Dando continuidade ao post anterior, dedicado à Festa Literária da Caixa, a Flicaixa, e de tudo – ou quase – o que vi e ouvi e percebi por lá, a segunda das três mesas que assisti naquele dia, 05 de maio, sexta-feira. Este post acabou longo demais, por isso tive de fazer a série em três partes. Infelizmente, não disponho de tantas fotos como gostaria da palestra em si, mas suficiente para ajudar a compor a atmosfera. Vamos lá.
MESA - HISTÓRIAS DA GENTE BRASILEIRA (MARY DEL PRIORE)
A historiadora Mary del Priore, tal como Socorro Acioli (do post anterior), foi outra que também esteve em destaque na programação da recente Bienal do Livro deste ano, aqui em Fortaleza. E agora voltaria para uma nova fala neste festival da Caixa. A conversa seria mediada pela socióloga Glória Diógenes, e teria, como indicava o tema (título de um dos livros de Mary), um andamento bastante livre. Pelo que lembro de já ter ouvido dela, sobretudo a recente fala na Bienal, era a certeza de vir por aí mais uma ótima 'aula' disfarçada de conversa rica e inspiradora.
Desta vez não atrasei, nem poderia, estava de olho na hora. Esta próxima mesa começaria às 16:30. Entrei com certa antecedência, podendo escolher lugares com tranquilidade. Novamente um número médio de pessoas, similar ao da palestra anterior. Logo, as duas mulheres surgiram no palco, onde já se achavam as poltronas e mesinhas com água. Foram aplaudidas, sorridentes, e a fala teve início.
Conheço um pouco do trabalho de ambas e sei que há uma grande amizade entre elas, uma cumplicidade notável na troca de elogios múltiplos, como novamente se fez notar já nos primeiros minutos. Glória iniciou agradecendo a iniciativa da Caixa com o evento e de como estava feliz em estar ali, citando ainda uma frase de Voltaire: "É preciso ter alegria no conhecimento".
Ela seguiu com uma introdução bem completa de Mary, enaltecendo sua obra, sua visão de historiadora, pesquisadora, que percorre e situa cidades, épocas, personagens da realidade, dando um panorama geral do que estaria por vir. A historiadora agradeceu, lembrou sua participação na Bienal do Livro, no fim de abril, e disse o quanto estava adorando a cidade de Fortaleza, realmente fascinada, com o apreço que a cidade tem pela cultura, com centros culturais, museus e mesmo pela cor da água da cidade. Citou em especial o espaço Edson Queiroz, onde viu uma pinacoteca com um acervo gradiosíssimo, que não chega ao sul, e pontuou a necessidade de se fazer esses bens cada vez mais públicos.
"Não devemos esquecer o nosso passado. O passado é questão de amor" – Mary
A DESIGUALDADE CULTURAL
Um dos primeiros temas abordados pela historiadora foi a educação e suas desigualdades. Para tanto, citou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, célebre por suas ideias, como o capital cultural, que, em linhas gerais, revela um desnível entre o aprendizado nas escolas, pois considera que cada estudante traz, de berço, uma pré formação de seus pais e do meio em que vivem, o que interfere na forma como aprendem os conteúdos. Assim, portanto, as escolas, que prezam sempre um discurso de igualdade, acabariam por priorizar os estudantes mais "ricos", e aqueles com baixo capital cultural demorariam a entender os códigos culturais valorizados por elas. Seria como transformar a cultura em uma espécie de moeda, usada pelas classes dominantes para acentuar as diferenças. Isso explicaria também o fato de escolas sempre preferirem matérias como matemática e física a desenho ou esportes, ou seja, os interesses das classes dominantes, e nada de igualdade. Mary se mostrou incomodada pelo rumo que segue o país, que pouco valoriza a cultura, sobretudo a popular:
"Não há movimentos no Brasil contra a corrupção e a sociedade brasileira faz pouco esforço pela educação. Gosto da ideia de conversar com pessoas simples, que têm menos condições que nós, mas muitas vezes têm mais sabedoria" – Mary
UM POUCO DE HISTÓRIA
A historiadora falou um pouco de sua tetralogia, que começa com Histórias da gente brasileira, volume 1: Colônia, obra que esmiuça a vida antes do período do Império, que revela hábitos, costumes e histórias esquecidas ou ignoradas. "Quis mostrar como o brasileiro é inventivo, como tira sua sobrevivência da criatividade. Uso a comunicação dos jovens pesquisadores, que lidam com documentos históricos, é a melhor fonte de pesquisa."
