Fotos postagem: Denis Akel
Dando continuidade à série de minhas vivências e sensações da Bienal Internacional do Livro do Ceará 2017, segue a terceira postagem, referente ao domingo, dia 16 de abril. Primeiramente, trago o que escrevi sobre aquele dia, logo após chegar em casa, e sobre o qual o post de agora irá expandir:
"Terceiro dia de Bienal do Livro. Estive na belíssima mesa que reuniu o querido amigo Marcelino Freire e Valter Hugo Mãe. Um encontro que celebrou, sobretudo, a amizade. Momento sublime, de riso fácil, de histórias e memórias. Eram quase dois meninos, ali no palco, contando traquinagens, mas repletos de generosidade.
Grande satisfação rever Marcelino, este guerreiro das palavras, eterno teimoso. E enfim conhecer pessoalmente, ainda que num sopro, Valter Hugo Mãe, escritor de sentimentos, de alma, que abraçou a todos com um carinho que faz jus a seu nome: Mãe.
Excelente a mediação de Socorro Acioli; encontrou uma harmonia tão singela entre os dois autores, transformando uma simples mesa numa conversa de velhos amigos, valorizando o encontro, o ontem, o hoje, o tempo. Eles estavam se divertindo como nunca, investigando passados, desdobrando futuros. Celebrando, igualmente, a vida.
Em breve, no blog, post completo sobre o encontro. E vamos nessa que logo tem mais Bienal."
Escrito e publicado originalmente no Facebook em 16/04/2017
"Minha mãe era uma tragicômica. Se ela cantava, eu sabia que ela estava bem. Quando escrevo, meus contos compactuam com a fala de minha mãe. Uma frase de minha mãe que nunca usei mas é puro teatro: 'amanhã não amanheço viva!'" – Marcelino
"Meus textos nascem de um improviso. Eles vêm de um primeiro mote, de uma frasezinha que vou descosturando" – Marcelino
Aproveitando essa deixa, o escritor falou um pouco de um de seus contos mais conhecidos, Da paz, que nasceu exatamente desse seu processo do improviso, da articulação a partir de um fragmento:
"Começou com uma frase simples, 'eu sou da paz', mas essa ideia me incomodava, preferia pensar: 'eu não sou da paz', e a partir daqui vou construindo a coisa, tentando descobrir o que essa voz quer dizer. É um improviso, que decoro pelo exercício musical e repetido que faço." – Marcelino, que 'leu' alguns trechos do conto.
Era verdadeiramente impressionante sua capacidade de declamar seus textos de cor, de um fôlego só, com vibração característica, um timbre recheado de presença, enchendo o salão, chamando a todos para viverem com ele a experiência do texto, da palavra. Marcelino, que também tem forte verve teatral, nessas horas se transformava. Valter, a seu lado, parecia um dos mais impressionados com o fato, quando comentou, em tom brincalhão:
"Acho incrível como você consegue decorar seus textos, eu mal sei os títulos dos meus livros!"
Reforçando o fato de sua literatura se ancorar muito na família e no que ouvia, Marcelino citou sua tia Totonha, que não sabia ler, mas mais do que isso, ela simplesmente não queria aprender, e de como isso o inspirou a escrever o conto Totonha. A maneira como ele contava, imitando a voz da tia, aumentando a tensão das frases, criava de imediato a atmosfera perfeita, quase como se ouvíssemos não ele, mas sua tia.
Apesar da sala estar cheia, algo que me incomodou um pouco durante a mesa não foi exatamente a infinidade de pessoas mas a iluminação ambiente. Fiquei um tempo a olhar o teto, buscando descansar um pouco do excesso de detalhes lá debaixo, e só assim me dei conta de todas aquelas luzes, brancas, impiedosamente acessas, irradiando sua inevitável brancura. Essa percepção me deu uma estranheza, tudo pareceu claro demais, nítido demais. Talvez se algumas fossem apagadas, criaria-se um clima mais ameno, menos austero. Do jeito que estava parecia quase uma sala de aula, uma universidade ou algo assim. Era uma constatação que se reforçava a cada uma das mesas que vi nos dias seguintes, salvo umas poucas onde, não sei por que, optaram por reduzir as luzes mais próximas ao palco. Não sei qual o critério usado, mas o exagero de luzes certamente deixava o auditório muito artificial.
Falando sobre o tema mãe, Valter diz que a mulher é mais preocupada com a vida, tem sempre um sentido, uma necessidade de sobreviver: "O discurso das mulheres é muito mais literatura, bem mais que os homens. Os homens só são assim quando decidem e acham que em poucos minutos podem, por exemplo, mudar a vida dos filhos. Essa diferença marcou muito a minha vida. Tenho relação muito forte pela minha mãe. A minha mãe é a minha filha, é uma sorte para mim cuidar dela. Toda a vida dela ela fez isso por mim." – Valter
A essa altura o debate já havia rendido muito, crescido, enveredado por caminhos próprios, de modo que as palavras da lista de Socorro ou não me chegaram ou não foram mais relevantes, o jogo já havia conduzido a um enfrentamento de ideias, que vivia independente, trazendo a cada novo comentário um leque de ampliações.
"Qual palavra para vocês simboliza o amor?" – pergunta final de Socorro, lembro da palavra 'amor' ainda pertencer à sua lista.
"Como me vingo de um amor que não deu certo? Fazendo um poema. Me vingo escrevendo amores possíveis." – Marcelino
Marcelino encerrou focando novamente em sua tia Totonha, entrando agora em discussão do que chamou de ditadura do saber:"É possível ter relevância se não se sabe ler ou escrever?" E declamou o conto inteiro, prendendo o público com sua narrativa ágil e precisa, literalmente uma pancada.
Para ajudar a ilustrar esse momento, recorro a este vídeo, que data de 2007, mas apesar de antigo, ainda retrata bem o que quis dizer, o impacto do texto lido pela pulsão do próprio autor:
Entre risos e sorrisos, foi enormemente aplaudido, bem como Valter, que encerrou agradecendo o carinho de todos. Socorro Acioli também agradeceu, aos dois ao seu lado e também ao mar de pessoas à sua frente. O público começou a se deslocar, meio desordenado, para autógrafos, o momento talvez mais esperado, celebrado. Acompanhei o alvoroço, enquanto a maioria apenas saía da sala e outras tantas formavam a emblemática filinha no corredor, os livros na mão, prontos a serem assinados.
