Nos últimos dias 5 e 6 de maio, aconteceu aqui em Fortaleza a Flicaixa, festa literária realizada pela Caixa Cultural. O evento, como descobri depois, veio diretamente de Salvador, com boa parte da programação que apresentou por lá. Havia inúmeros autores convidados, grande oportunidade de ótimos debates em vista. E ainda no clima da recente Bienal do Livro, decidi abraçar mais essa tão bem-vinda chance.
O primeiro dia, uma sexta-feira, seria onde se concentraria a maior parte da ação. Todas as principais e, digamos, mais badaladas mesas, aconteceriam nesse dia. Entre os convidados, nomes como Fabrício Carpinejar (que esteve no dia anterior na Unifor), o jornalista e cronista Xico Sá, a historiadora Mary Del Priore, dentre outros.
As atividades se iniciavam às 10h da manhã, com uma mesa sobre booktubers ou algo assim. O tema até poderia ter algo de interessante, mas resolvi abrir mão em virtude do resto do dia; seria exaustivo demais ficar das 10h às 22h direto ali. Centrei portanto nas três mesas seguintes, começando pela das 14:30, que trouxe Angela Gutiérrez e Socorro Acioli, mediadas por Marina Solon. O tema foi “As múltiplas linguagens da sensibilidade feminina”. Com empecilhos de trânsito e talvez por ter saído um pouco tarde de casa, cheguei um pouco depois do início, mas conseguiria ainda desfrutar muito bem do que foi este belo debate.
MESA - AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS DA SENSIBILIDADE FEMININA (SOCORRO ACIOLI / ÂNGELA GUTIÉRREZ)
De cara, chamou-me a atenção o local, o palco, onde ficavam as convidadas. Estava tudo bem diferente do que me lembrava de outros eventos ocorridos ali, graças a todo um cuidado dos organizadores: havia um enorme painel no fundo, meio em profundidade, formado de vários quadrados agrupados em alto relevo, criando um efeito de papel amassado, no qual estava a identidade do festival. Uma iluminação amarelada deixava um tom suave e acolhedor, propício para se passar horas ali. Todas essas percepções me chegavam aos poucos, logo que me dirigi a uma das muitas cadeiras vazias.
Havia um público razoável, mas bastante interessado. Sentei, já procurando me familiarizar ao tema debatido, o que não foi nem um pouco difícil, uma vez que o ato da escrita feminina já estava em ebulição na fala de ambas. A questão foi amplamente divagada, a partir do que seria, supostamente, permitido às mulheres escreverem, até tempos atuais, nos quais se vê um aumento cada vez mais significativo da presença feminina na literatura. Socorro e Angela exploraram inúmeras nuances e exemplificaram suas próprias rotinas como forças motrizes desta mudança.
O QUE ESCREVEM AS MULHERES?
O QUE ESCREVEM AS MULHERES?
Para as autoras, o ato da escrita feminina deve ser visto além do que aparentemente representa, além de ser apenas "a escrita feminina”, é algo muito maior. Comentaram que havia um tempo no qual a mulher era conhecida na literatura apenas através do olhar masculino. As mulheres não escreviam sobre si, seus sonhos ou receios ou desejos. Os homens as retratavam. Logo veio à tona a personagem Capitu, de Dom Casmurro, como a típica representação da mulher, uma personagem cheia de dúvidas, de incertezas, restrita apenas à visibilidade masculina.
“A mulher assumiu seu lugar de autoria no mundo, disso não há dúvida, vejo muita atenção nisso hoje em dia, em haver um equilíbrio. Isso só acontece porque alguém teve atenção de perceber que era uma minoria. Agora é as mulheres continuarem a manter o equilíbrio dessa balança." – Socorro Acioli
Foi bastante comentada a questão da literatura erótica, dentre o que se situaria como o que a mulher deve ou não escrever. Neste ponto, Socorro disse ainda que vê cada vez mais mulheres nas oficinas de escrita que ministra, nas quais trabalha, além de contos e estruturas de romances, temas eróticos e todos são lidos e bem recebidos pelos demais alunos.
