Fotos e vídeos: Denis Akel
Seguindo enfim com a série de textos referentes à Bienal do Livro do Ceará 2017, eis a quarta postagem, focada no encontro do escritor português Valter Hugo Mãe com a tribo indígena Anacé, como programação da Bienal fora da Bienal, atividade especial que retornou esse ano à grade do evento. Antes de falar mais amplamente de tudo, eis o que escrevi à ocasião, no dia, logo após findado o passeio e tendo voltado pra casa:
Neste quarto dia de Bienal, optei por fugir um pouco do ar aprisionador do centro de eventos. Fui para a programação da Bienal fora da Bienal. E fui na sorte. Não fiz registro, não deixei nome, não ganhei sorteio. Simplesmente houve muitas desistências. E essa sorte me levou a um sensacional passeio em plena tarde de segunda. Em clima de Bienal, aliás, quem se lembra do dia?
O passeio focaria no encontro do escritor Valter Hugo Mãe com os índios Anassés, em Caucaia/CE. A ida até a comunidade foi puro deslumbre, com paisagens que muito fazem falta no dia a dia urbano. Fomos generosamente recebidos, com cartazes e sorrisos, de um povo feliz por ser lembrado.
Havia por ali uma paz, um aconchego, que eu até então não lembro de ter sentido. Caminhar descalço pela trilha de areia, massagear os pés no riacho, comer tapioca com café e mugunzá, observar a vida daquele povo, que nos abraçava como irmãos, o que mais poderiamos querer? Todos logo se instalaram sob um cajueiro, à espera do convidado. E ele demorou.
Fiquei a observar o lugar, a me encantar com o simples fato de estar ali, de poder viver tamanha simplicidade. Me sentia estranho, portando celular, bolsas, tecnologias, enquanto crianças locais se esbanjavam nas águas do riacho, numa espontânea manifestação de infância. Tudo irradiava vida, não era difícil sentir a boa energia que emanava daquelas terras. E nada de Valter. Ora, aquela experiência sensorial já era tão única que mesmo o português não vindo, já teria valido cada minuto.
Mas ele logo surgiu, com pompa de herói, num cortejo com o cacique e os demais índios. Valter trazia algo como um ramo nas mãos, certamente um presente que deveria ter algum significado, mas jamais se soube. Em meio a cantoria, a euforia de lentes e máquinas fotográficas - que julguei proibidas - e estranhamente roubaram a cena, o escritor foi conduzido ao centro da roda.
Acompanhamos uma conversa que começou falando da colonização portuguesa no Brasil, da falta de espaço às comunidades indígenas e culminou com relatos da comunidade Anassés, pedindo ajuda para não desaparecer, clamando para ser ouvida. Valter pontuava a importância dos índios, como os povos originais desta terra, e se mostrou bastante emocionado por ter sido escolhido para estar ali, para ser o alvo de toda aquela comoção. Tudo em meio a muitos cliques de câmeras e mugidos de vaca, uma combinação bastante inusitada.
O atraso de Valter teve um preço. O sol não quis saber, e deixou todos no escuro, no fim da tarde, para uma roda final de danças e cantorias. A alegria daquele povo, as palavras sinceras e diretas do cacique e de seus filhos, o respeito de Valter, os mugidos das vacas. Um memorável momento desta Bienal fora da Bienal.
Escrito e publicado originalmente em 17/04/2017, no Facebook
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Este foi um dia de grandes memórias, razão pela qual quis escrever mais um pouco sobre ele e seus desdobramentos. Era o quarto dia de Bienal do Livro, e após a energia injetada em mim no dia anterior, através da palestra de Marcelino Freire e Válter Hugo Mãe, estava cada vez mais disposto a mergulhar fundo em tudo o mais o que pudesse no evento, ao longo de seus dias restantes. Neste cenário, surge a Bienal fora da Bienal, uma das programações mais curiosas dessa edição.