O maior destaque, mais uma vez acabaria ficando para Valter, que praticamente sumiu no meio da multidão, à medida que esta o cercava. Alguns seguranças estavam por perto, olhando cada um com desconfiança, como se o livro pudesse de alguma forma ser uma arma disfarçada. Valter recebia as pessoas lá mesmo do conforto de sua poltrona. Marcelino preferiu ficar de pé, e ali mesmo conversou e autografou para várias pessoas que o abordaram, além, é claro, de posar para incontáveis fotos, requisito obrigatório. Era uma energia boa, estar ali, acompanhar tudo aquilo, todo aquele interesse literário.
Aproveitei umas brechas entre esses momentos para conseguir conversar com ele, relembrar momentos da oficina literária e apresentar minha mãe. Parecia quase que o tempo não tinha passado, de fevereiro para abril foi bem pouco tempo mesmo, era quase como se estivéssemos ainda no intervalo da Toca Literária, prestes a voltar para mais. E era uma pena que Marcelino não poderia ficar muito tempo; iria embora já no dia seguinte, mal podendo respirar direito dos ares cearenses. Ele teria sido fantástico numa das programações do evento paralelo Bienal fora da Bienal, do qual falo a partir da próxima postagem.
Já Valter, sobravam flashes e poses em cima do escritor português, quase como se fosse uma espécie de outro mundo. Todos queriam alguns minutos com ele. Com o tempo, observei que passou a receber pessoas com um afeto que lhes permitia sentirem-se bem ao seu lado. Lembrava um pouco o Natal e a figura do Papai Noel, todos esperando para sentar ao lado de Valter Hugo Mãe. Mais do que isso, após um revezamento entre o público, foi a vez do pessoal da produção, os receptivos, se achegarem para abraços, autógrafos e um minutinho da atenção do ícone da literatura portuguesa. As cenas seguintes foram o que talvez se poderia esperar, mas talvez até um pouco além, exageradamente calorosas, gente chorando, abraçadas a Valter, que agora parecia quase que santificado. Uma despedida? Agradecimento? Milagre? Fiquei pensando comigo mesmo, buscando entender a causa de tanta comoção.
Como todas as vezes que o vi nessa Bienal, Valter foi de uma dignidade soberana, cumprimentando a todos, dedicando o máximo de sua atenção no retorno a seu público. Durante cada pessoa que recebia, ou mesmo de presentes que esta lhe trazia, seu olhar era todo daquela pessoa, como se quisesse entendê-la o melhor possível, captar sua essência. A coisa do sentar ao lado dele devia ser para que ficassem à mesma altura visual, favorecendo essa troca cósmica que acontecia silenciosamente no olho do furacão.
Haveria, logo após essa mesa, às 18h, uma outra com Marina Colasanti e Affonso Romano, mas optei por deixar passar, quis ficar aqui e acompanhar o desfecho, o ato final. E após mais alguns minutos e com a sala já bem mais esvaziada, pensei em cumprimentar Valter. Não tinha nenhum de seus livros à mão, aliás ainda não li nenhum deles, mas conheço um pouco de sua linha literária, de acompanhar entrevistas e falas em outros eventos. Seria um bom momento para agradecer aquela fala, e comentar um pouco disto. Na companhia de Marcelino, me lancei à sua poltrona.
Foi daqueles momentos de reconforto, dentro de aparente desconforto. É engraçado, pois essa cena, de ir falar cara a cara com algum escritor, não me era nada comum antes desse dia. Nas bienais anteriores daqui, 2014, 2012 e 2010 (as que passei a acompanhar e escrever sobre), sempre assistia, anotava, escrevia mas dificilmente ia falar com algum dos autores, talvez por insegurança, receio, não me sentia preparado. A Toca Literária que fiz com Marcelino me ajudou muito também nesse sentido, ter de falar, por mim e por meus textos, expor minhas ideias, ser o primeiro a acreditar em mim mesmo. O que começou ainda timidamente lá em Recife foi se propagando aqui, à medida que me senti mais seguro, apto a deixar transparecer um pouco de minhas ideias além do que costumava fazer apenas escrevendo. E quando percebi estava ali, conversando com Valter, falando da Flip 2011 (quando ouvi falar dele pela primeira vez), do contato com Marcelino, do ofício literário e até lhe convidei a ler meus blogs. Um momentinho rápido, quase ínfimo comparado à duração daquela tarde, mas que teve um valor muito significativo. Fiquei pensando depois como cada uma das pessoas que falou com ele antes de mim tiveram igualmente seus momentos, e saíram daquela sala também de alguma forma transformadas.
Este dia representou uma enorme guinada em relação à minha relação com a Bienal, e também comigo mesmo. Nesta mesa, tanto Marcelino como Valter falaram um pouco de suas vidas, de suas literaturas, língua portuguesa, Brasil e Portugal, mas falaram muito mais sobre amizade, uma mesa que foi pura alegria, do início ao fim, permeada por piadas, risadas, boas histórias, memórias. Socorro Acioli fez um excelente trabalho de mediação, com a utilização de suas palavras-tema, criando já de cara elos comuns entre eles, e eram tantos!
Agora, observando essas fotos, ao postá-las aqui, percebo mais calmamente todas essas realidades. Talvez já não tenha exatamente o gatilho de memória daquele dia, mas a sensação ainda é forte, ficou no ar, sensorial. É possível ver detalhes, expressões, sensações, que não se via lá na hora, e isso aflora até outras coisas, comparado a como me sinto hoje. Momentos eternizados, não só pelas fotos ou mesmo por este registro escrito, mas simplesmente por revisitar o passado mentalmente e prepará-lo nesta representação, quase como recriá-lo. É mais ou menos essa a natureza de boa parte de meus textos nesse blog. Recriar passados é revivê-los. E vamos embora que vem muito mais por aí, a partir deste dia essa Bienal, para mim, ficou conhecida como a Bienal da Amizade.
Continua no dia 4, com a visita de Valter Hugo Mãe à tribo dos índios Anassés na Bienal fora da Bienal.
