até que finalmente escutei um barulhinho eletrônico constante, como de uma máquina registradora de supermercado, e olhei para a frente da fila, vendo algum movimento de entrada. Era tão somente o ruído da maquininha leitora de ingressos, que anunciava que a entrada fora liberada. Me despedi de Diego e segui o fluxo, à medida que consegui, entrando na portinha e subindo os degraus iluminados. Estava prestes a viver novamente um fantástico jogo de sensações.
E NA TENDA DOS AUTORES, OS FONES DE TRADUÇÃO SIMULTÂNEA
Estar no interior da tenda pela segunda vez foi uma sensação diferente. Eu não me sentia mais um estranho, como da primeira vez. Tudo parecia mais nítido, mais crível, apesar de ainda gerar intenso deslumbramento, sobretudo por agora estar sozinho, e ter de guardar minhas observações para mim mesmo. As primeiras fileiras já estavam tomadas pelos patronos. Não hesitei em procurar um lugar mais ou menos no meio do auditório, perto do palco, e o fiz rápido, pois todos pareciam querer fazer o mesmo. Uma vez sentado, armei-me de meu diário de anotações, para já começar a transformar um pouco daquelas sensações em palavras.
E lá estava eu, imerso no meio de toda aquela gente, sozinho, mas ao mesmo tempo preenchido, completo. Chamou-me de cara a atenção o fone de ouvido atrelado à cadeira, que naquela mesa teria papel fundamental. Na mesa Zé Kleber, embora não tenho sido usado, já o tinha percebido, mas não com a devida atenção. Agora, ele seria um dos astros do show, possibilitaria a tradução simultânea. Dediquei um tempo analisando o aparelhinho, conferindo o estado do fone, caso fosse preciso trocar, mas tudo parecia direito. O auditório foi enchendo, e logo a fileira na qual estava foi quase que totalmente preenchida. Mais alguns minutos depois, as luzes baixaram e o telão exibiu o vídeo em homenagem a Mário de Andrade, em seguida os anúncios tradicionais dos patrocinadores, bem como a introdução da Associação Casa Azul, órgão que é responsável pela Flip, que além de apresentar como operar o aparelhinho de tradução, sempre reforçava que não se permitia fotografar ou filmar a palestra. Desta vez, o que me chamou mais a atenção foi a parte dos controles do aparelhinho, para saber de antemão onde aumentar o volume ou quais canais correspondiam a qual idioma, uma vez que isso não ficava claro só se olhando para o dispositivo.
As luzes tornaram a acender, revelando um auditório agora quase cheio, mas ao olhar em volta, vi ainda vários lugares vazios, principalmente nos flancos da estrutura. Apesar do grande movimento do evento, ouvi comentários que esse ano não estava como nos anos anteriores, por conta da tal crise, mas falarei disso mais adiante. E lá estava de novo o curador Paulo Werneck, no centro do palco, e com um sorriso de satisfação deu boa tarde a todos e abriu mais aquela mesa, a terceira daquele dia. Paulo introduziu brevemente os convidados, Diego Vecchio e Sasa Stanisic, bem como o mediador da conversa, Joca Reiners Teron. Enquanto ele falava, peguei meu fone, para já tentar me acostumar a seu uso, foi então que aconteceu o inesperado: o fone de minha cadeira quebrou, um dos acolchoados dos ouvidos soltou-se da haste. Tentei recolocar a todo momento, sem êxito. E agora? O que fazer? A quem recorrer? Nesse momento Joca já tinha assumido a palavra e apresentava a dupla de autores, falando um pouco de suas obras e histórias de vida. Eu começava a me desesperar, imaginando já que não conseguiria ouvir nada da mesa, quando percebi o fone da cadeira ao meu lado, que estava vazia. Foi a salvação. Troquei os conectores e coloquei na cabeça. Pronto, deu certo, ouvia claramente a voz de Joca, aliás, a voz da tradutora, que o traduzia aos escritores estrangeiros.
É engraçado que sempre quando assistia a essas mesas de casa, nos anos anteriores, na tela do computador, ficava alternando entre os idiomas, sempre achando incrível o trabalho dos tradutores que em tempo real transmitiam as falas dos convidados internacionais para o português. Agora, eu podia ver a pequena guarita um pouco ao fundo da plateia, onde ficavam os tradutores, que tinham de estar sempre prontos, sempre atentos. É um lado da Flip que sempre admirei muito.