Para Ângela, a literatura deve ser aproximação da realidade, do que se sente, do que se vive. Citou Machado de Assis, ao dizer que literatura é verosimilhança. “Não refaço a escrita mas a fragmentação do texto. Costumo escrever tudo de uma vez, exceto de vez em quando, quando os temas me incomodam e interfero no fluxo da criação, tenho de negociar com a criação literária”. Quanto ao feminismo. a autora define como uma luta pelos direitos da mulher, que a coloque em igualdade em todos os tipos de direito.
"É preciso que cada vez mais mulheres escrevam, seus sonhos, suas verdades" – a mediadora, Marina Solon, completa o diálogo.
As autoras citaram a obra Hibisco Roxo (2003), da escritora africana Chimamanda Adice, como exemplo de obra que reflete uma visão amplamente feminina, na qual a autora não tem receio ou medo de dizer e retratar aquilo que sente.
Também foi destacado o livro Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus, que vem gerando polêmicas entre críticos por ser ou não literatura. Tudo por ela ser de origem simples e o livro narrar fatos dessa vida, da sua vida, tal como ela é. Quanta besteira, a obra (de 1960) é incrivelmente sincera e necessária, pelo que li a respeito.
Num outro momento da mesa, os assuntos bailaram por hábitos da escrita em meio aos hábitos do dia-a-dia. Como conciliar a família, filhos, com a criação literária? Ambas foram enfáticas observando que apesar do trabalho, sempre cabe às mulheres todas essas atividades (como se sua rotina fosse menor), mas que era algo muito comum, inato da força feminina, após um dia cansativo de trabalho, chegar em casa e ainda ter força para cuidar dos filhos. Elas acreditam, contudo, que os espaços conquistados pelas mulheres já meio que as isentam dessa responsabilidade integral, que já saíram deste lugar-comum, desse pensamento que ainda as vê como únicas responsáveis pela ordem nos lares.
LEITURAS E MAIS RECOMENDAÇÕES
LEITURAS E MAIS RECOMENDAÇÕES
A mediadora quis saber o que as duas andavam lendo.
“Clarice Lispector tem uns contos que são cruéis com delicadeza. Cecília Meireles, leio sempre que quero me sentir encantada. Aliás, recebo textos horrorosos atribuídas a elas! Devemos ter cuidado com a correspondência virtual. Não faça essa crueldade, elas já não podem se defender.” – Angela
"Orides Fontela, Adriana Lisboa, Juliana Diniz (escreve com muita elegância, sendo tão novinha), ah, e um da Ângela! O mundo de flora!” – Socorro Acioli
Ângela também falou da sensação de ter um de seus livros selecionados para o vestibular (O mundo de Flora), de como ficou honrada ao ver a obra comentada e discutida com tanto interesse e ver todos os novos olhares e interpretações que faziam dela.
A Casa, livro da escritora cearense Natércia Campos, foi bastante citado. Angela teceu inúmeros elogios a ele. “Deveria ser um livro muito mais conhecido no estado”. Juntou a ele ainda Dom Casmurro e Iracema, que considera obras fundamentais da literatura cearense.
A mediadora, valendo-se desse tema, quis saber onde o estado falha na divulgação de nossas escritoras? “O governo poderia escolher com mais competência, bom escritor ou escritora, ter consciência de que o livro possa gerar debates evitar livros medíocres. Todos têm o direito de ser medíocres, mas o estado não deve levar esses livros às bibliotecas” – Angela
AGENTES LITERÁRIOS E POESIA
AGENTES LITERÁRIOS E POESIA
Um momento bastante interessante de toda a fala veio com a figura dos agentes literários e sua importância aos escritores. Socorro Acioli falou que são como pontes, algo similar ao que um empresário é para os jogadores de futebol. "Ajudam a cuidar da obra, das verbas do contato com a editora, mas não faz nada pelo autor, não transforma um autor ruim em um autor bom, só faz profissionalizar a obra."
Perto do fim, surgiu uma pergunta da relação de ambas com poesia.
“Nasci praticamente numa biblioteca. Meu pai estava sempre lendo. Me colocou desde cedo em contato. Ele colocava discos para todos ouvirem ou cantava com o violão. Meu amor pela poesia começou da mão de meu pai. Apesar de só ter um livro publicado, tenho grande amor pela poesia” – Angela
“Para gostar de ler poesia, precisa ler poesia todo dia” – Lembraram esta frase de Affonso Romano de Sant’Anna.