Escrito e publicado originalmente no Facebook em 16/04/2017
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INTRODUÇÃO
Este foi um dia bastante peculiar e, talvez por isso, me arrisco a dizer, um dos melhores da bienal. Aqui, o evento mostraria a cara que tão bem marcaria essa edição. Deixei para ir apenas no horário da tarde, quis estar mais descansado para a mesa que para mim era uma das mais aguardadas, o encontro de Marcelino Freire com Valter Hugo Mãe. Não exatamente pelo escritor português, que já tinha visto no dia anterior, mas por Marcelino, ou melhor, pelos dois juntos.
Em fevereiro de 2017 tive a grande alegria de fazer uma das oficinas literárias que Marcelino ministra, as chamadas Tocas Literárias. Foi em Recife, durou três dias de puro encanto e renovação, e posso dizer que ter feito essa oficina me mudou imensamente, como escritor mas sobretudo como pessoa. Poderia falar bem mais sobre, mas ainda planejo um post futuro direcionado a ela aqui pelo blog.
Após esse contato com o escritor pernambucano, voltei a Fortaleza muito animado e disposto a criar ou produzir algum tipo de evento literário (ops, este é também assunto para um post futuro). O fato é que adorei quando soube que Marcelino seria um dos autores convidados da Bienal 2017, o que acho que até me ajudou a me empolgar mais com o evento, pois, como comentei nos dois posts anteriores desta série, o início da bienal foi bastante morno e repetitivo. Já pressentia que sua mesa traria algum diferencial, após a breve convivência que tivemos nos dias de oficina, onde pude conhecer mais de seu estilo latente, agora praticamente como professor.
O INÍCIO DO TERCEIRO DIA DE BIENAL
Intitulada Romances do pai, escritas da mãe, a mesa seria um dos destaques da tarde no Centro de Eventos, tanto que não me preocupei muito em marcar ou me interessar por outros, quis dedicar tudo a este. Neste dia, fui acompanhado de minha mãe e uma amiga nossa. Marcada para as 16h, saímos um pouco em cima da hora, por conta de imprevistos, atropelos e, por que não dizer, preguiça de domingo.
Enquanto parávamos o carro, já havia, inconscientemente, um clima literário no ar, que me chegou do lugar mais inusitado, ali mesmo no estacionamento: uma moto, ou melhor dizendo, a placa da tal moto, que trazia as letras "POE". Me senti quase como que recebido por Edgar Allan Poe, pelo menos simbolicamente.
Havia bastante movimento pelo pavilhão neste primeiro fim de semana do evento, mas procurei não me demorar em nada que me desviasse do foco; a sala da palestra, para onde seguimos tão logo chegamos. Já à expectativa de muita gente, como no dia anterior, me preparei para uma tremenda fila, e, após os dois lances de escadas rolantes, nos deparamos exatamente com isso: uma fila que cansava só de olhar, à medida que serpenteava as paredes do lugar, deixando claro duas coisas: esperaríamos muito e seria difícil achar lugar no auditório. A sala, como descobri depois, tinha mudado de lugar, sendo aquela já uma maior, visando abarcar a super fila que ali se estendia.
Até nos posicionarmos no fim desta monstruosidade, passamos pelo corredor, no qual vimos um burburinho em torno de uma mesinha posta ali. Lá estava Valter Hugo Mãe, no que parecia ser uma pré-sessão de autógrafos, recebendo pessoas e distribuindo sorrisos, além das assinaturas. Tomamos nosso lugar, enquanto mais e mais pessoas iam chegando. Felizmente não foi preciso esperar muito em pé, logo o acesso ao auditório foi liberado. A fila seguiu, num andar lento e moderado, encostada à parede, como uma estranha gincana escolar. Era interessante observar os perfis das pessoas, as faixas etárias, o que traziam às mãos, a aparente empolgação, o contraste dessa cena com a linda tarde de sol que os janelões laterais deixavam filtrar. Tudo isso ajudava a arrastar os minutos de desconforto até passar toda essa parte.
Logo atravessamos a entrada da sala, cumprimentando os receptivos. Tivemos já uma primeira dimensão da lotação e buscamos lugares. Como era de se esperar, boa parte das cadeiras mais à frente já estavam tomadas, além das obviamente reservadas. Andávamos pelo mar de gente, buscando lacunas, frestas, mas todo o espaço transbordava. Encontramos enfim alguns lugares perdidos numa fileira já em processo de ocupação. Nos acomodamos, restando esperar, enquanto a sala não parava de encher, para onde se olhasse via-se alguém, uma explosão de movimentos, cores, formas e detalhes, na figura do que cada um adicionava a esse caos, como uma grande salada de vida.
Já passando um pouquinho do horário previsto, o debate finalmente teve início, mas não sem antes as palavras iniciais de praxe de agradecimentos e patrocinadores. Quando o trio de participantes finalmente tomou seus lugares no centro do palco, uma sonora salva de palmas se faz ouvir. Saquei minha caderneta, o lugar inspirava.
INTRODUÇÃO
Este foi um dia bastante peculiar e, talvez por isso, me arrisco a dizer, um dos melhores da bienal. Aqui, o evento mostraria a cara que tão bem marcaria essa edição. Deixei para ir apenas no horário da tarde, quis estar mais descansado para a mesa que para mim era uma das mais aguardadas, o encontro de Marcelino Freire com Valter Hugo Mãe. Não exatamente pelo escritor português, que já tinha visto no dia anterior, mas por Marcelino, ou melhor, pelos dois juntos.
Em fevereiro de 2017 tive a grande alegria de fazer uma das oficinas literárias que Marcelino ministra, as chamadas Tocas Literárias. Foi em Recife, durou três dias de puro encanto e renovação, e posso dizer que ter feito essa oficina me mudou imensamente, como escritor mas sobretudo como pessoa. Poderia falar bem mais sobre, mas ainda planejo um post futuro direcionado a ela aqui pelo blog.
Após esse contato com o escritor pernambucano, voltei a Fortaleza muito animado e disposto a criar ou produzir algum tipo de evento literário (ops, este é também assunto para um post futuro). O fato é que adorei quando soube que Marcelino seria um dos autores convidados da Bienal 2017, o que acho que até me ajudou a me empolgar mais com o evento, pois, como comentei nos dois posts anteriores desta série, o início da bienal foi bastante morno e repetitivo. Já pressentia que sua mesa traria algum diferencial, após a breve convivência que tivemos nos dias de oficina, onde pude conhecer mais de seu estilo latente, agora praticamente como professor.