QUE VENHAM OS MICRÓBIOS E SOLDADOS
Como era costante nessas mesas, os escritores começavam lendo trechos de seus livros mais recentes, para aclimatar o público, demonstrando um pouco de suas narrativas. Era sempre um bom momento para se deixar levar por suas palavras, tentar perceber naqueles fragmentos um pouco de suas vidas, de suas identidades, um momento bastante precioso. Diego Vecchio começou a ler, e o fez diretamente de um tablet. Foi a primeira vez que vi isso na Flip, e achei uma cena bem engraçada, que mostrava a clara evolução de tudo. Já o bósnio Sasa quis ler em alemão, e o fez, direto de um manuscrito, com determinação, a mão em riste ditava o ritmo da narrativa. Ele disse que era um trecho de seu livro novo, que se passa numa aldeiazinha no norte da Alemanha, de como é incrível trazer essa história a Paraty, ao Brasil.
Vi, de onde estava, que Paulo Werneck, que não usou o fone quando Sasa começou a falar em inglês, teve de recorrer a ele, quando se falou em alemão. O curador ficava sempre ali, em cadeiras especias, quase ao lado da mesa, abaixo de um dos telões, certamente para ter uma visão geral do andamento das mesas, e para ficar a postos caso algum imprevisto surgisse. Ao lado dele, um outro rapaz que parecia seu assistente. E foi neste momento que percebi que não conseguiria focar a atenção somente na mesa, mas também no que acontecia no entorno dela. Os bastidores, a movimentação da produção, os detalhes da estrutura da tenda, a iluminação, as demais pessoas ao meu lado, tão características, tão diferentes. Gosto desses detalhes. Tudo era muito interessante de observar. O fato de eu estar sozinho favorecia essas apropriações, essa consciência, como se eu conseguisse captar uma realidade que de alguma maneira não estava visível na ocasião da mesa Zé Kleber. Com meu caderno em mãos, segui escrevendo tudo o que me inundava os sentidos, mas também tentando pegar algo da mesa em si.
Sentado, minha atenção girava entre o debate que se iniciava, ali a poucos metros, e as pessoas à volta. Novamente, como tenho observado desde cheguei a Paraty, o público da Flip é muito interessado. Muitos senhores, senhoras, mais ou menos na faixa dos 40-70 anos (que parecia ser maioria do público), ouviam, com os fones de ouvido bem presos, acompanhando a tradução com afinco, se alimentando daquilo, realmente apaixonados por literatura.
"SAÍMOS DO PAÍS ATRAVÉS DE UMA PIADA"
Após as leituras iniciais, Joca disse ser difícil achar similaridades entre os dois autores, e brincou citando algumas bem óbvias, como o fato de serem homens, brancos, escritores. Diego Vecchio, argentino, mora na França há mais de vinte anos; Sasa, bósnio, vive na Alemanha desde os doze anos. Podia não parecer, mas havia pontos em comum, e muitos, que seriam descobertos ao longo da conversa. Um dos mais recorrentes era o fato de serem imigrantes, de terem saído de suas terras, e esse tema viria a permear todo o debate.
Inicialmente foi levantada a questão da guerra, que ambos de alguma maneira sentiram, pois eram muito novos quando eclodiram guerras significativas em seus países. Sasa contou que ao saírem da Bósnia, da fronteira com a sérvia, militares lhes pararam o carro e perguntaram se tinham armas. Isso rendeu um desfecho surpreendente
"Meu pai disse ao soldado: Sim, temos gasolina e isqueiro. O soldado riu. Foi a piada mais besta, mas fez com que ele não pedisse nossa identificação. Se tivesse pedido, veria que minha mãe tem nome árabe e a mandaria de volta para a Bósnia, onde ela não estava mais segura. Saímos do país através de uma piada tola do meu pai" – Sasa
Entre as muitas pessoas que estavam ali, algumas, como eu, faziam anotações. Achei muito legal ver essas cenas. Na fileira atrás de mim, um senhor estava debruçado sobre um caderno desses universitários e tomava notas com grande afinco, alternando o olhar entre o papel e a mesa, para não perder um detalhe. Mais ao lado, outras pessoas repetiam o ritual em bloquinhos, e era tão incrível observar essa manifestação silenciosa, a maneira como cada um buscava se apropriar daquela conversa, guardar um pouco daquilo.
