O escritor Fabrício Carpinejar esteve recentemente em Fortaleza. Participou da Flicaixa, evento da Caixa Cultural, na última sexta (05). Antes disso, o poeta gaúcho deu o ar da graça na Unifor. Estive lá, na noite desta quinta, 04 de maio e conto um pouco neste post.
A CAMINHO DA UNIFOR
A CAMINHO DA UNIFOR
Não estava decidido a ir, se já iria vê-lo no dia seguinte na Caixa, mas pensei que tudo era oportunidade, tudo poderia ser aproveitado. Chamei pessoas para ir, uns não puderam, outros não quiseram. Fui só, muitas vezes acabamos sendo nossa melhor companhia. Saí um pouco tarde e até sem lanchar, comeria algo lá. Imaginei que o auditório do Celina Queiroz lotaria facilmente, e isso de fato aconteceria, mas não de imediato. Fui recebido por uma fila de umas 40 pessoas. Vi ainda um balcão com vários livros de Carpinejar à venda. Faltava ainda meia hora (começaria às 19h). Não tinha como ficar sem lugar, pensei, mas tinha como ficar sem comer, então corri ao quiosque de lanches mais próximo. Na volta a fila havia sumido, deduzi que já tinham entrado.
Fila inicial, a certeza de que lotaria |
NO CELINA QUEIROZ, O SHOW
O auditório estava parcialmente cheio, com várias cadeiras vazias salpicadas aqui e ali. Tomei uma. E mais e mais pessoas iam entrando e era grande o vozerio e notei pelo menos quatro grandes câmeras posicionadas. Era um evento que parecia requerer muito registro. O público geral parecia mais composto de jovens, que imagino ser o maior público do poeta, mas havia também outras faixas etárias, em menor número.
Qual o tema da fala? como ser feliz criativamente. Além disso, ele ainda falaria qualquer coisa de um projeto envolvendo poesia em guardanapos. Carpinejar foi anunciado, após longas palavras do apresentador, muita publicidade da Unifor. O poeta surgiu da cortina atrás do palco e logo já se mostrou muito à vontade. Lia um texto que batia de encontro aos ideais de muitos ali, focando em TCCs e suas complicações. Ali começou a conquistar o público, que aliás ja estava conquistado desde antes; muitos já tinham seus livros nas mãos. O riso fácil e lúdico enchia o auditório a cada sentença, a cada pausa, a cada identificação. Carpinejar parecia ter acabado de entregar um TCC.
A sala inteira já estava bastante cheia. Na fileira onde eu estava, uma cadeira restava vazia. Uma moça ao meu lado pediu para que a guardasse, pois esperava uma amiga, que logo chegaria. Avisei a todos que foram chegando, o lugar estava ocupado. Com todas as cadeiras praticamente ocupadas, nada da tal amiga aparecer. A primeira então disse que a outra estava lá fora, mas não a deixavam entrar por já estar cheio. E assim seguimos a palestra inteira com essa única cadeira vazia, e uma outra pessoa que estava sentada no carpete não viu e ali continuou até quase o final.
O palco do auditório contava com duas poltronas, mas elas não foram usadas. O poeta gaúcho não se sentou. Ficou para lá e para cá, entre o público, o microfone afiado, emendando histórias para versar sobre o tema da felicidade. E conseguiu isso de maneira muito própria, usando a si mesmo como exemplo, contando muito de sua vida, de seus medos, receios, que segundo ele, transforma em virtudes. E ele sabia conduzir o diálogo. Prendia a atenção, algo próprio de quem conta histórias. Aumentava o que precisava ser aumentado, dava pausas precisas, intervalos, deixava o silêncio agir. Gritava sem pudor para ter todos com ele. Uma fala muito humana, que de quando em quando brincava com uma ou outra pessoa, numa leve descontração.
Público atento comentava colocações do poeta |
A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS
Carpinejar tecia uma teia poderosa, incentivava a verdade, o dizer o que se pensa, o não esconder, mesmo sabendo que não se consegue ser assim. Muito focado em relacionamentos, temas bastante comuns em seus textos, mas que pareciam sempre se desvelar em algo novo, nunca dito ou nunca escrito. Falou bastante de família, destacando seus pais, de como lhe foram e são importantes. Do prumo inicial dado por sua mãe, quando foi diagnosticado com problemas mentais na infância, ao fascínio pela figura do pai, também poeta, que o inspirou diretamente ao ofício. Eram palavras que podiam já ter sido repetidas inúmeras vezes por ele, seja em livros ou em palestras ou mesmo no programa da Fátima Bernardes, mas que nunca tinha ouvido daquela maneira, daquela forma de aparente vulnerabilidade.
Um trecho que achei bastante significativo foi quando o escritor falou do urgência da velocidade dos tempos de hoje, em contrapartida a antigamente, onde se era preciso esperar mais por tudo. Usou exemplos, como esperar o leite ferver ou degelar geladeiras, consertar coisas defeituosas. "Hoje não se conserta, se troca por outro. Fazemos isso também hoje com pessoas, as trocamos, porque não temos tempo. A gente sofre por querer controlar a vida".
Uma outra história bem curiosa se deu quando falou sobre um cofre que seu pai tinha em casa, na infância, de como sempre viu o cofre, juntamente a seus irmãos, com grande curiosidade de saber o que havia nele. Em suas imaginações de criança, era quase como a caixa-forte do tio Patinhas, cheio de moedas, de ouro, riqueza. O pai nunca os deixava ver. Um dia, a casa foi assaltada, reviraram tudo e, claro, abriram o cofre. Carpinejar contou que para ele e seus irmãos foi quase o dia mais feliz da vida: finalmente iam olhar o inteiro do cofre. Quando se aproximaram, não entenderam, havia nele somente um monte de pastas e papéis. Onde estavam as moedas? O pai depois os explicaria: guardava no cofre suas poesias, seus textos, seus originais, suas ideias. O pequeno Carpinejar ficou decepcionado, mas depois entenderia que aquele era o verdadeiro tesouro do pai. Os ladrões, é claro, não levaram nada.