O segmento propôs levar escritores para fora do enclausuramento do Centro de Eventos, realizando debates e diálogos em outros espaços de Fortaleza e região metropolitana, e com isso também favorecendo a presença de pessoas fora do eixo central da cidade. O projeto é idealizado por um querido amigo, o sociólogo Júlio Lira, através do qual soube já ter havido outra edição, na bienal de 2006. À época eu ainda não acompanhava tudo tão de perto mas soube de Júlio um pouco do que aconteceu naquele ano, das experiências com os escritores e ideias de inseri-los em outros contextos que não as típicas e tradicionais falas em auditórios e salas fechadas. Júlio, muito animado com a volta da atividade, disse que viria muita coisa boa nesta edição, em 2017. Logo, quando a programação foi divulgada, vi um panorama geral das excursões, que incluiria falas em zonas periféricas, praças urbanas e até no meio do mar.
E dentro da singularidade do Bienal fora da Bienal, destacava-se uma das propostas, que tinha como alvo o escritor português Válter Hugo Mãe, escalado para encontro com uma tribo indígena, os Anassés, aqui mesmo em Fortaleza, na grande Caucaia. Não que os demais passeios não fossem interessantes, mas este tinha, além do escritor, toda a questão indígena, trazendo uma renovação, uma descoberta e, por que não dizer, alívio, ante a mesmice que acabaria sendo mais um dia confinado no Centro de Eventos.
O evento lembrava um pouco o Percursos Urbanos, uma outra idealização do Júlio, que promove passeios culturais pela cidade, a partir do Centro Cultural Banco do Nordeste. Era possível quase dizer que este passeio era um Percurso Urbano especial, uma vez que seria aberto ao público e disporia de ônibus para a localidade, mediante inscrição prévia. A princípio, não pensei em ir. Imaginei que as vagas já estariam mais do que preenchidas, pelo que tinha visto da avidez do público que encheu as já duas falas proferidas por Válter nos primeiros dias de Bienal. No dia em questão, 17 de abril, porém, fui tomado pelo impulso, curiosidade, ânsia do movimento, que me fez sair de casa direto não para o Centro de Eventos, mas para o CCBNB, ponto do qual sairia o ônibus desta Bienal fora da Bienal, previsto para as 14h.
Fui com minha mãe, que aproveitou para fugir da rotina e se permitir uma saída diferente em plena semana. Os detalhes estavam sendo postados diretamente no Facebook: devia-se levar toalhas, para se sentar à natureza (de preferência brancas), estar preparado para tirar os calçados (era necessário atravessar um rio) e evitar tirar fotos ou falar com o escritor. De modo geral, essas observações, sobretudo as últimas, me soaram estranhas. Até parece que ninguém iria fotografar, pensei.
Não fizemos nenhuma inscrição, fomos com o coração. Caso não desse certo, tinha um outro plano, de voltar direto para o Centro de Eventos, haveria uma fala de Ana Miranda e Marina Colasanti naquela tarde.
Nos deparamos com grande movimento nas escadarias do CCBNB; foram dois ônibus. O primeiro partiu completamente lotado, mas para minha surpresa o outro estava quase vazio. Fomos autorizados a embarcar neste segundo, e fiquei igualmente surpreso ao não ver tanta gente como esperava, talvez por ser dia de semana, e àquela hora da tarde. Tivemos quase o ônibus inteiro para nós, numa viagem tranquila, exceto pelo calor. Inúmeros vendedores d'agua empurravam garrafinhas pelas janelas. Caçamos moedas para uma, a sede era demais.
Eu ainda não sabia de muita coisa referente aos índios ou à região onde iríamos, não conseguia deixar era de me impressionar pelo fato de ter conseguido ir, de ter dado certo, e ao deixar-me levar por essa boa energia, os eventuais incômodos de viagem se mostravam ridículos e obsoletos. Era uma segunda-feira, mas não parecia. Nos sentíamos quase como que em outra vida, por estarmos trilhando uma rota tão diferente, ressignificando a dita rotina. Fiquei me perguntando se Válter tinha ido no outro ônibus, junto com todos, mas achava difícil. Certamente o autor ou iria em carro especial ou até já estava por lá. Ocorreu-me um pensamento: por que da presença do escritor na comunidade indígena, como se justificaria isso? Não seria algo meio forçado? Era o que estava para ver.