Notei, assim num golpe de vista perdido, que Sasa trajava meias azuis escuras, que davam um curioso contraste com suas demais roupas, como que destacando-o. Teria isso alguma representação? Talvez uma mania, um acaso? Ou apenas coisa da minha cabeça? Contudo, o próprio Sasa chamou atenção, não para as meias mas para seus sapatos, que segundo ele eram iguais aos de Diego, e disse entre risos que este seria mais um ponto em comum entre eles.
Percebi que apesar do aviso para desligar celular, muitos não o fizeram, e vi algumas telinhas iluminadas, alguns rostos abaixados, em meio àquelas dezenas de pessoas. Temendo alguma represália, preferi não usar, razão pela qual esse trecho está com poucas fotos, uma vez que só as tirei ao final da mesa. Percebi ainda inúmeros receptivos da Flip, de vermelho, que ficaram o tempo todo de pé, a um canto, mais atentos ao que se passava no público do que no palco. Imaginei que fosse algum suporte ao público, caso necessário. Não pude deixar de imaginar também se eles por acaso assistiam a alguma coisa da mesa.
LITERATURA X HIPOCONDRIA
Um dos momentos mais bacanas da mesa foi toda a questão da hipocondria que revestia Diego Vecchio e seu livro Micróbios. Ele explicou de maneira geral que a hipocondria é como uma guerra do corpo contra os micróbios. Falou ainda de como se deu seu processo de criação da obra, que teve de "se tornar" um escritor hipocondríaco, fazer uma mímica com suas ideias. Durante o ato de escrita, desenvolveu sua sensibilidade com relação a doenças, projetando, aumentando sintomas, coisas assim.
O hipocondríaco é uma pessoa hipersensível às menores alterações do corpo. Doí a cabeça e já acha que tem um tumor cerebral. – Diego
Ele acredita que o hipocondríaco põe sua imaginação a serviço do corpo, do que poderia ou não acontecer nele, similar ao que fazem os escritores, que escrevem livros de maneira parecida, buscando distorcer a aparente verdade que há por exemplo no trabalho de historiadores e jornalistas.
Há um ponto em comum entre o hipocondríaco e o escritor: a imaginação – Diego
A imaginação pode ser como um vírus para um escritor. Quando se inventa historias. As histórias, os personagens, nos possuem enquanto escrevemos, e só saem quando concluímos a obra. É como literalmente adoecer. – Diego
O escritor citou ainda um desenho animado que costumava assistir muito quando era criança. Era um desenho que explicava como o corpo funcionava, no qual micróbios, vírus, células e etc eram personagens, viviam no corpo e faziam coisas. Diego disse que ficou fascinado quando o viu pela primeira vez, a ponto de cortar um pouco o dedo para ver com uma lupa o que acontecia, numa inocente curiosidade infantil.
O nome do desenho é Era uma vez a vida. Não me lembro de tê-lo visto antes, mas foi uma grande felicidade poder conhecê-lo. Uma produção França/Japão, com animação bem caprichada, personagens expressivos e sobretudo um enredo curioso e atrativo, como não se vê nas produções de hoje. Vale muito a pena assistir. No Youtube há alguns episódios, como esse abaixo:
Sempre acreditei que houvesse um mundo dentro de nós, com suas próprias leis, seus sistemas, sua maneira de lidar com as doenças e com o organismo. É como escrever, ter suas regras, seu estilo, seu mundo – Diego
Depois de ter toda essa percepção, aprendi também que o lugar com mais bactérias num hotel não é no vaso sanitário, mas no controle remoto da televisão. O vaso é limpo todos os dias, o controle não. Nunca mais vi televisão num hotel. – Diego
O SOM QUE VEIO DO SONO
Certa hora, percebi assim de repente, a duas cadeiras ao meu lado, uma moça que mais cochilava do que assistia. Pensei muita coisa: como entrar aqui, pagar o ingresso caro, e dormir? Mas podia também estar muito cansada, quem sabe o que já terá feito naquele dia? Será que era estrangeira? Seria de lá mesmo de Paraty? Qual seria sua afinidade com a Flip? Qual sua história, para que ela estivesse ali naquele momento, e dormindo? Jamais saberei nenhuma dessas respostas, mas não consegui deixar de criar essas perguntas. Subitamente ela despertou, pegou meu antigo fone quebrado e mexeu algo nele. Mas que estranho.