O INÍCIO DO TERCEIRO DIA DE BIENAL
Intitulada Romances do pai, escritas da mãe, a mesa seria um dos destaques da tarde no Centro de Eventos, tanto que não me preocupei muito em marcar ou me interessar por outros, quis dedicar tudo a este. Neste dia, fui acompanhado de minha mãe e uma amiga nossa. Marcada para as 16h, saímos um pouco em cima da hora, por conta de imprevistos, atropelos e, por que não dizer, preguiça de domingo.
Enquanto parávamos o carro, já havia, inconscientemente, um clima literário no ar, que me chegou do lugar mais inusitado, ali mesmo no estacionamento: uma moto, ou melhor dizendo, a placa da tal moto, que trazia as letras "POE". Me senti quase como que recebido por Edgar Allan Poe, pelo menos simbolicamente.
Havia bastante movimento pelo pavilhão neste primeiro fim de semana do evento, mas procurei não me demorar em nada que me desviasse do foco; a sala da palestra, para onde seguimos tão logo chegamos. Já à expectativa de muita gente, como no dia anterior, me preparei para uma tremenda fila, e, após os dois lances de escadas rolantes, nos deparamos exatamente com isso: uma fila que cansava só de olhar, à medida que serpenteava as paredes do lugar, deixando claro duas coisas: esperaríamos muito e seria difícil achar lugar no auditório. A sala, como descobri depois, tinha mudado de lugar, sendo aquela já uma maior, visando abarcar a super fila que ali se estendia.
Até nos posicionarmos no fim desta monstruosidade, passamos pelo corredor, no qual vimos um burburinho em torno de uma mesinha posta ali. Lá estava Valter Hugo Mãe, no que parecia ser uma pré-sessão de autógrafos, recebendo pessoas e distribuindo sorrisos, além das assinaturas. Tomamos nosso lugar, enquanto mais e mais pessoas iam chegando. Felizmente não foi preciso esperar muito em pé, logo o acesso ao auditório foi liberado. A fila seguiu, num andar lento e moderado, encostada à parede, como uma estranha gincana escolar. Era interessante observar os perfis das pessoas, as faixas etárias, o que traziam às mãos, a aparente empolgação, o contraste dessa cena com a linda tarde de sol que os janelões laterais deixavam filtrar. Tudo isso ajudava a arrastar os minutos de desconforto até passar toda essa parte.
Logo atravessamos a entrada da sala, cumprimentando os receptivos. Tivemos já uma primeira dimensão da lotação e buscamos lugares. Como era de se esperar, boa parte das cadeiras mais à frente já estavam tomadas, além das obviamente reservadas. Andávamos pelo mar de gente, buscando lacunas, frestas, mas todo o espaço transbordava. Encontramos enfim alguns lugares perdidos numa fileira já em processo de ocupação. Nos acomodamos, restando esperar, enquanto a sala não parava de encher, para onde se olhasse via-se alguém, uma explosão de movimentos, cores, formas e detalhes, na figura do que cada um adicionava a esse caos, como uma grande salada de vida.
Já passando um pouquinho do horário previsto, o debate finalmente teve início, mas não sem antes as palavras iniciais de praxe de agradecimentos e patrocinadores. Quando o trio de participantes finalmente tomou seus lugares no centro do palco, uma sonora salva de palmas se faz ouvir. Saquei minha caderneta, o lugar inspirava.
MESA (16h) - Romances do pai, escritas da mãe (Marcelino Freire / Valter Hugo Mãe) Mediação: Socorro Acioli
Socorro Acioli, escritora cearense, foi a responsável por mediar este encontro. Era visível o quanto estava emocionada, por detrás de seu sorriso de menina, quando iniciou uma breve apresentação de ambos os autores, que enquanto isso olhavam o público, sem direcionar a ninguém diretamente, mas procurando abraçar e se acostumar às centenas de pessoas que lhes devolviam o olhar, curiosas.
O tema da mesa fazia alusão aos maneios literários de cada autor, de suas relações com família e sobretudo viria a focar a grande amizade que há entre eles. Marcelino reforçou a alegria de estar ali, em Fortaleza, ao lado de Valter, que havia recentemente estado com ele no festival literário de Madeira, em Portugal.
O tema da mesa fazia alusão aos maneios literários de cada autor, de suas relações com família e sobretudo viria a focar a grande amizade que há entre eles. Marcelino reforçou a alegria de estar ali, em Fortaleza, ao lado de Valter, que havia recentemente estado com ele no festival literário de Madeira, em Portugal.
"O coração que se ganha é o que se dá em troca" – Socorro iniciou ditando este trecho de poema de Marcelino, para abordar justamente esta amizade. Reforçou também o quanto adora a escrita do escritor pernambucano.
Ela seguiu dizendo que tinha preparado um pequeno mapa de orientação para a mesa, composto de oito palavras, que de alguma forma se relacionam aos universos de Marcelino e Valter. Foi uma iniciativa diferente, incomum até, e bem interessante, por lançar de maneira prática e direta sub-temas que começaram a direcionar a conversa.
Ela seguiu dizendo que tinha preparado um pequeno mapa de orientação para a mesa, composto de oito palavras, que de alguma forma se relacionam aos universos de Marcelino e Valter. Foi uma iniciativa diferente, incomum até, e bem interessante, por lançar de maneira prática e direta sub-temas que começaram a direcionar a conversa.
A 1ª palavra lida, de uma folha que Socorro trazia à mão: encontro. "Como vocês se conheceram?"
Valter falou de como conheceu Marcelino, lembrando a 1ª viagem que fez, que foi para o Brasil, e de que o contato com o escritor pernambucano se deu pelo gosto em como com a poesia, tudo isso por volta dos anos 2000.
"Foi um grupo que começou a se encontrar na livraria da vila, em SP" – completou Marcelino, citando um grupo do antigo mensageiro ICQ, onde teve o primeiro contato com Valter.
