Fotos capa: montagem de imagens via Google
Outras fotos e vídeo: Denis Akel
"Ontem, meu sétimo dia de Bienal do Livro. O destaque não esteve exatamente nas mesas ou programação, mas em um centro de eventos bem mais vazio do que tenho visto ultimamente. Isso se deve, bem possível, à caótica situação que se instalou na cidade nos últimos dias, ônibus queimados, tensão, medo. Tudo agora é risco. Mesmo ler, ir à Bienal, é perigoso. Ainda assim, a literatura é teimosa, resiste.Assisti a uma das mesas da tarde, intitulada "os deslimites da poesia em um mundo prosaico", um debate muito necessário quanto à questão do valor da poesia no mundo de hoje. Uma palestra que transbordou sensações, com menções a Manuel de Barros, Drummond e incontáveis outros poetas.Dava gosto estar ali, ouvir aquelas colocações tão precisas, desvelando um mundo poético dentro do mundo mundano. O trio no palco, Talles Azigon, Jorge Pieiro e Ricardo Aleixo passaram quase duas horas enaltecendo o prazer do dizer poético, do quanto se tem medo de se "viver poeticamente". A educação não é poética, ela despoetiza nosso olhar, disse Talles. Já Aleixo completou: "A poesia sempre habita o pouco, ela não precisa de mais do que o pouco. O mundo não é hostil a ela, só é indiferente". Leram poemas, contaram histórias, expuseram polêmicas. Fluiu bem demais, cada pequena fala dava margem a nova posição do outro, num jogo lúdico de ideias que brincava com a mãe poesia.Excelente mediação de Jorge Pieiro, que impôs um ritmo agradável e crescente, pulso de quem conduz barcos assim há tempos, alimentando o interesse dos poucos que ali assistiam. É verdade, havia bem poucas pessoas nessa bela mesa. Não sei se a culpa é do caos da cidade, dos ônibus queimados ou somente com a indiferença à poesia...De lá, não me demorei muito no evento. Dei uma rápida passada pelo café literário, onde acontecia conversa do querido Ricardo Kelmer com Lira Neto. O espaço reduzido e informal não coportava muitos. Ouvi uma ou outra palavra, risada, e saí. Iria embora mais cedo. Antes de sair, passo por acaso num estande e encontro um livro de poemas da Adélia Prado, da qual tenho visto muita coisas esses dias mas ainda nada tinha. Parecia um sinal mais do que claro da boa vibração vinda da palestra do prosaico. Agarrei-a de imediato. E vamos lá que já já tem mais Bienal!"Escrito e publicado originalmente no Facebook em 20/04/2017
Neste dia, uma quinta-feira, véspera do feriado de Tiradentes, inúmeras programações me atraíam à Bienal, já estava decidido a seguir a peregrinação diária ao Centro de Eventos, filtrar ao máximo o que pudesse. Como fazia, marcava tudo no folheto, tentando criar uma agenda, ou guia, mesmo sabendo que dificilmente conseguiria ir a todas. Haveria mais Lira Neto, Ricardo Kelmer e algumas novidades, como Conceição Evaristo, que ansiava conhecer mais.
Pelo já crescente desgaste acumulado dos dias anteriores, acabei me permitindo chegar apenas no meio da tarde, pouco depois das 15h. O carro dessa vez me deixou no estacionamento interno do prédio. Gigantesco, difícil era achar o acesso correto à ala correspondente aos mezaninos usados pelo evento. Não havia sinalização, mal havia alguém a dar informação. Silêncio quebrado apenas nas luzes que davam um tom surreal àquele lugar, como um cenário futurista d'algum filme de ficção científica. Bem poderia ser uma pista de corrida, uma prisão, qualquer coisa assim, levei esses devaneios enquanto subia a escada rolante, finalmente localizada. Não olhei muita coisa da feira ou dos pavilhões, não agora. Algo que as bienais anteriores e talvez certo amadurecimento tenham ensinado: não queria acumular livros, o foco dessa vez era outro.
Segui direto ao mezanino 2, sala 1, a mesma sala de boa parte das palestras dos dias anteriores. O local tão velho conhecido que rever aquelas cadeiras esverdeadas era quase como voltar para casa. Começaria dentro de instantes a palestra que traria Talles Azigon e Ricardo Aleixo para falarem do tema deslimites da poesia no mundo prosaico, com mediação do professor e escritor Jorge Pieiro. Ainda praticamente desconhecia o trio, o que configurava momento mais do que propício para esse reconhecimento, além do tema já ser instigante por si só.
Estando com relativa antecedência no auditório, pude escolher lugar com toda a tranquilidade, ficando entre finalizar algumas anotações no caderno e fazer novos cartões de divulgação de meus blogs, à época feitos parcialmente à mão. Por ali já algumas pessoas, embora o público aqui permanecesse pouco até o final. E logo chegaram os convidados, tomaram seus lugares ao palco, seguiram proclames e foi aberta a discussão.