E por falar nos fones, eu fiquei meio atrapalhado com eles. No início foi divertido, brincar entre os idiomas, regular os canais, mas depois encontrei uma intensa interferência. De novo, o que fazer? A quem chamar? Mexi no fio, no conector, alternei infinitas vezes entre os canais, mas sem resultado. A voz do tradutor ficava cada vez mais longe. Fiquei um pouco receoso. Será que devia tentar chamar uma das moças de vermelho para me ajudar? Nenhuma delas olhava na minha direção. Que situação. Foi quando olhei para o lado e vi meu antigo fone, e o peguei, e qual não foi minha supresa ao ver que estava consertado! A moça sonolenta o tinha consertado, foi minha salvação! A transmissão agora estava perfeita. Infelizmente, acabei não pudendo lhe agradecer pois ela logo voltou a cochilar...
OBSERVAÇÕES PARALELAS (II)
Ainda me encantava muito admirar o painel de Mário de Andrade, ao fundo, visto ali de tão perto, belíssimo, atemporal. Olhando-se só por ele talvez não se poderia dizer em que época a Flip se passava. Era 2015, mas poderia ser 2005, 1995, 1975... Ri comigo mesmo nestes pensamentos. As poltronas que acomodavam os autores também chamavam a atenção, cada uma de uma cor, vermelha, amarela e azul, numa curiosa sintonia com o painel de fundo, uma simbiose de cores tão agradáveis ao olhar.
E falando em cores, uma moça de verde, à direita do palco, no extremo oposto de onde estava Paulo Werneck, abaixo do outro telão, estava sentada com um macbook no colo. Imaginei ser a responsável pelo Twitter, ou demais redes sociais da Flip, de interagir com o público que via pela internet, de transmitir as perguntas enviadas aos palestrantes, como me lembro dos anos anteriores. Talvez tenha sido ela a responder meus tweets nesses anos anteriores, algumas sugestões que dei, como mostrar a plateia em outros momentos que não fossem os de aplausos.
Perdi o olhar durante algum tempo também observando as luzes, os inúmeros refletores espalhados pelo teto da tenda, que durante a palestra em si, iluminavam à meia luz, mas sempre a cada salva de palmas clareavam intensamente, revelando o esplendor da plateia cheia, como um sol a brilhar, mas não apenas uma luz artificial, havia mais ali, um sol de calor humano.
DO LIXO PARA O LIVRO
Em certo momento da mesa, quando se falava das possíveis referências dos livros de ambos, Joca enxergou influências de uma literatura tradicional, do tratado científico, do conto oralizado. Estaria o futuro da literatura no passado? Questionou o mediador. Sasa explanou mais um pouco de sua obra, da pesquisa que fez, coletando histórias antigas da aldeia.
A literatura acontece quando você pega uma história do passado, uma história não concluída, e você, como escritor, tem habilidades para conclui-la. – Sasa
Diego falou de A saúde dos homens de letras, um importante tratado do francês Samuel Tissot, que tem uma epígrafe em seu livro Micróbios. Na obra, Tissot dizia que os homens que escrevem padecem de males terríveis, como cegueira e epilepsia. Diego no fim das contas achou tudo bem divertido, uma vez que toda essa teoria é falsa. São histórias que a ciência joga fora, inutiliza.
Histórias que a ciência joga no lixo, a literatura vai lá, as pega e as recicla. A partir de histórias e teorias errôneas, cria-se ficção, de um material descartado pelo ciência ou pela história – Diego
O ENCANTO DAS PEQUENAS CIDADES
Falando sobre o livro Antes da festa, de Sasa, Joca evocou a cidadezinha retratada no romance do bósnio, e comentou que para ele (Joca) cidades pequenas têm um ritmo muito próprio, meio letárgico, como um pesadelo. O mediador disse ainda que no livro, tem-se a sensação de que a cidade está à espera de se impor de vez na vida dos personagens, deixando o leitor meio que em sustentação. Terminou mencionando que a ideia veio de uma visita que Sasa fez à sua cidade natal, Visegrad, na Bósnia, e pediu-lhe para que contasse um pouco disso e porque ambientar a trama numa cidade pequena.