Ambos relembraram histórias, vivências, de pessoas em comum, de fatos marcantes. Valter falou algo de uma mulher, que não lembro exatamente quem era, ou se apenas um sonho dele, mas esta frase de algum modo ficou em mim:
"Ela sorriu e a cabeça dela começou a tocar uma música" - Valter Hugo Mãe
Havia um clima descontraído entre os dois, com muito humor e amizade, notável de já existir mesmo há anos. Vi um Valter Hugo Mãe bem diferente do que vi no dia anterior, mais humano, mais risonho, talvez por estar dividindo o palco, pudesse se mostrar mais relaxado, um pouco mais, digamos, vulnerável.
Marcelino contou que, em seus primeiros contatos, estabeleceram trocas de conteúdos culturais, como livros, CDs, etc, entre culturas, Brasil via Portugal. "Valter depois me recebeu em sua casa 'sem esconder os talheres'". A expressão arrancou algumas risadas, o escritor quis dizer que já havia uma confiança entre ambos, que o recebeu com toda a naturalidade.
O foco mudou um pouco quando Socorro comentou a respeito dos gêneros literários praticados por eles. Marcelino é geralmente atribuído a contos e poemas, narrativas curtas, e Valter a romances. Marcelino disse que lançou há pouco tempo seu primeiro romance, Nossos Ossos, comentando um pouco da dificuldade de escrevê-lo, pelo ritmo imposto por um romance, livro este que inclusive teve a edição portuguesa prefaciada coincidentemente por Valter. Já o português diz que contos não costumam ter muito espaço entre os leitores portugueses.
Valter falou de como conheceu Marcelino, lembrando a 1ª viagem que fez, que foi para o Brasil, e de que o contato com o escritor pernambucano se deu pelo gosto em como com a poesia, tudo isso por volta dos anos 2000.
"Foi um grupo que começou a se encontrar na livraria da vila, em SP" – completou Marcelino, citando um grupo do antigo mensageiro ICQ, onde teve o primeiro contato com Valter.
Ambos relembraram histórias, vivências, de pessoas em comum, de fatos marcantes. Valter falou algo de uma mulher, que não lembro exatamente quem era, ou se apenas um sonho dele, mas esta frase de algum modo ficou em mim:
"Ela sorriu e a cabeça dela começou a tocar uma música" - Valter Hugo Mãe
Havia um clima descontraído entre os dois, com muito humor e amizade, notável de já existir mesmo há anos. Vi um Valter Hugo Mãe bem diferente do que vi no dia anterior, mais humano, mais risonho, talvez por estar dividindo o palco, pudesse se mostrar mais relaxado, um pouco mais, digamos, vulnerável.
Marcelino contou que, em seus primeiros contatos, estabeleceram trocas de conteúdos culturais, como livros, CDs, etc, entre culturas, Brasil via Portugal. "Valter depois me recebeu em sua casa 'sem esconder os talheres'". A expressão arrancou algumas risadas, o escritor quis dizer que já havia uma confiança entre ambos, que o recebeu com toda a naturalidade.
O foco mudou um pouco quando Socorro comentou a respeito dos gêneros literários praticados por eles. Marcelino é geralmente atribuído a contos e poemas, narrativas curtas, e Valter a romances. Marcelino disse que lançou há pouco tempo seu primeiro romance, Nossos Ossos, comentando um pouco da dificuldade de escrevê-lo, pelo ritmo imposto por um romance, livro este que inclusive teve a edição portuguesa prefaciada coincidentemente por Valter. Já o português diz que contos não costumam ter muito espaço entre os leitores portugueses.
A segunda palavra veio imediatamente na sequência, generosidade.
"Qual espaço da generosidade na vida de vocês? De pessoas que estão querendo escrever?"
"Não tenho sensação de ser generoso. Tenho vontade de ser muito mais. A vida tem sido muito generosa comigo, por isso tenho essa generosidade com todos". – Valter
"Minha generosidade é dividir o que não tem, vem da minha mãe. O pouco que tenho, partilho". – Marcelino Freire
"Realizo desde 2006 a "Balada Literária", em São Paulo, evento que reúne várias programações literárias, saraus, lançamentos em bares e livrarias da cidade. Acabo ganhando 'parceiros do crime' no evento e nos lugares por onde ando, para lutar contra a mediocridade dominante. Acho poucos eventos literários no país. Para cada show de Luan Santana, dez bienais. Temos que celebrar a palavra. Precisamos de reservatórios de dignidade". – Marcelino
"Qual espaço da generosidade na vida de vocês? De pessoas que estão querendo escrever?"
"Não tenho sensação de ser generoso. Tenho vontade de ser muito mais. A vida tem sido muito generosa comigo, por isso tenho essa generosidade com todos". – Valter
"Minha generosidade é dividir o que não tem, vem da minha mãe. O pouco que tenho, partilho". – Marcelino Freire
"Realizo desde 2006 a "Balada Literária", em São Paulo, evento que reúne várias programações literárias, saraus, lançamentos em bares e livrarias da cidade. Acabo ganhando 'parceiros do crime' no evento e nos lugares por onde ando, para lutar contra a mediocridade dominante. Acho poucos eventos literários no país. Para cada show de Luan Santana, dez bienais. Temos que celebrar a palavra. Precisamos de reservatórios de dignidade". – Marcelino
A próxima palavra do rol de Socorro, mote para dar sequência à conversa, veio praticamente atrelada às anteriores: amigos
Valter diz que há pessoas pelas quais sente conforto de estarem juntas dele, que passaram a acompanhá-lo e das quais ele celebra a companhia. Citou uma fã que costuma estar sempre presente em suas palestras, chamou seu nome e lá estava ela. Achei a situação no mínimo curiosa.
Ele falou ainda de contato que fez numa fila de autógrafos, de uma pessoa frágil, com ares suicidas, que acabou por tornar-se um grande amigo. "A maioria de meus leitores são desconhecidos meus, mas são fundamentais na minha vida" - Valter
Marcelino focou a questão de maneira prática: "quem vai ler meu livro?". Diz que família não lê e narra, de maneira lúdica, o ritmo de lançamento, onde há festa, comida e todos vão, mas ninguém de fato lê o livro.
"O escritor se revela mais é na mesa do bar" – Marcelino
"O escritor, na criação, não tem família, não tem parentes. Uso tudo, mas é tudo ficção. O que estiver na frente, é vida. Quem escreveu meus contos foi minha mãe" – Marcelino
Esta é uma ideia bem interessante, e até a reconheço um pouco da época em que fiz a oficina literária com ele. Marcelino sugere que não se deve ficar preso a nenhum tipo de preconceito quando se escreve. Não se deve ter vergonha de pôr isso, medo de pôr aquilo, achando que se entregará mais do que se deve entregar.