MESA (16h): DESLIMITES DA POESIA NO MUNDO PROSAICO – Ricardo Aleixo, Talles Azigon – Mediação: Jorge Pieiro
Jorge Pieiro é o mediador. Abre a mesa dizendo que escreve todo dia, logo quando acorda, um pensamento para aquele dia.
"O que é prosaico? O que é poesia?", Jorge busca explicar definições, levantando caminhos para percorrer nos próximos minutos.
"Poesia nao é para entender, mas para incorporar. Parede é para entender, é preciso ser uma árvore" – Jorge cita Manoel de Barros.
"Tenho mania de deixar tudo pela metade" – Talles Azigon, antes de começar a ler texto seu, sobre um eventual crime mais organizado.
"O poeta é um escondedor, esconde muitas coisas dentro das palavras. É difícil ser poético nesse cotidiano onde a vida cotidiana não é nada poética mas o poeta segue na sua arte, na tentativa libertadora. Se se consegue ou não, não cabe ao poeta mas a quem o lê." – Talles
Desta vez não vi Lira Neto, um dos coordenadores da bienal, no público (ele era uma presença onipresente) mas vi a professora Cleudene Aragão.
A sala contou com pouco público, mas mais uma vez reforço o lado positivo, sendo possível penetrar mais na conversa, concentrar-se mais sem tantas distrações quando se tem muita gente.
Ricardo Aleixo tinha um timbre de voz muito peculiar, com boas pausas. Parecia escolher bem as palavras antes de dizê-las:
"Poesia não é afastamento do mundo, não se pode pensar em poesia como meta para o mundo, mas em um caminho" – Ricardo Aleixo
"Disposição para algo que não se sabe bem o que é. O poético é sempre algo que escapa de uma definição rígida. Por isso, desde sempre a poesia é vista com desconfiança, quando comparada à filosofia" – Aleixo.
"Pessoas que não costumam ler poesia, ao lerem, não falam de ganho, mas de perda, de algo que lhes é tirado. É como a paixão, de tirar o chão, roubar raízes." – Aleixo
"Um poema só será bom se conseguir estranhar as palavras do dia a dia" – Aleixo
"Só se pode aproximar da poesia, tornando-se poeta, conhecendo algo que já está em você" – Aleixo
Aleixo cita frequentemente a linguagem de sinais que é feita ao vivo na hora, o que chama de corpografia e compara sua utilização um pouco a como se manifesta a poesia, ressaltando a importância de sentir a palavra:
"Precisa-se dizer poema de forma lenta para melhor apreciá-lo" – Aleixo
O mediador aproveitou para comentar:
"Não olhar pras coisas e ver exatamente o que são, mas procurar ver o invisível. É preciso que as pessoas transformem esse invisível em palavras. As metáforas, assim, passarão a ser normalidade" – Jorge
"Imaginar precisa ser primeiro exercício. Mas parece que nos retraímos, temos medo de agir dessa forma, de pensar outro lado para a mesma moeda." – Jorge
Um trechinho da conversa em vídeo:
Um trechinho da conversa em vídeo:
Talles falou bastante de Manoel de Barros, de suas imagens e símbolos, do mudar o sentido das coisas.
"O poeta precisa encontrar o coração onde não há, como num copo de plástico que é tão problemático. Mas o problema estará no copo ou em nós que o criamos?" – Talles
"O humano só se pode se definir como 'o sendo', nunca 'o é'" – Aleixo
É citado o poema de João Cabral, A Educação pela Pedra
"A educação precisa ser pela pedra, pelo poético, mas não é. Ela "despoetisa" nosso olhar. Quanto mais ponto da escola, mais longe da poesia." - Talles
Fiquei um tempo refletindo essa colocação de Talles, o quanto somos "despoetisados", durante a época escolar, o quanto a luta pela nota, pela aprovação, desvia do simples, do pequeno, o ínfimo do cotidiano. Deixamos passar as frestas da poesia, engessados pelo dever, a obrigação da média. Não há muito espaço para "errar", ou mesmo ver por outra óptica as coisas do mundo. E nesse processo, vai-se muito do pensar poético. É uma realidade cruel.
"Poeta é o que está mais envolvido na vida, ele tem sim capacidade para ir além, o que muitas vezes ninguém acredita.", diz Jorge, que comenta já ter sido bancário e engenheiro.
"Sabe o que acontece comigo quando leio bula de remédio? Começo a adoecer" – Jorge
Ele leu Mulher ao Volante, texto seu. Leitura precisa, pausas, entonação, timbre, prendeu atenção.
"Estamos tão presos ao politicamente correto que não podemos falar mais nada com medo que alguém interfira" – Jorge
Aleixo fala de um de seus poemas, explica que é um poema muito pensado, muito trabalhado, como costuma fazer em seu processo.
"Se definir como um escritor negro é um automatismo verbal. Sou escritor e sou negro. Escritor negro não" – Aleixo
Aleixo falou também do conto Festa, de Wander Piroli (leia aqui).