Venho de uma cidade muito pequena, mas a cidade de meu avô e bisavô era ainda menor, um vilarejo nas montanhas, que hoje em dia tem apenas 13 habitantes. – Sasa
O bósnio contou que a visitou para poder escrever o livro, e achou tudo muito interessante, por haver tanta história ali, mais do que isso, a sua história. Como só tinha 13 habitantes e sua família morara lá, ele era parente de todos. Ficou maravilhado por descobrir suas origens, seus antepassados, e também assombrado ao perceber que o vilarejo pode desaparecer nos próximos anos, uma vez que só há idosos, os jovens saíram, não nasce mais ninguém.
Sempre achei cidades pequenas lugares mágicos – Sasa
Nossas origens como pessoa têm muita importância. As histórias daquelas pessoas eram minhas histórias – Sasa
Quis preservar as histórias, as lendas, as biografias, os mitos daquele lugar. Conversei com todos e comecei a escrever. Todas aquelas histórias tinham a ver com minha família, eram minhas histórias, as carregava dentro de mim. – Sasa
O fenômeno dos lugares que desaparecem é comum no mundo inteiro, jovens saem do campo e vão para a cidade. Eu estava muito interessado não nos que saíram, mas nos que ficaram. Saber o que eles querem fazer com a vida, o que querem vivenciar – Sasa
Me apaixonei por pessoas que lutam contra seu próprio desaparecimento – Sasa
Diego partilhou deste interessante ponto de vista e aproveitando a relação entre escrita e desaparecimento, do viver em um lugar estando em outro, perguntou a Sasa como foi a sensação de seu voltar a seu povoado, mas vendo-o de fora, estar ali mas ao mesmo tempo não viver ali.
Sair de minha terra quando era criança me permitiu sempre sentir que todos os lugares podem se tornar meus, onde quer que eu esteja. Sempre penso com seria minha vida se morasse neles. Tento levar isso a meus personagens. – Sasa
O papel dos escritores modernos é recolher, coletar vidas, e colocá-las em ambientes, ambientes em desaparecimento, assim impedindo que desapareçam. Enquanto escritores escreverem sobre eles, eles não desaparecerão. Viverão num território literário geográfico, na cabeça de nossos leitores – Sasa
ESCREVER EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
Um outro ponto destacável surgiu perto do fim. Joca partiu do fato de que ambos eram imigrantes, e tinham uma maneira bem própria de escrever no país onde viviam. Sasa não escrevia em bósnio, somente em alemão, e Diego, mesmo após mais de vinte anos morando na França, escrevia em espanhol. Era sem dúvida um tema interessante e me recostei na cadeira para melhor ouvir o que diriam, mas sem tirar a caneta do alcance do caderno.
Não consegui escrever na minha língua materna. Não consegui escrever a história da guerra na língua da guerra. Escrevo em alemão porque como escritor é necessário se sentir seguro na língua que escrevemos, conseguir brincar com a linguagem, e sinto isso no alemão, mas não no bósnio. Apesar de falar bem, não consigo contar uma história em bósnio. – Sasa
A língua escolhe a gente, não a gente a língua. Tem que ser a língua que nos sentimos mais à vontade. Eu poderia escrever em francês, mas não me sentiria tão protegido como no espanhol. Curioso que falo francês todo dia, o espanhol virou quase uma língua estrangeira para mim, uma língua secreta, que utilizo para escrever. É uma língua ligada à minha infância e adolescência, usá-la é como voltar à Argentina. – Diego
AS PERGUNTAS JAMAIS RESPONDIDAS
Uma das primeiras coisas que reparei antes de sentar foi que havia uma tirinha retangular de papel sobre cada uma das cadeiras. Nela tão somente linhas vazias. Claro, era o espaço para o público fazer suas perguntas. Lembrei dos anos anteriores, quando assistia de casa, o curador dizer "...já podem fazer suas perguntas nesses papeizinhos que nós vamos recolher...", e logo Paulo Werneck disse quase as mesmas palavras ali há poucos metros de mim.