Após a mudança do cenário das janelas, que adquiriu tons verdes e interioranos, decepando prédios e edifícios, já em Caucaia, nos vimos entrando no território dos Anacés, localizado numa extensa área rural que lembrava um sítio afastado do mundo. O ônibus nos deixou na borda de uma trilha, demarcada com cerca e arrame farpado, a qual deveríamos atravessar. Um dos requisitos do passeio logo se mostrou, ao vermos o rio, embora o trecho a cruzar fosse apenas um córrego.
O sol agora se via fresco e agradável, realçando o viço natural de toda aquela folhagem. Atravessamos a pequena correnteza, sentindo suave massagem de água nos pés, sensação tão boa que quis que a travessia não terminasse tão cedo; ela revelou-se muito mais curta do que imaginei. Todos tiveram de tirar os calçados, embora várias pessoas tenham vindo de tênis, não viram ou ignoraram as medidas recomendadas, e tiveram de tirá-los, atrasando a fila indiana que até esse momento mantinha-se alinhada.
Ao percebermos os primeiros índios, senti um choque cultural, o contraste com nossas muitas bolsas, celulares e acessórios. Seguravam cartazes nos recepcionando com muita simpatia. Devolvemos os cumprimentos e seguimos com eles pela trilha, passando por algumas casas, até chegar aos pés de uma grande árvore, um cajueiro, que seria palco do encontro vindouro. Nem sinal de Válter ou mesmo de Júlio Lira, o coordenador da atividade.
Marcada para as 16h, faltava ainda alguns minutos e aproveitamos, como boa parte do pessoal, para nos deliciarmos com tapioca, mungunzá e bolo, vendidos numa barraquinha próxima, operada pelos próprios índios, a preços sorridentes. Tudo parecia apetitoso, um tempero a mais, o da própria situação. Tapiocas e cafés saíam a todo instante. Por acaso o motorista do primeiro ônibus estava por ali, através dele soube um pouco de como foi a viagem para eles: "O de vocês não veio cheio?". E quando chegou nossa vez no lanche, acabou a tapioca, "mas ela vai já, já fazer mais, viu?", nos disse a mocinha que atendia, sorrindo, apontando para uma outra barraca vizinha: "ela tá preparando a massa". Esperamos, não tem problema. Pegamos o café logo para garantir e enquanto mantínhamos o copinho fumegante nas mãos, aproveitávamos para viajar naquele cenário de serenidade: a cozinha improvisada, de barro e pedaços de telha, com bacias, panelas e madeiras, era um espetáculo à parte, ainda observei a dança do fogo acendido e mantido com esforços que embora me fossem diferentes, revelavam a mesma chama que aprendi a admirar.
Próximo ao cajueiro ficava o rio que desaguava na trilha. A torrente era delineada por uma pequena barragem, onde àquela hora brincavam e nadavam algumas crianças, com uma espontaneidade que me petrificou o olhar. Batiam na água, riam, mergulhavam, subiam, mergulhavam de novo. Uma diversão tão inocente quanto a própria existência. Nos olhavam com curiosidade, como a talvez pensar por que não nos juntávamos a eles. Ali, naquele pedacinho de mundo, acontecia o melhor parque aquático de todos. Parecíamos estar bem mais longe do que de fato estávamos, uma realidade tão perto, e talvez por isso tão longe.
Já com nossas tapiocas, não havia aparentemente onde sentar, mas improvisamos, em tocos de madeira, troncos de árvore, nada de bancos ou mesas, a experiência pedia um aconchego mais rudimentar, mais próximo à natureza, o que a engrandecia ainda mais. O café parecia mais saboroso, a tapioca mais pura, o próprio ar era ingrediente a ser devorado desmedidamente. Findado o lanche, nos juntamos aos demais, sob o cajueiro. Os compridos troncos que serviam de bancos, já quase cheios. Outras pessoas preferiram sentar-se direto no chão, usando suas toalhinhas.