"Meus contos vêm do grito, da ladainha da minha mãe. Meu romance vem do silêncio do meu pai. Sou eu? Não. É tudo mentira. É tudo ficção". – Marcelino
"Tenho um primeiro leitor, um amigo meu, Mário, que sempre lê primeiro meus romances. É uma pessoa muito antipática mas estranharia se fosse amigo e gostasse do que escrevo" – Valter
Tanto nessa, como em inúmeras outras palestras que vi de Marcelino, a figura de sua mãe é muito, muito forte em suas palavras, como se ela fosse uma voz orientadora, que estivesse permanentemente nele, manifestando-se ora de mansinho, ora de atropelo. Uma senhora inspiração!
À medida que a conversa se estendia, notei que havia uma diferença impactante dos diálogos, enquanto Marcelino falava num grito, Valter era mais brando, mais calmo, mais silêncio. Esse curioso contraponto funcionou muito bem, criando dois extremos que se combinavam, como se uma fala descansasse para depois provocar a outra.
Infelizmente, por estar sentado muito atrás, não consegui fazer um bom registro de fotos; via com dificuldade Marcelino e Socorro e o pobre Valter quase sumia no emaranhado de cabeças e cabelos. Minha atenção ainda se deixava levar, de quando em quando, entre as pessoas, que traziam às mãos livros do português, blocos de anotações, além dos múltiplos celulares ocasionalmente erguidos. Era muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna, outros convidados de destaque desta bienal, chegaram à sala por volta das 17h. Andaram com discrição, sorrindo para quem lhes sorria, até chegarem a alguns dos lugares reservados. Foi ótimo vê-los ali. Acompanho um pouco de seus trabalhos, já tendo visto palestras de Marina em eventos anteriores, inclusive já postado aqui. O casal teria algumas participações na bienal este ano e eu esperava poder estar em alguma delas, mas ainda estava por perceber, depois desse dia, a pluralidade de eventos vindouros, boa parte deles no mesmo horário.
"O que te dói quando se pensa no Brasil?", Socorro pergunta a Valter.
"Não consigo encarar o Brasil como país estrangeiro. A cultura brasileira é muito minha. Tenho essa marca, uma cicatriz que ninguém pode tirar de mim. Se há um lugar onde podemos crer que algo melhor irá acontecer, esse lugar é o Brasil. Se a felicidade tiver uma nação convicta para acontecer, tenho a convicção de que essa nação é o Brasil". – Valter
Ainda seguindo o formato das palavras-tema, a próxima pegava carona nas nações: Portugal
"Me tornei escritor pela minha tremenda paixão pela língua portuguesa. Tenho paixão imediata pelas escrituras portuguesas, Fernando Pessoa, Florbela Espanca . Fico babando pela metáfora, pelo passeios de tanta beleza que fazem. O corpo da língua portuguesa está no Brasil. A alma está em Portugal." – Marcelino
Valter explica que é português, mas na verdade nasceu em Angola, e seguiu contando, emocionado, este trecho de sua vida, com certeza pouco conhecido do público:
"Por que não nasci negro? Se todos em minha terra são negros? Eu perguntava à minha mãe. Angola deixou em mim uma história, um discurso de meus pais, uma história contada. Prefiro viver uma mentira amorosa do que uma realidade odiosa." – Valter
Ele falou ainda de contato que fez numa fila de autógrafos, de uma pessoa frágil, com ares suicidas, que acabou por tornar-se um grande amigo. "A maioria de meus leitores são desconhecidos meus, mas são fundamentais na minha vida" - Valter
Marcelino focou a questão de maneira prática: "quem vai ler meu livro?". Diz que família não lê e narra, de maneira lúdica, o ritmo de lançamento, onde há festa, comida e todos vão, mas ninguém de fato lê o livro.
"O escritor se revela mais é na mesa do bar" – Marcelino
"O escritor, na criação, não tem família, não tem parentes. Uso tudo, mas é tudo ficção. O que estiver na frente, é vida. Quem escreveu meus contos foi minha mãe" – Marcelino
Esta é uma ideia bem interessante, e até a reconheço um pouco da época em que fiz a oficina literária com ele. Marcelino sugere que não se deve ficar preso a nenhum tipo de preconceito quando se escreve. Não se deve ter vergonha de pôr isso, medo de pôr aquilo, achando que se entregará mais do que se deve entregar.
"Meus contos vêm do grito, da ladainha da minha mãe. Meu romance vem do silêncio do meu pai. Sou eu? Não. É tudo mentira. É tudo ficção". – Marcelino
"Tenho um primeiro leitor, um amigo meu, Mário, que sempre lê primeiro meus romances. É uma pessoa muito antipática mas estranharia se fosse amigo e gostasse do que escrevo" – Valter
Tanto nessa, como em inúmeras outras palestras que vi de Marcelino, a figura de sua mãe é muito, muito forte em suas palavras, como se ela fosse uma voz orientadora, que estivesse permanentemente nele, manifestando-se ora de mansinho, ora de atropelo. Uma senhora inspiração!
Infelizmente, por estar sentado muito atrás, não consegui fazer um bom registro de fotos; via com dificuldade Marcelino e Socorro e o pobre Valter quase sumia no emaranhado de cabeças e cabelos. Minha atenção ainda se deixava levar, de quando em quando, entre as pessoas, que traziam às mãos livros do português, blocos de anotações, além dos múltiplos celulares ocasionalmente erguidos. Era muita coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna, outros convidados de destaque desta bienal, chegaram à sala por volta das 17h. Andaram com discrição, sorrindo para quem lhes sorria, até chegarem a alguns dos lugares reservados. Foi ótimo vê-los ali. Acompanho um pouco de seus trabalhos, já tendo visto palestras de Marina em eventos anteriores, inclusive já postado aqui. O casal teria algumas participações na bienal este ano e eu esperava poder estar em alguma delas, mas ainda estava por perceber, depois desse dia, a pluralidade de eventos vindouros, boa parte deles no mesmo horário.