E ainda sobre o pai, o poeta Carlos Nejar, Fabrício falou de como sentiu quando ele se divorciou da mãe, quando tinha uns 7 anos. A ausência paterna muito cedo, a saudade, o levava a ir ao guarda-roupa, pegar as roupas do pai e espalhá-las na cama, de modo a meio que remontar seu 'pai', um pai de roupas, um pai vazio, mas o mais próximo que poderia tê-lo.
Essas histórias, contadas diretamente por ele, prendiam a atenção, graças ao intenso ar poético que conseguia lhes atribuir, transformando uma talvez simples realidade em singular oralidade. Quando perguntado a respeito de como levar a poesia ao cotidiano, Carpinejar foi bem direto: "O mais difícil na vida não é se reinventar mas sim assumir o que se é. Levo poesia através de histórias, do contar histórias, é o que estou fazendo aqui hoje"
O QUE LEVAR DE CARPINEJAR?
Eu costumava acompanhar muito o Carpinejar uns anos atrás mas fazia tempo que não o ouvia, muitos anos. Lia vez ou outra uma de suas crônicas, poemas ou frases nas redes, ou ainda as entrevistas de seu programa A Máquina, na Rede Gazeta, mas nada é como estar presente, sentindo a energia da pessoa, que fluía livremente pela sala. Ele parecia mais fortalecido, ainda mais seguro de si.
As câmeras, não só as oficiais, mas dos incontáveis celulares, estavam todas focadas naquele careca, e eu via inúmeras representações suas em cada telinha, mesmo na minha, para esses registros. Sempre é algo estranho, essa avidez de fotografar, registrar tudo, mas tão comum que quase não percebemos. O poeta respondeu ainda mais perguntas, com humor e típica sagacidade. Uma das últimas questões levantadas foi quanto a seu processo de escrita e qual sua relação com a máquina de escrever (que usa para poemas). "Acredito na urgência do que precisa ser escrito. Praticamente todos meus textos escrevo direto no celular, exceto os poemas. E quanto à maquina, é um artesanato, e eu adoro esse artesanato, errar, fazer de novo, fazer de novo...". Agradeceu e foi aplaudido de pé. Só achei que ele poderia ter falado mais do projeto dos tais guardanapos poéticos, não se soube muito deles.
Mais algumas sentenças que coletei:
"Se meu ritmo se alterou após aparecer mais na Globo? Por causa da crise, todos estão trabalhando 3x mais. Eu não tenho emprego, tenho trabalho. Se perder todas essas aparições, continuarei sendo escritor."
"Meu pior pesadelo? uma casa de quindim. Eu adorava quindim. O inferno é aquilo que tu gosta em excesso"
"Quando tive coragem de assumir meus defeitos, eles viraram virtudes"
"A cozinha é o lugar mais precioso da casa. A sala é para os que não se confia. Na cozinha você recebe quem realmente confia"
"A gente se sente ótimo criando atenção. Gostamos que perguntem, de devoção"
"Perder tempo é dar tempo e dar tempo é ternura"
"Adolescência: desafiar os pais para aprender a desafiar o mundo"
"A paternidade não tem nada a ver com o casamento. O homem esquece de que pode não ser bom marido, mas poder ser um bom pai."
"Num relacionamento, sempre haverá duas pessoas, uma prática e uma poética."
"Por que ter razão, se podemos ter amor?"
"Ser melhor do que o outro nunca é como ser melhor para o outro"
"Eu como nasci feio, sempre me reinvento. Quem se acostuma com quem é, não muda"
"O grande problema da felicidade é acreditar que o outro pode ser melhor do que ele realmente é"
"Curiosidade é saúde. Quem deixa de perguntar, já morreu"
"Todas as grandes decisões de nossa vida acontecem na banalidade"
"A gente não tem medo de morrer. Temos medo de ficar sozinhos"
"Tenho um lado visceral, de expor minha vida, as coisas que vivo, mas a gente se entrega com muita facilidade. Os nomes que colocamos nos animais já nos denunciam"
Após a tempestade, a calmaria no auditório |
OS AUTÓGRAFOS, UM SHOW À PARTE
Lá fora, a multidão se direcionou para pegar autógrafos, comprar livros. Fiquei um tempo observando o lugar, as pessoas, as sensações. Não comprei, não iria encarar aquela fila, não agora. Mas gostei de vê-la. Todo aquele furor ensandecido era inspirador para escrever, alguma crônica quem sabe. Carpinejar assinou os livros de pé mesmo, parecia ter aversão a cadeiras, e tirou fotos com todos. No local transitavam alguns gatos, assustados com toda aquela agitação. O que será que os felinos pensavam do poeta gaúcho? E todos que pegavam o autógrafo tinham ainda um último périplo pela frente: desviar de uma ponta de tapete levantada bem na saída, porque o tapete era grande demais, sua ponta se projetou para cima, uma armadilha inesperada. Vi umas três pessoas quase caírem, no ímpeto do tropeço. Será que Carpinejar também saiu por aquele lado?
Com toda a certeza, não concordo com tudo o que disse ou pensa o poeta, mas foi uma noite bem marcante, muitas sensações, considerações. E no dia seguinte, sexta, haveria muito mais. Carpinejar dividiu mesa com Xico Sá na Flicaixa. Estive lá e conto mais num post futuro.
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