As moças de vermelho, da produção, coletavam os papeizinhos do público e os encaminhavam ao local onde estava Werneck, sem sequer lê-los. Junto ao curador, estava um outro sujeito, de barba e óculos, que parecia assessorá-lo. Ele recebia as perguntas, as lia e assim parecia aprová-las ou não, colocando logo em seguida ao alcance de Werneck. Entendi, como já imaginava, que havia um controle, ainda que mínimo, sobre o que seria perguntado. Fiquei imaginando, porém, que haveria pouco tempo para o bloco de perguntas. As mesas tinham duração média de 1h10, as perguntas do público, nesta, foram abertas faltando uns 20min para o final, de modo que seria muito improvável conseguirem fazer mais do que duas ou três perguntas, a maioria ficaria mesmo sem resposta. E o público "virtual" teria alguma prioridade ante o público "real"? Fiquei pensando em tudo isso, enquanto observava o papelzinho, o andar do relógio e o andamento da mesa. Não quis entrar na pequena loteria que seria tentar fazer uma pergunta, preferi guardar meu papelzinho como recordação do momento.
OBSERVAÇÕES PARALELAS (III)
Com mais ou menos uma hora passada, algumas pessoas começavam a deixar a tenda. Achei curioso, gastar tanto no ingresso, ficar na fila e sair tão perto do fim. Teriam tido algum problema? Ou o tema já não as interessava? Claro, a maioria se mantinha inerte em suas cadeiras, os fones firmes nas cabeças.
Notei ainda que havia ali uma postura de mesa totalmente diferente do que vi na mesa Zé Kleber, um caráter mais sério, comportado. Todos vestidos socialmente, davam uma cara diferente ao evento, o que foi uma excelente constatação, como se a Flip se reinventa-se a cada mesa, assumindo a cara, a identidade dos palestrantes. Cada debate era mesmo único, próprio. Pode parecer uma constatação óbvia, mas sentir essa energia ali de perto é algo surreal.
ESCREVER FORA DE SEU PAÍS
O momento final da mesa veio quando ambos os escritores foram questionados da origem das ideias de narrar suas histórias em lugares diferentes de onde habitam, principalmente no caso de Diego, uma vez que cada conto do livro Micróbios se passa num país diferente:
Escrever não vivendo no lugar dá uma certa descentralização. A imaginação precisa estar descentralizada, perder-se. Assim, faço um livro em espanhol diferente de como o teria feito se estivesse na Argentina. – Diego
Acho que nem a literatura nem qualquer outra arte deve ter esses limites, de ter de escrever só sobre local onde vive, onde está, que conhece. Se fosse assim não teríamos Nabokov, Mann ou Conrad, todos eles contrariaram isso. Escritores precisam enriquecer seu mundo geográfico com o mundo dos outros, precisam viajar. Mesmo quem não for escritor, um dia pode querer contar uma história de vida; pois escrevam, isso enriquecerá a todos nós. – Sasa
ENCERRAM-SE OS MICRÓBIOS E SOLDADOS
Joca Reiners Teron fez a mediação com grande propriedade, participando, prendendo a atenção do público, explorando os temas, e ficando surpreso ao ver que os dois, ao contrário do que se parecia no início, tinham muito mais em comum do que se pensava. Joca contou ainda um conto de Diego sobre vampiros, fazendo todos rirem ao narrar com intensidade o curioso andamento dos personagens.
E assim esse fantástico debate chegou ao fim. Nossa, eu estava muito extasiado. A mente, impactada, depois de ser fustigada por tantas percepções, por tantos micróbios, por tantos soldados. Tinha sido pouco mais de uma hora, mas parecia muito mais, parecia que tinha passado um dia ali, e ao mesmo tempo pareceu também muito curto, quase um sopro. A vida tem esse poder, transforma o pouco em muito e o muito em pouco à todo momento, basta saber enxergar. Me sentia sobretudo realizado, inundado, transbordado.
Uma generosa salva de palmas irrompeu da plateia, e logo todos começaram a se levantar. Os telões se desativaram. Pensei que aquele seria o momento de, se estivesse em casa, parar a gravação do vídeo. Ficava sempre imaginando nesses momentos, como estaria a movimentação na tenda, como era essa dispersão, e quando pisquei o olho, vi que de fato estava ali. Sorri, enquanto olhava em volta e finalmente saquei o celular e registrei algumas imagens só mesmo para marcar aquele instante.