O ESCRITOR REGIONAL
Uma última pergunta trouxe a questão da mulher cearense e a representatividade da região para o escritor:
“Os rótulos às vezes ajudam, às vezes atrapalham. Ser herdeira dos escritores de nossa região é um orgulho, claro. Morte e vida severina, só sei ouvir cantada. Temos um legado sim e temos obrigação de mantê-lo. Graciliano Ramos narra com perfeição a sua realidade, a nossa realidade. Não temos um rio na nossa história, e escritores regionais contavam rios com muita beleza” – Angela
“Não vejo problemas com rótulos. O sertão hoje não é o sertão de Graciliano. Essas outras realidades precisam ser contadas. Cada escritor precisa respeitar o seu projeto literário. Que todos, homens e mulheres, escrevam e falem o que seu coração quer falar.” – Socorro
Durante boa parte dessa mesa, assumi uma postura que se repetiria ao longo das demais: me debrucei sobre um caderninho que tinha levado e anotei referências e passagens e observações do que eu via e ouvia. Parte de tudo isso ajudou a dar a forma para essas postagens – aliás, essas anotações foram o primeiro incentivo para que eu viesse a postar sobre a Flicaixa, no intuito também de semear o evento a quem dele não soube ou não pode ir.
Chegamos ao fim da mesa. Eu, como acredito que boa parte dos demais, estava fascinado por aquela conversa tão instigante. Não vi do começo, é verdade, mas o suficiente para ver transbordar um lirismo de doçura em falas tão sinceras. A valorização da escrita, da mulher, do criar em oposição ao ritmo do cotidiano em uma sociedade tão marcada pela presença masculina, tudo se combinou de maneira espontânea e muito natural. Já conheço Socorro Acioli de vista de vários eventos, inclusive da recente Bienal do Livro, na qual ela teve inúmeras aparições mas ainda não conhecia nada de Ângela Gutiérrez. Foi uma maravilhosa oportunidade conhecer uma escritora de tanta personalidade, tão amável e de fala tão singular, evocando muitas vezes um tempo tão próprio, tão dela, já um convite à sua literatura.
O MUNDO DOS AUTÓGRAFOS
O MUNDO DOS AUTÓGRAFOS
Movimentação ao término da mesa, livros e mais livros nos espaços da Caixa |
No fim, as duas autografaram num espaço arranjado ali mesmo na Caixa Cultural. Aliás, a Caixa surpreendeu por favorecer imensamente este evento, tornando o ambiente (geralmente fraco e sem graça) em algo agradável, ativando espaços quase mortos do lugar, como um café e uma livraria, tornando tudo mais integrado. Assim, era possível olhar, folhear, comprar os livros dos autores convidados da Flicaixa e levá-los para autógrafo ali mesmo, ou ainda apenas tomar um lanche com um capuccino. Optei inicialmente por essa segunda opção, mas logo mudaria de ideia.
Havia realmente muitos livros de Ângela Gutiérrez. Dei uma breve olhada em vários, à medida que a fila de autógrafos amainava. Encontrei um de poesia bem interessante, Canção da Menina. A autora já assinava quase o último quando cheguei para cumprimentá-la. Ela me sorriu com o olhar. Aproveitei para conversar um pouco, lembrando de perguntar se ela não tinha ido à Bienal do Livro. Ângela me disse que esteve com problemas pessoais e acabou por ter de cancelar suas programações na Bienal (ela mediaria o escritor Cristovão Tezza). Agora que fazia seu retorno, sua volta, na Flicaixa. Pelo menos em grande estilo, observei. Terminei por agradecê-la, parabenizei pela ótima mesa, pela grandeza da fala e gentileza do tempo e segui, já me deixando levar pela doce canção da menina.
Como as fotos ajudam a mostrar, o movimento nos saguões do centro cultural era notável. Muitas pessoas, fluxo enorme de livros, de vozes, de vida. Dava gosto estar ali, era uma atmosfera que me encantava, só de perceber, de sentir, mas logo tive de retornar ao auditório, estava prestes a começar a próxima mesa, com a historiadora Mary Del Priore, que será tema da próxima postagem desta série.
Nenhum comentário:
Postar um comentário