Achamos uma brecha num cantinho de tronco. Sentados, ficamos entre conversar, observar e sentir o ambiente. Aproveitei para anotar qualquer coisas em minhas cadernetas, reflexões de minuto, do estar, da beleza que era o olhar aproximado da casca do tronco do cajueiro, que revelava um mundo de caminhos diminutos, quase invisíveis em meio a todo aquele encanto.
Outra companhia constante era a das vacas, ao longo do campo. Pode existir algo mais belo, mais espontâneo do que uma vaca pastando? Fique hipnotizado pelo movimento natural de seu rabo, para lá e para cá, como um pêndulo a badalar felicidade. Todos esses elementos juntos geravam um bem estar, um despertar de vida. Cachorrinhos passeavam, crianças em seus mergulhos, o sol a meia luz, as folhas do cajueiro conversando baixinho. Válter estava atrasado, já mais de uma hora, mas só viver essas sensações já era um reconforto.
Estava tão hipnotizado que não senti o passar do tempo, só voltando à realidade quando vi não a chegada do português mas de outras pessoas que, de alguma maneira, quebraram a inocência daquele retrato. Eram técnicos, de som, de imagem. Chegaram carregando caixas de equipamentos, fios, microfones, caixas de som. Vi surgirem logotipos de emissoras de TV. Ligaram os aparelhos, esticando a fiação nos arredores do cajueiro, com a determinação de quem prepara um palco artificial. Outras pessoas, da Bienal, organizavam o público o mais próximo possível da árvore. Uma lona com o nome do evento foi esticada na areia do chão, como que marcando a autenticidade deste. Eu bem imaginava que algo daquelas proporções, com a presença de Válter Hugo Mãe, seria sim filmada, fotografada, exageradamente registrada. Podiam até não falar com o escritor, mas ninguém ia deixar de fotografar coisa nenhuma.
E finalmente, já às 17h, quando todos estavam bem relaxados e acomodados nos troncos e toalhinhas, eis que surge o escritor português. Fez-se silêncio total, ouvindo-se apenas o canto dos vários índios que entraram junto ao escritor. Chocalhos e outros instrumentos marcavam a aparição. Válter vinha no centro do grupo, como um índio honorário, carregando às mãos um ramo, decerto um presente de boas-vindas. Mantinha o olhar sério, em respeito à celebração. A comoção era tamanha que parecia quase um herói de guerra, aquele que traria equilíbrio à tribo. Viu-se euforia no público que o aguardava, mas mais ainda nos fotógrafos e cinegrafistas, que agora brotaram aos montes, com câmeras que mal cabiam nas mãos. Os celulares também brilharam, literalmente, numa chuva de flashes. Atrás de toda a procissão, vinha Júlio Lira, coordenador da Bienal fora da Bienal, devidamente equipado com sua câmera. Com a proibição das fotos por água abaixo, também me juntei a eles.
Válter foi conduzido aos entornos do cajueiro, onde um tronco-banco vazio o aguardava, bem como uma caixa de som e microfone. Dali aconteceria toda a conversa. Após a cantoria inicial, o cacique rezou um Pai Nosso, e vieram logo os contrastes das realidades; a reza foi bruscamente interrompida por inoportuno estouro da caixa de som, daqueles de doer os ouvidos, que faziam o mugido das vacas parecerem a melhor de todas as músicas. Era ainda o começo, mas eu sentia leve teatricidade naquilo tudo, naquela presença de tantas câmeras e aparelhos, que se diziam proibidos a princípio.
O cacique seguiu com a oração, indiferente, e pediu um minuto de silêncio em memória de seus antepassados. Todos obedeceram, mas apenas os índios baixaram a cabeça, em profunda consignação. Os fotógrafos não respeitaram nada e disparavam fashes e fotos do silêncio.