Alguns fatos curiosos ditos por ela:
"Antigamente, não existiam pintores no Brasil, quem pintasse era artesão"
"O beijo só se popularizou após a 2ª guerra mundial. A boca é o lugar mais sujo do corpo. Os europeus criticavam os brasileiros, diziam ser sujos, mal educados. Os restaurantes por kilo de hoje são meio que 'netos' desses hábitos."
"Amor, no século XVII, só de Deus, só no século XIX que amplia seu sentido"
Nesse ponto, Mary trouxe à evidência a palavra mulato, dizendo que é preciso, antes de tudo, conhecer a origem da palavra para melhor entendê-la. Para tanto, citou Yeda Pessoa, que disse ser uma das maiores linguistas do país, especialista em estudos afro-brasileiros e línguas africanas. Acreditava-se que a palavra mulato designaria filho de mula, mas segundo estudos da professora Yeda, o termo é de origem árabe, significando de fato o filho do muçulmano com um não muçulmano .
Glória Diógenes, buscando ampliar a conversa, questiona se havia distinção entre a nudez nos diferentes períodos históricos. "Nos séculos XVI, XVII e XVIII, não havia. A nudez não era erótica naquela época. Ela tinha de ser descoberta. Os escravos tinham cuidado com seus corpos, com seus cabelos". A historiadora falou ainda de sodomia, do fato de masturbação ser proibida pela igreja (por haver desperdício de sêmen) e de um livrinho português da época, o Manual do Confessor. "É extremamente poético, poetiza as partes do corpo, se tornam belos".
Segundo Mary, os processos de divórcio só começariam a partir do século XIX. Nesta época, já não era o padre quem dizia o que podia ou não. Os médicos começavam a estudar a sexualidade humana. "O marido anotava as relações que tinha com a mulher. Naquela época, as relações eram somente para procriação"
Falando sobre prostituição, a historiadora fez um breve passeio por panoramas recentes, partindo das cocottes, as prostitutas francesas. "Vivemos uma esquizofrenia na nossa realidade de hoje. Prostituição sempre existiu no Brasil, desde o século XVI. As cocottes, naquela época, ajudaram os brasileiros a ter melhores hábitos higiênicos, a combater a sífilis."
Um outro detalhe interessante foi quando comentou que espelhos, símbolos de vaidade e luxúria, eram proibidos em casa, nos quartos. Só podia haver na sala. "Era uma contenção nesse período de aburguesamento. Isso só foi melhorar depois, com influência de estrangeiros."
Mary del Priore acredita que muito do que se sabe ou conhece hoje de detalhes ou particularidades destes temas, se deve ao trabalho de jornalistas e memorialistas e citou alguns relativamente contemporâneos: "Adalgisa Nery tem um excelente trabalho como memorialista; Pedro Nava escreveu um conto sobre a descoberta da homosexualidade; Tonia Carrero já descreveu beijo que deu em uma amiga. Nossa vida diária é um conto de deslumbramento. Hoje, por exemplo, eu vi como é linda a cor das águas daqui".
A conversa então foi desviada para a atualidade, focando agora nas crises, as muitas turbulências pelas quais vem passando o país, de conflitos a greves.
"A violência é um componente da nossa história, mas não estamos sozinhos, é assim em todo lugar do mundo. A democracia tem que atender a demandas muito diversas. A demanda de um é diferente da do outro. Como atender a todos? Não se trata de maioria, mas de grupos muito distintos, tribos. Como a democracia vai lidar com isso? Acho que os jovens terão que tratar disso aqui a alguns anos."
HISTÓRIA E LITERATURA, UM CASAMENTO IDEAL?
Glória diz que há forte ligação dos livros de Mary com literatura, que ela faz muitas referências literárias, e questiona a importância de se aproximar história e literatura e literatura e ciência.
"A história como ciência é uma invenção do século XIX. Quando ela tem uma missão, ela passa a ter teorias, e isso a transforma. Mais uma vez o trabalho de escritores e memorialistas, de textos de Leonardo Mota ou as notas de rodapé de Gilberto Freire ou Sérgio Buarque. A literatura brasileira dá um universo ao historiador, e ao meu ver é uma literatura que não tem recebido a atenção devida. Meu sonho é que as duas fossem ensinadas juntas. Isso seria bem mais divertido" – Mary
Ela também apontou, inúmeras vezes em sua fala, o desinteresse dos alunos de história, de como se afastam e os professores não conseguem se renovar para trazer esse interesse, fato que mostra também a desigualdade na educação.