APÓS A MESA, OS AUTÓGRAFOS
Terminada a mesa, segui o fluxo de saída e logo estava no exterior da tenda. Passava um pouco das 16h, uma bela tarde de quinta-feira, e ao sair encontrei Diego, meu irmão, no espaço do telão. Ele acabou ficando por ali mesmo, de onde assistiu boa parte do debate. Reparamos então uma intensa movimentação que parecia migrar para a área do café, e percebi que boa parte era do público desta mesa. Curiosos, seguimos aquele fluxo repentino.
Não era necessariamente o café, mas a tenda atrás dele, o foco de toda aquela concentração. Desde nosso primeiro passeio de reconhecimento, no dia anterior, tínhamos visto uma ala anexa à tenda da livraria, onde havia algumas exposições e um grande balcão de madeira, na frente do qual estavam dispostos vários organizadores de fila, e percebemos que ali provavelmente seria um espaço destinado a autógrafos. Eu bem me lembrava que após as mesas era comum os autores irem para algum lugar para autografarem. E esse lugar era mesmo ali, onde todos, inclusive nós, agora estavam.
Dezenas e dezenas de pessoas se aglomeravam, comprimidas, boa parte com os livros dos autores nas mãos. Sasa já estava lá, sentado ao longo do balcão, recebendo a todos educadamente. Diego viria logo, como indicava uma garrafinha d'água ao lado do bósnio. Vários seguranças e receptivos espalhados no vão entre o balcão e a fila, para conter alguma eventual desordem. Aquela cena seria uma constante após praticamente todas as mesas da tenda dos autores. Muitas vezes, ainda, como aconteceu na mesa de Arnaldo Antunes, vimos esta fila começar a se formar ainda faltando meia hora para o final da mesa. Seria engraçado, ficar ali, ser o primeiro da fila de autógrafos, mas sem ter sequer assistido a mesa em questão...
Não fazíamos questão dos autógrafos, mas muito me interessava aquela ebulição, aquele fervor de pessoas, seus trejeitos, suas expressões, suas diferenças. Novamente, fiquei pensando em suas histórias, de onde cada uma teria vindo, suas motivações, o que tinham achado da mesa, se já conheciam os autores, se os tinham descoberto agora, como nós, ou mesmo se estavam ali apenas por estar. E após um debate de tão arrebatadora grandeza, minha percepção parecia mais aguçada, mais precisa. Observei que diziam coisas aos autores, que lhes sorriam, tiravam fotos, viviam, celebravam.
Nunca consegui gostar muito disso de "sessão de autógrafos", de chegar assim de repente na cara do autor e lhe pedir seu nome no livro, ou uma foto ou sei lá mais o quê. Não sei explicar, mas isso me parece meio superficial, sem muito sentido, comum. Gostaria bem mais de uma conversa informal, mesmo que de momento, mas que realmente marcasse, que realmente me fizesse perceber que tive um contato com ele, que houvesse uma troca bem maior do que apenas deixá-lo assinar o livro, de maneira morna. Ainda assim, gostava de ver aquele tumulto controlado, por perceber a força que a literatura, de uma maneira ou de outra, consegue exercer. Era também um ótimo celeiro de ideias.
Passamos uns minutos ainda por ali e logo saímos. A próxima mesa na tenda dos autores começaria dentro de instantes, mas não a veria, nem mesmo no telão. Queria ter um momento de reflexão, de pensar no que ouvi e vi, e de comentar tudo com meu irmão. Era preciso momentos assim, eu bem sabia. Voltaríamos, contudo, para as mesas da noite. Falarei de algumas delas e de outras tantas na próxima postagem.
Me senti realizado, inundado, transbordado, lá naquele dia, e mais agora, ao revisitar o tema para completar o que já tinha escrito. Esta mesa foi uma grata descoberta, que sem dúvida marcou bastante minha primeira vez na Flip. Incrível conhecer um pouco da vida e obra destes autores tão singulares... a relação de Diego Vecchio com seu idioma, a questão dos micróbios, a inspiração para escrever... a descoberta dos antepassados de Sasa, seu apreço em querer preservar memórias, suas vivências da guerra... tudo contagia, incentiva, alimenta. E foi justamente buscando marcar esta memória em mim, que resolvi escrever este post, bem como toda esta série sobre a Flip.
O áudio na íntegra da mesa de Micróbios e Soldados pode ser ouvido neste link.
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