O cacique seguiu com a oração, indiferente, e pediu um minuto de silêncio em memória de seus antepassados. Todos obedeceram, mas apenas os índios baixaram a cabeça, em profunda consignação. Os fotógrafos não respeitaram nada e disparavam fashes e fotos do silêncio.
Depois do ritual, um dos índios fez introdução do que seria aquele momento, apresentando a realidade da comunidade indígena, os Anassés. Apresentou também o cacique, Antonio Ferreira da Silva, que de cara mostrou-se de personalidade forte e direta, uma postura que o tornaria uma tônica daquele encontro.
Falou-se a respeito das dificuldades em sua sobrevivêcia, para manterem-se, terem como trabalhar, ante as muitas injustiças recaídas sobre seu povo, que não recebe assistência há pelo menos doze anos. O cacique e outros dois índios que permaneceram mais próximos a ele durante toda a roda (depois descobri serem seus filhos), Climério e Roberto, tinha um tom de apelo, de serem vistos, serem ouvidos. A respeito da presença do escritor português, o cacique mostrou-se contente:
"O dinheiro ajuda, mas uma homenagem é melhor ainda" – Cacique Antonio
Um dos primeiros temas trazidos à tona, que acompanharia, direta ou indiretamente toda a conversa, foi a questão da chegada dos portugueses ao Brasil, no qual já estavam os índios, e a culpa, ou podemos dizer, débito que o povo português tinha com os indígenas. Nesse ponto, Válter meio que assumia quase um papel de vilão, ou de responsável por "apaziguar" os ânimos, ao menos era isso que dava a se entender.
"Eles não nos deram nada, o povo deles, mas nós demos tudo a eles!" - Cacique Antonio
Não sei exatamente como ou por que, mas havia entre o público um promotor de justiça, que veio à tona desse acaso e gerou já de cara um pequeno estranhamento entre os índios, ao ser indagado do descaso recebido pela comunidade. O homem quis se explicar, e improvisou um discurso, uma fala de respeito e consideração:
"Perdão pelo atraso, na verdade não são doze anos, são 500 anos de atraso" - promotor
O ato, apesar de soar nobre e digno, me pareceu um pouco teatral, não sei, bonitinho demais. Como aquele promotor estava lá? Por que quis se manifestar? E já trouxe as palavras prontas ou foi mesmo improviso? De qualquer maneira, compôs bem a cena, bem didática.
"Não preciso de dinheiro, tenho tudo o que quero sem dinheiro, só preciso de dinheiro para comer" - Cacique
O escritor português ouvia atento, o ramo seguro às mãos. Era ainda alvo das muitas câmeras e lentes, quando se manifestou:
"Acho que sou muito pouco para vossa causa, sou muito pequeno para a grandeza de seu povo, é uma responsabilidade muito grande. Vocês são o povo original. É muito especial para mim estar aqui" - Válter
As vacas davam um tom extra às falas, os mugidos pareciam quase comunicar-se entre si, como se elas participassem, opinassem, quem sabe até encontrassem soluções para a necessidade indígena. Já os troncos onde estávamos sentados eram apoiados por tijolos; o peso em uns era tanto que se rebentaram, gerando sustos ocasionais.