"Temos um problema aqui no Brasil: o vestibular. O professor precisa ensinar o óbvio e isso afasta o aluno da história, da narrativa, isso tira o interesse. A literatura oferece universos maravilhosos" – Mary
Concluindo a questão história x literatura, Glória comentou que sua tese de doutorado foi criticada por ser literatura, não científica, e isso enaltece a diferença e preconceito que há no fazer literário.
CONVERSAR COM OS MORTOS, A IMPORTÂNCIA DO ESPIRITISMO
O espiritismo foi um outro tema que surgiu já pertinho do final da mesa. Os assuntos eram tão variados e ao mesmo tempo tão conexos que o tempo não parecia passar. Havia quase como um tempo suspenso, no qual todo o auditório se encontrava preso às palavras, às histórias contadas por Mary. Eu buscava um suspiro ou outro para dar conta de anotar esse ou aquele trecho, enquanto os refletia mentalmente. E lá foi Mary falar de espiritismo:
"Tive vontade de escrever sobre espiritismo. Fazer história é conversar com os mortos (deu um risinho controlado). No século XIX, o espiritismo chegou ao Brasil como moda. É assim que a obra de Kardec vai sendo importada" – Mary
Ela falou um pouco do período, da vida de Alan Kardec, de como começou seus estudos e desenvolveu sua doutrina. Mencionou ainda o conde d'Eu, Gaston d'Orleans, que ao ouvir um gramofone teria dito: são os mortos cantando. "Kardec dizia que os mortos tinham muito a nos ensinar" – Mary
"Os primeiros espíritas são baianos. O eco do além túmulo é a 1ª publicação dedicada aos espíritas"
"Achei uma carta de um professor de D. Pedro II. Falava, em 1846, que estava em uma mesa volante que recebeu a visita de um espírito que disse que caso ele não abolisse a escravidão, perderia o império." – Mary
"As pequenas coisas também contam histórias. O espiritismo é uma caixa de histórias, mas eles não deixam ter acesso a isso quem não for espírita. O Brasil é uma coisa fantástica, uma sinergia de culturas" – Mary
A POUCO CONHECIDA CULTURA AFRICANA
E para terminar, voltaram novamente aos temas africanos, tão ricos e ainda pouco conhecidos, segundo a historiadora, que focou agora diretamente nos escravos, da simplicidade como se se vestiam, sendo às vezes dificil diferi-los de seus donos de terra. Aqui ela citou um diário que reflete bem esse período, o memórias fantásticas de uma filha de cortador de cana.
Comentou que os europeus chamavam os brasileiros de mazombos e ainda que havia colégios para escravos e que foram os estrangeiros a primeiro mudarem a vida das classes menos favorecidas. A rua do ouvidor, no Rio, é reflexo de uma famosa rua de Paris.
Nesta reta final, surgiu uma questão que viria a sintetizar meio que um pouco de tudo o que Mary falou ao longo de toda a palestra. Glória indagou: o que acha da base do ensino e da reforma?
"Isso tem sido feito em vários países. Acho que alteramos isso em virtude do esquecimento de alguns conceitos. Mas não é o suficiente." Mary cita então o historiador e memorialista Alberto da Costa e Silva, como grande conhecedor e difusor da cultura africana, uma cultura ainda muito desconhecida, mesmo pelos próprios professores."É preciso conhecer outras línguas, a arte, a cultura, a literatura. A história da cultura africana só está acessível integralmente em língua estrangeira (holandês, francês, inglês). Para o professor, isso é difícil. A história da escravidão é simples mas a história da África é complicado. Enquanto não tivermos obras sobre a África, literatura africana, fica bem inacessível sobretudo para os professores. É coisa para 10 ou 20 anos".
QUANTO VALE UM LIVRO DIDÁTICO?
Mary levou adiante a problemática da educação, do desinteresse, da facilidade maior em criticar, em repreender ao invés de incentivar, gerando os comentários abaixo, os melhores de toda a fala, na minha opinião:
"Prefiro um aluno interessado do que dez desinteressados. Criticar, dizer que não vale a pena, é a coisa mais fácil que há. Os jovens professores de hoje não conseguem se comunicar com seus alunos. Precisamos nos reinventar, mudar a presença do professor de história junto aos alunos. Temos que usar as redes para mudar isso. Eu amo história e faço história para que as pessoas amem história. Livro didático é algo criminoso, é um veneno. Temos que recusá-lo, como a novela da Globo. Temos que convidar as pessoas a verem as coisas fora da sala de aula. Temos que fazer nossos alunos gostarem das coisas que gostamos, senão não darão conta. Temos que olhar nossa brasilidade e nos reinventar, esquecer as influências de fora. Inventar uma nova maneira de estuda história". – Mary
Glória e Mary trocavam sorrisos constantes, demonstrando grande amizade, uma elogiando as falas da outra, e de fato era uma conversa muito amável. Assim, Glória encerrou, com um última pergunta, mais direcionada à Mary pessoa do que à Mary historiadora: "como consegue ser essa pessoa tão leve? tão animada? Com quase 50 livros, filhos, netos..."