"O que te dói quando se pensa no Brasil?", Socorro pergunta a Valter.
"Não consigo encarar o Brasil como país estrangeiro. A cultura brasileira é muito minha. Tenho essa marca, uma cicatriz que ninguém pode tirar de mim. Se há um lugar onde podemos crer que algo melhor irá acontecer, esse lugar é o Brasil. Se a felicidade tiver uma nação convicta para acontecer, tenho a convicção de que essa nação é o Brasil". – Valter
Ainda seguindo o formato das palavras-tema, a próxima pegava carona nas nações: Portugal
"Me tornei escritor pela minha tremenda paixão pela língua portuguesa. Tenho paixão imediata pelas escrituras portuguesas, Fernando Pessoa, Florbela Espanca . Fico babando pela metáfora, pelo passeios de tanta beleza que fazem. O corpo da língua portuguesa está no Brasil. A alma está em Portugal." – Marcelino
Valter explica que é português, mas na verdade nasceu em Angola, e seguiu contando, emocionado, este trecho de sua vida, com certeza pouco conhecido do público:
"Por que não nasci negro? Se todos em minha terra são negros? Eu perguntava à minha mãe. Angola deixou em mim uma história, um discurso de meus pais, uma história contada. Prefiro viver uma mentira amorosa do que uma realidade odiosa." – Valter
Pai e Mãe foram as palavras seguintes, e sem dúvida as que despertaram mais dos dois escritores, como se fossem fundo em suas almas, os fizesse refletir a vida, a carreira, os sonhos. Cada um, à sua maneira, tentou expressar o que essas duas palavrinhas lhes significava:
"Minha mãe era uma tragicômica. Se ela cantava, eu sabia que ela estava bem. Quando escrevo, meus contos compactuam com a fala de minha mãe. Uma frase de minha mãe que nunca usei mas é puro teatro: 'amanhã não amanheço viva!'" – Marcelino
"Meus textos nascem de um improviso. Eles vêm de um primeiro mote, de uma frasezinha que vou descosturando" – Marcelino
Aproveitando essa deixa, o escritor falou um pouco de um de seus contos mais conhecidos, Da paz, que nasceu exatamente desse seu processo do improviso, da articulação a partir de um fragmento:
"Começou com uma frase simples, 'eu sou da paz', mas essa ideia me incomodava, preferia pensar: 'eu não sou da paz', e a partir daqui vou construindo a coisa, tentando descobrir o que essa voz quer dizer. É um improviso, que decoro pelo exercício musical e repetido que faço." – Marcelino, que 'leu' alguns trechos do conto.
Era verdadeiramente impressionante sua capacidade de declamar seus textos de cor, de um fôlego só, com vibração característica, um timbre recheado de presença, enchendo o salão, chamando a todos para viverem com ele a experiência do texto, da palavra. Marcelino, que também tem forte verve teatral, nessas horas se transformava. Valter, a seu lado, parecia um dos mais impressionados com o fato, quando comentou, em tom brincalhão:
"Acho incrível como você consegue decorar seus textos, eu mal sei os títulos dos meus livros!"
Reforçando o fato de sua literatura se ancorar muito na família e no que ouvia, Marcelino citou sua tia Totonha, que não sabia ler, mas mais do que isso, ela simplesmente não queria aprender, e de como isso o inspirou a escrever o conto Totonha. A maneira como ele contava, imitando a voz da tia, aumentando a tensão das frases, criava de imediato a atmosfera perfeita, quase como se ouvíssemos não ele, mas sua tia.
Apesar da sala estar cheia, algo que me incomodou um pouco durante a mesa não foi exatamente a infinidade de pessoas mas a iluminação ambiente. Fiquei um tempo a olhar o teto, buscando descansar um pouco do excesso de detalhes lá debaixo, e só assim me dei conta de todas aquelas luzes, brancas, impiedosamente acessas, irradiando sua inevitável brancura. Essa percepção me deu uma estranheza, tudo pareceu claro demais, nítido demais. Talvez se algumas fossem apagadas, criaria-se um clima mais ameno, menos austero. Do jeito que estava parecia quase uma sala de aula, uma universidade ou algo assim. Era uma constatação que se reforçava a cada uma das mesas que vi nos dias seguintes, salvo umas poucas onde, não sei por que, optaram por reduzir as luzes mais próximas ao palco. Não sei qual o critério usado, mas o exagero de luzes certamente deixava o auditório muito artificial.
Falando sobre o tema mãe, Valter diz que a mulher é mais preocupada com a vida, tem sempre um sentido, uma necessidade de sobreviver: "O discurso das mulheres é muito mais literatura, bem mais que os homens. Os homens só são assim quando decidem e acham que em poucos minutos podem, por exemplo, mudar a vida dos filhos. Essa diferença marcou muito a minha vida. Tenho relação muito forte pela minha mãe. A minha mãe é a minha filha, é uma sorte para mim cuidar dela. Toda a vida dela ela fez isso por mim." – Valter
A essa altura o debate já havia rendido muito, crescido, enveredado por caminhos próprios, de modo que as palavras da lista de Socorro ou não me chegaram ou não foram mais relevantes, o jogo já havia conduzido a um enfrentamento de ideias, que vivia independente, trazendo a cada novo comentário um leque de ampliações.
"Qual palavra para vocês simboliza o amor?" – pergunta final de Socorro, lembro da palavra 'amor' ainda pertencer à sua lista.
"Como me vingo de um amor que não deu certo? Fazendo um poema. Me vingo escrevendo amores possíveis." – Marcelino
Marcelino encerrou focando novamente em sua tia Totonha, entrando agora em discussão do que chamou de ditadura do saber:"É possível ter relevância se não se sabe ler ou escrever?" E declamou o conto inteiro, prendendo o público com sua narrativa ágil e precisa, literalmente uma pancada.
Para ajudar a ilustrar esse momento, recorro a este vídeo, que data de 2007, mas apesar de antigo, ainda retrata bem o que quis dizer, o impacto do texto lido pela pulsão do próprio autor:
Entre risos e sorrisos, foi enormemente aplaudido, bem como Valter, que encerrou agradecendo o carinho de todos. Socorro Acioli também agradeceu, aos dois ao seu lado e também ao mar de pessoas à sua frente. O público começou a se deslocar, meio desordenado, para autógrafos, o momento talvez mais esperado, celebrado. Acompanhei o alvoroço, enquanto a maioria apenas saía da sala e outras tantas formavam a emblemática filinha no corredor, os livros na mão, prontos a serem assinados.