"O modo como ele se refere ao personagem, 'O Preto' me causa desconforto. O escritor humaniza o preto, é da esfera da obra de arte causar desconforto" - Aleixo
Quanto à questão da publicação, e a posição do poeta no processo:
"É muito natural que o poeta seja seu próprio editor, pois talvez seja o único artista da palavra capaz de atuar à frente de todas as etapas de sua obra." – Aleixo
"O poeta é o designer da linguagem", Aleixo, citando alguém que não me recordo.
"Sempre habito o pouco. A poesia não precisa de mais do que o pouco. O mundo não é hostil à poesia, só é indiferente". – Aleixo
A professora Cleudene Aragão, uma das coordenadoras da bienal, agora entre o público, citou o escritor uruguaio Eduardo Galeano como mestre da prosa poética:
"Nosso mundo é propício e ao mesmo tempo superficial à poesia" - Cleudene
Talles retoma seus temas e fala um pouco de seus trabalhos, com micro poemas:
"Estou terminando o curso de letras eternamente, mas já dou aulas de literatura." – Talles
"Poema precisa de tempo. Tempo para ser escrito e tempo para ser lido. A capacidade de não entender os poemas é simplesmente por não termos tempo. Inventamos coisas como celular, redes sociais, para chegarmos rápido e acabamos não chegando, pois na verdade nunca saímos." – Talles
Ele lê seu poema Curió, de tijolos, vigas, telhas...
Jorge Pieiro resolve também ler algo, um poema de sua autoria, e com velocidade pelo avançar da hora, pede desculpa a Tyson, o intérprete de libras. "Será que conseguirá me acompanhar?"
Fiquei me perguntando onde foi parar a história da leitura lenta? De sentir cada palavra? A hora vinha nos cobrar urgência. A hora agia quase como a escola, despoetisava. Eram agora 17:44.
"É preciso organizar a recepção da obra de arte" – Aleixo cita o poeta russo Maiakovski, muito criterioso neste sentido.
"Grafitei poemas visuais nos muros das escolas lá em BH. Precisamos estar mais disponíveis a tudo. Um garoto veio me falar, disse que me viu na TV: "Ah, você é poeta, né?" – Aleixo
Sob aplausos do pouco mas concentrado público, encerrou-se a mesa. Acabei não falando com o trio, deixei passar, senti que haveria outros momentos. Fiquei bastante chacoalhado com toda aquela efervescência, as colocações, referências. Abriam-se diante de mim portas que ainda sequer sabia a existência. Começava a enxergar melhor quinas e esquinas, como se o teor inteiro da palestra realçasse minha visão. E era bem assim que costumava sair, após a maioria das falas e palestras dessa bienal. Talvez pela imersão à qual me propunha, fosse tão intenso o retorno.
Já além das 18h quando, descendo de volta aos pavilhões centrais, decidi comer qualquer coisa. Num dos quiosques de alimentação, um pai e filho também lanchavam, e tinham conversa bem curiosa, o pai: "Nós já estamos jantados". "Quem inventou a carne de sol?" – pergunta o menino. O pai de pronto: "Alguém que percebeu que não tinha".
Dali segui direto para o espaço do Café Literário, onde acontecia parte das programações e eventos da Bienal. O espaço não era muito grande, as poucas mesas lotavam rapidamente, sendo difícil acompanhar muita coisa para quem chegava após o início, o que acabou sendo o meu caso. Marcada para as 18h, estava em curso um diálogo intitulado Profissionalismo literário, com Lira Neto e Ricardo Kelmer.
Fiquei por lá pela brevidade de alguns minutos. Lira falava de modo envolvente, sobre sua vida, trabalhos, processos que o levariam à literatura e ao jornalismo.
"Passei um tempo sem fazer nada, ou talvez aliás estivesse fazendo tudo. Fritei hambúrguer na rua, fui vendedor de loja, fiz artesanatos e nessa fui tentar ser professor" – Lira Neto
Diz que conseguiu vaga de revisor, e percebeu que queria ser jornalista. Passou em 1º lugar na UFC.
"Passei um bom tempo como editor de cultura do Vida e Arte" - Lira
Já Kelmer, muito à vontade em sua poltrona, comenta também de seu início na vida artística, influências, leituras, caminhos:
"Decidi aos 10 anos que queria escrever" – Kelmer
Não demorei ali mais do que dez ou quinze minutos. Me despedi bem mais cedo do agito da bienal, a cidade ainda respirava o caos dos ônibus queimados, muitos tendo sido incediados neste dia. Ainda tinha várias outras coisas que gostaria de ver mas abri mão, o que não foi de todo ruim, precisava descansar um pouco de toda essa maratona. Revi alguns amigos no entorno do Café (haveria um lançamento da Fernanda Meireles) e saí de lá no início da noite, antes, porém, uma passado de acaso num estande e encontro este livro de Adélia Prado, poetíssima que há muito conhecia mas ainda nunca tinha lido de fato. Um fim de dia que já prenunciava bons ventos!
Continua no dia 8, com Braúlio Tavares, Stelio Torquato, Fanka Santos, Ignácio de Loyola Brandão e muito mais. Falta pouco para fechar, sigamos!
Maravilhoso poder ter uma memória tao bem detalhada. Gratidão
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