"O poder deveria ser usado unicamente para ajudar os necessitados" - Válter
"Todos temos um lado bom e ruim, mas todos temos uma essência, e precisamos da essência do outro, para existir, agradeço à existência de vocês" - Um dos filhos do Cacique
O diálogo cresceu, deixando de lado um pouco a questão dos portugueses, e focando na dificuldade indígena, de lutarem por suas terras, seus direitos. O cacique disse que já foi preso duas vezes por seu envolvimento na causa: "O errado tem raiva do certo" - Cacique Antonio
"A FUNAI não nos deixa trabalhar, nunca nos visitaram." - Cacique Antonio
Um dos filhos do cacique falou aberta e sinceramente, de política, vários escândalos, corrupção, PEC, decretos publicados que os prejudicam, das comunidades indígenas que vêm sendo atacadas, jogando um grande painel sobre o debate. Um dos principais motivos seria o agronegócio e a especulação imobiliária. A questão era de tanta seriedade que o rapaz pediu doação para os índios no endereço da FUNAI: "Água e algo para as crianças". As palavras vinham do coração, compadeciam, vinham de alguém que aparentava ter visto e vivido muito, superado e continuar superando ainda mais. Era uma realidade que todos ali, exceto os índios, desconheciam. Não tínhamos ideia clara do que significava para eles, mas poderíamos ser nós no lugar deles, "precisamos da essência do outro para existir", lembrei das palavras de poucos minutos atrás.
"Eu tenho muita dificuldade em acreditar que você tem apenas 20 anos" – Válter, sobre filho do cacique. O escritor divagou algumas ideias, propostas, de como se encontrar o respeito pela comunidade indígena, em parte a partir da própria natureza, que tem tanto a ensinar aos homens.
"As pessoas são plantadas, isto me lembrou um de meus livros, mas pra mim é poético, pra você é espiritualidade, é de seus ancestrais" – Válter
Uma senhora da comunidade passou pedindo doações, num chapéu. Demos alguma quantia, caçando troco nas próprias cédulas já doadas. Tal trabalho, porém, nos tirou um pouco o foco das palavras de Válter, que discorria algo que só lembro que começou com a tribo dos Yanomami.
"Quem tem medo de morrer, não nasce vivo. Não tenho medo de nada" - Cacique Antonio
"Não tenho preocupação nenhuma, deito e durmo a noite inteira e quando dá vontade de escrever poesia, vou lá e escrevo" – Cacique Antonio
O cacique Antonio era durão, valente, sobretudo sábio. E também poeta. Em certo momento, foi colocado sobre a lona um saco cheio de livretos de sua autoria, de histórias e lendas dos Anacés. Comprei um, material bom, simples, funcional, histórias que poderiam se perder, não fossem registradas, passadas, e em tão poucas páginas pode-se fazer tanto.
"Antigamente, os índios se escondiam para não morrer, agora, eles estão aparecendo para não morrer - Roberto
Por conta do atraso inicial, a conversa esticou-se bem além do previsto. O sol já ia longe, revelando as primeiras cores da noite. Não havia luzes nos arredores, e logo a escuridão banhou a roda, desenhando silhuetas contra os últimos raios do horizonte. A conversa continuava, agora quase em clima de histórias contadas ao redor de fogueiras, e bem que poderia ter-se acendido uma ali.
"Todo mundo deveria escrever sua história, você nunca morre, você permanece, você fica, mas nem todo mundo pensa assim." - Cacique Antonio
O cacique encantava com sua humildade e presença de espírito, palavras que ora arrancavam risos, ora faziam necessária reflexão. Nesse momento, já com baixa luz, não consegui mais escrever ou tomar notas, o que de certa forma foi ótimo, me permitir entrar mais na experiência sensorial da coisa, dos sons, vozes, tudo naturalmente ampliado pela falta de luz.
"O local onde houve esse encontro é uma representação, esse rio, é uma cobra, por onde passam nossos antepassados" - disse Climério, contando uma lenda sobre aquele cajueiro, que imaginei ser ótima para ser contada naqueles livretos do cacique.
A primeira parte do encontro terminou por volta das 17:50. Válter agradeceu a todos, mostrando-se novamente honrado. Como divulgado, não foi aberto qualquer espaço para o público interagir com o escritor ou mesmo com os índios, pelo menos ante o espetáculo central. Medida estranha, ajudava a manter a aura meio artificial, sem perguntas, comentários, apenas o testemunho visual. Apesar de estarmos agora no escuro, obedeceu-se o cronograma, iniciando-se uma roda de Toré, para a qual todos foram convidados.