"Não tenho medo de nada. Tenham coragem, façam o que gostam de fazer, sigam seus sonhos. Não fiquem em casa fechados e... criem galinhas!" – Mary
E com esse desfecho no mínimo inesperado, Mary del Priore chegou ao fim de sua colocação. Uma enorme salva de palmas foi a resposta do público. Mary e Glória posaram para a foto oficial, que acontecia ali mesmo, de pé no palco e depois a historiadora saiu, rumo à mesinha onde autografaria seus livros.
POSFÁCIO
Depois que concluí as anotações em meu caderno, fiquei pelas imediações, observando essa movimentação: sua chegada, da enorme fila que já a aguardava, do falatório a seu respeito, dos muitos livros para lá e para cá, de todo o burburinho gerado por sua fala. Corri os olhos entre os livros que lá estavam. Conhecia vários de nome, e até fiquei tentado a me juntar aos muitos que pegavam para que ela assinasse, mas estavam muito caros. O país precisa valorizar a educação, abolir o livro didático, mas também de livros mais baratos. Me contentei em observar o fluxo de pessoas, cada vez maior. Cumprimentei ainda Glória Diógenes, não a via há uns cinco anos, desde um outro evento, o ETC, Encontro de Tuiteiros Culturais (fiz um post dele na época).
O café da Caixa estava aberto e a todo o vapor, mas bastante cheio e o lanche que fiz no intervalo anterior ainda me mantinha. Sem fome, minha cabeça fervilhava ante tudo o que havia ouvido, e busquei digerir melhor aquelas ideias antes que a próxima mesa bagunçasse suas integridades. Foi praticamente uma aula, que me pareceu querer abrir os olhos para uma realidade que está aí, que grita, que pulsa, e parece que ninguém realmente se importa. Mergulhar pela história do país, descobrir tanta riqueza que temos, nos mais singelos e muitas vezes pouco conhecidos detalhes parece nos tornar de alguma forma mais brasileiros, mais humanos, e ao mesmo tempo, acredito, nos força a diminuir um pouco esse ritmo frenético e doentio da vida de hoje, exageradamente conectada. Fiquei divagando, considerando que a história estará sempre lá, ela não tem pressa, podemos estudá-la com calma, revelar, conhecer seus silêncios. É um estudo que pede interesse, e sobretudo calma e paciência. É mais ou menos como estudar à moda antiga, nos livros, nas bibliotecas, nas visitações dos lugares. Tudo é muito mais espontâneo, mais natural, e talvez esteja por aqui a sensação do criar galinhas, dito por Mary no final de sua fala, como uma maneira de desacelerar a vida.
Na próxima postagem, a última desta série, a mesa final da Flicaixa, que trouxe o poeta Fabrício Carpinejar e o cronista Xico Sá, debatendo o tema narração de afetos, até lá.
"Não devemos esquecer o nosso passado. O passado é questão de amor" – Mary
A DESIGUALDADE CULTURAL
Um dos primeiros temas abordados pela historiadora foi a educação e suas desigualdades. Para tanto, citou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, célebre por suas ideias, como o capital cultural, que, em linhas gerais, revela um desnível entre o aprendizado nas escolas, pois considera que cada estudante traz, de berço, uma pré formação de seus pais e do meio em que vivem, o que interfere na forma como aprendem os conteúdos. Assim, portanto, as escolas, que prezam sempre um discurso de igualdade, acabariam por priorizar os estudantes mais "ricos", e aqueles com baixo capital cultural demorariam a entender os códigos culturais valorizados por elas. Seria como transformar a cultura em uma espécie de moeda, usada pelas classes dominantes para acentuar as diferenças. Isso explicaria também o fato de escolas sempre preferirem matérias como matemática e física a desenho ou esportes, ou seja, os interesses das classes dominantes, e nada de igualdade. Mary se mostrou incomodada pelo rumo que segue o país, que pouco valoriza a cultura, sobretudo a popular:
"Não há movimentos no Brasil contra a corrupção e a sociedade brasileira faz pouco esforço pela educação. Gosto da ideia de conversar com pessoas simples, que têm menos condições que nós, mas muitas vezes têm mais sabedoria" – Mary
UM POUCO DE HISTÓRIA
A historiadora falou um pouco de sua tetralogia, que começa com Histórias da gente brasileira, volume 1: Colônia, obra que esmiuça a vida antes do período do Império, que revela hábitos, costumes e histórias esquecidas ou ignoradas. "Quis mostrar como o brasileiro é inventivo, como tira sua sobrevivência da criatividade. Uso a comunicação dos jovens pesquisadores, que lidam com documentos históricos, é a melhor fonte de pesquisa."