O maior destaque, mais uma vez acabaria ficando para Valter, que praticamente sumiu no meio da multidão, à medida que esta o cercava. Alguns seguranças estavam por perto, olhando cada um com desconfiança, como se o livro pudesse de alguma forma ser uma arma disfarçada. Valter recebia as pessoas lá mesmo do conforto de sua poltrona. Marcelino preferiu ficar de pé, e ali mesmo conversou e autografou para várias pessoas que o abordaram, além, é claro, de posar para incontáveis fotos, requisito obrigatório. Era uma energia boa, estar ali, acompanhar tudo aquilo, todo aquele interesse literário.
Aproveitei umas brechas entre esses momentos para conseguir conversar com ele, relembrar momentos da oficina literária e apresentar minha mãe. Parecia quase que o tempo não tinha passado, de fevereiro para abril foi bem pouco tempo mesmo, era quase como se estivéssemos ainda no intervalo da Toca Literária, prestes a voltar para mais. E era uma pena que Marcelino não poderia ficar muito tempo; iria embora já no dia seguinte, mal podendo respirar direito dos ares cearenses. Ele teria sido fantástico numa das programações do evento paralelo Bienal fora da Bienal, do qual falo a partir da próxima postagem.
Já Valter, sobravam flashes e poses em cima do escritor português, quase como se fosse uma espécie de outro mundo. Todos queriam alguns minutos com ele. Com o tempo, observei que passou a receber pessoas com um afeto que lhes permitia sentirem-se bem ao seu lado. Lembrava um pouco o Natal e a figura do Papai Noel, todos esperando para sentar ao lado de Valter Hugo Mãe. Mais do que isso, após um revezamento entre o público, foi a vez do pessoal da produção, os receptivos, se achegarem para abraços, autógrafos e um minutinho da atenção do ícone da literatura portuguesa. As cenas seguintes foram o que talvez se poderia esperar, mas talvez até um pouco além, exageradamente calorosas, gente chorando, abraçadas a Valter, que agora parecia quase que santificado. Uma despedida? Agradecimento? Milagre? Fiquei pensando comigo mesmo, buscando entender a causa de tanta comoção.
Como todas as vezes que o vi nessa Bienal, Valter foi de uma dignidade soberana, cumprimentando a todos, dedicando o máximo de sua atenção no retorno a seu público. Durante cada pessoa que recebia, ou mesmo de presentes que esta lhe trazia, seu olhar era todo daquela pessoa, como se quisesse entendê-la o melhor possível, captar sua essência. A coisa do sentar ao lado dele devia ser para que ficassem à mesma altura visual, favorecendo essa troca cósmica que acontecia silenciosamente no olho do furacão.
Haveria, logo após essa mesa, às 18h, uma outra com Marina Colasanti e Affonso Romano, mas optei por deixar passar, quis ficar aqui e acompanhar o desfecho, o ato final. E após mais alguns minutos e com a sala já bem mais esvaziada, pensei em cumprimentar Valter. Não tinha nenhum de seus livros à mão, aliás ainda não li nenhum deles, mas conheço um pouco de sua linha literária, de acompanhar entrevistas e falas em outros eventos. Seria um bom momento para agradecer aquela fala, e comentar um pouco disto. Na companhia de Marcelino, me lancei à sua poltrona.
Foi daqueles momentos de reconforto, dentro de aparente desconforto. É engraçado, pois essa cena, de ir falar cara a cara com algum escritor, não me era nada comum antes desse dia. Nas bienais anteriores daqui, 2014, 2012 e 2010 (as que passei a acompanhar e escrever sobre), sempre assistia, anotava, escrevia mas dificilmente ia falar com algum dos autores, talvez por insegurança, receio, não me sentia preparado. A Toca Literária que fiz com Marcelino me ajudou muito também nesse sentido, ter de falar, por mim e por meus textos, expor minhas ideias, ser o primeiro a acreditar em mim mesmo. O que começou ainda timidamente lá em Recife foi se propagando aqui, à medida que me senti mais seguro, apto a deixar transparecer um pouco de minhas ideias além do que costumava fazer apenas escrevendo. E quando percebi estava ali, conversando com Valter, falando da Flip 2011 (quando ouvi falar dele pela primeira vez), do contato com Marcelino, do ofício literário e até lhe convidei a ler meus blogs. Um momentinho rápido, quase ínfimo comparado à duração daquela tarde, mas que teve um valor muito significativo. Fiquei pensando depois como cada uma das pessoas que falou com ele antes de mim tiveram igualmente seus momentos, e saíram daquela sala também de alguma forma transformadas.
Foto: Carol Vieira |
Este dia representou uma enorme guinada em relação à minha relação com a Bienal, e também comigo mesmo. Nesta mesa, tanto Marcelino como Valter falaram um pouco de suas vidas, de suas literaturas, língua portuguesa, Brasil e Portugal, mas falaram muito mais sobre amizade, uma mesa que foi pura alegria, do início ao fim, permeada por piadas, risadas, boas histórias, memórias. Socorro Acioli fez um excelente trabalho de mediação, com a utilização de suas palavras-tema, criando já de cara elos comuns entre eles, e eram tantos!
Agora, observando essas fotos, ao postá-las aqui, percebo mais calmamente todas essas realidades. Talvez já não tenha exatamente o gatilho de memória daquele dia, mas a sensação ainda é forte, ficou no ar, sensorial. É possível ver detalhes, expressões, sensações, que não se via lá na hora, e isso aflora até outras coisas, comparado a como me sinto hoje. Momentos eternizados, não só pelas fotos ou mesmo por este registro escrito, mas simplesmente por revisitar o passado mentalmente e prepará-lo nesta representação, quase como recriá-lo. É mais ou menos essa a natureza de boa parte de meus textos nesse blog. Recriar passados é revivê-los. E vamos embora que vem muito mais por aí, a partir deste dia essa Bienal, para mim, ficou conhecida como a Bienal da Amizade.
Continua no dia 4, com a visita de Valter Hugo Mãe à tribo dos índios Anassés na Bienal fora da Bienal.
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