Um mínimo de luz foi arranjada através dos refletores e câmeras, quase tornando necessária a presença da tecnologia, criando uma cena curiosa, de uma cantoria bem, digamos, diferente. Várias pessoas juntaram-se aos índios, engordando a roda, inclusive Válter, num andar de quem buscava de alguma forma adaptar-se àquela cultura.
Desligados os refletores, o breu se fez total. Cada um se agarrou a seu celular, inclusive alguns dos índios, para minha surpresa. Luzes de apoio foram trazidas, para auxiliar na volta pela trilha, agora uma pequena aventura. Lâmpadas nas casas da comunidade também ajudavam a orientação.
A trilha da volta foi bastante diferente da ida. Via-se apenas os focos de luz deslocando-se ao longe, como vagalumes na noite, cada um buscando guia no outro, e sendo direcionados pelos próprios índios. Válter deteve-se no meio do caminho, tirou fotos com alguns nativos e ainda concedeu uma entrevista a um bem pronunciado repórter. Entendi que o público não teve voz, mas à mídia as portas foram abertas.
A volta ao ônibus foi meio confusa, não conseguimos ver ou falar direito com mais ninguém, mesmo o cacique, seus filhos, para agradecer. Havia até certo receio de não voltarmos a tempo da partida do ônibus, e corremos a seguir o fluxo das luzes-vagalumes, relaxando ao nos sentarmos no veículo. Na viagem, um friozinho excepcional era filtrado pelas janelas, parecia quase que estávamos prestes a começar um outro percurso. Uma ou duas folhinhas entraram pela janela em uma curva fechada. Pegamos uma para cada, pensei em escrever algo sobre ela, mas não lembrei e a folhinha sumiu no cotidiano.
Era por volta das 19h30 quando regressamos ao CCBNB. Cheguei ainda a cogitar ir para o Centro de Eventos, ver o que ainda conseguiria ver por lá, mas desisti, seria coisa demais a lidar, e uma mistura até desnecessária; tinha acabado de sair de um passeio diferente e já iria buscar o confinamento? Melhor guardas as boas lembranças do dia e retomar amanhã ao convencional. Assim fizemos.
A Bienal fora da Bienal inovou, trazendo ideias e conduções diferentes à rotina da Bienal do Livro. Os demais passeios, ao longo dos outros dias, trouxeram nomes como Gero Camilo, Daniel Galera e Ignácio de Loyola Brandão, mas diferente deste, não houve ônibus gratuitos para o lugar, eram atividades próprias a beneficiar quem morava perto de onde aconteciam.
Quanto a este encontro de Válter com os Anacés, um bom momento, marcante, sem dúvida, mas com seus altos e baixos. Bem diferente do que foi proposto, penso que a liberação de celulares e câmeras ofuscou a naturalidade da coisa. Claro que seria difícil conter, mas um pouco de bom senso teria feito a diferença, houve certa espetacularização dos índios, mesmo da natureza. E de comum acordo, uma vez que o cacique disse ser ótimo para eles uma homenagem, lhes dá visibilidade, sobretudo, imagino, quando essa visibilidade atende por Válter Hugo Mãe.
Ainda assim, uma ótima experiência conhecer estas terras, os costumes e tradições deste que é um dos poucos povos índigenas existentes no Ceará. Os momentos de reflexão, o vento, a água do riacho, o mugido das vacas, a hospitalidade dos índios, são afetos a serem bem regados. Agora, após repensar e relembrar tudo desse dia, me ocorre que quem nos deu a maior lição não foi o escritor, mas os índios, sobretudo o Cacique Antonio.
Abaixo alguns vídeos de trechos da conversa:
PS: Ao longo desse texto, grafei o nome da tribo como "Anacés" e também "Anassés". Pelo que pesquisei, ambas as grafias podem ser usadas, não sei se há uma versão definitiva.
Esta série continua no dia 5, com Horácio Dídimo, Mary Del Priore, entre outros.
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