Alguns fatos curiosos ditos por ela:
"Antigamente, não existiam pintores no Brasil, quem pintasse era artesão"
"O beijo só se popularizou após a 2ª guerra mundial. A boca é o lugar mais sujo do corpo. Os europeus criticavam os brasileiros, diziam ser sujos, mal educados. Os restaurantes por kilo de hoje são meio que 'netos' desses hábitos."
"Amor, no século XVII, só de Deus, só no século XIX que amplia seu sentido"
Nesse ponto, Mary trouxe à evidência a palavra mulato, dizendo que é preciso, antes de tudo, conhecer a origem da palavra para melhor entendê-la. Para tanto, citou Yeda Pessoa, que disse ser uma das maiores linguistas do país, especialista em estudos afro-brasileiros e línguas africanas. Acreditava-se que a palavra mulato designaria filho de mula, mas segundo estudos da professora Yeda, o termo é de origem árabe, significando de fato o filho do muçulmano com um não muçulmano .
Glória Diógenes, buscando ampliar a conversa, questiona se havia distinção entre a nudez nos diferentes períodos históricos. "Nos séculos XVI, XVII e XVIII, não havia. A nudez não era erótica naquela época. Ela tinha de ser descoberta. Os escravos tinham cuidado com seus corpos, com seus cabelos". A historiadora falou ainda de sodomia, do fato de masturbação ser proibida pela igreja (por haver desperdício de sêmen) e de um livrinho português da época, o Manual do Confessor. "É extremamente poético, poetiza as partes do corpo, se tornam belos".
Segundo Mary, os processos de divórcio só começariam a partir do século XIX. Nesta época, já não era o padre quem dizia o que podia ou não. Os médicos começavam a estudar a sexualidade humana. "O marido anotava as relações que tinha com a mulher. Naquela época, as relações eram somente para procriação"
Falando sobre prostituição, a historiadora fez um breve passeio por panoramas recentes, partindo das cocottes, as prostitutas francesas. "Vivemos uma esquizofrenia na nossa realidade de hoje. Prostituição sempre existiu no Brasil, desde o século XVI. As cocottes, naquela época, ajudaram os brasileiros a ter melhores hábitos higiênicos, a combater a sífilis."
Um outro detalhe interessante foi quando comentou que espelhos, símbolos de vaidade e luxúria, eram proibidos em casa, nos quartos. Só podia haver na sala. "Era uma contenção nesse período de aburguesamento. Isso só foi melhorar depois, com influência de estrangeiros."
Mary del Priore acredita que muito do que se sabe ou conhece hoje de detalhes ou particularidades destes temas, se deve ao trabalho de jornalistas e memorialistas e citou alguns relativamente contemporâneos: "Adalgisa Nery tem um excelente trabalho como memorialista; Pedro Nava escreveu um conto sobre a descoberta da homosexualidade; Tonia Carrero já descreveu beijo que deu em uma amiga. Nossa vida diária é um conto de deslumbramento. Hoje, por exemplo, eu vi como é linda a cor das águas daqui".
A conversa então foi desviada para a atualidade, focando agora nas crises, as muitas turbulências pelas quais vem passando o país, de conflitos a greves.
"A violência é um componente da nossa história, mas não estamos sozinhos, é assim em todo lugar do mundo. A democracia tem que atender a demandas muito diversas. A demanda de um é diferente da do outro. Como atender a todos? Não se trata de maioria, mas de grupos muito distintos, tribos. Como a democracia vai lidar com isso? Acho que os jovens terão que tratar disso aqui a alguns anos."
HISTÓRIA E LITERATURA, UM CASAMENTO IDEAL?
Glória diz que há forte ligação dos livros de Mary com literatura, que ela faz muitas referências literárias, e questiona a importância de se aproximar história e literatura e literatura e ciência.
"A história como ciência é uma invenção do século XIX. Quando ela tem uma missão, ela passa a ter teorias, e isso a transforma. Mais uma vez o trabalho de escritores e memorialistas, de textos de Leonardo Mota ou as notas de rodapé de Gilberto Freire ou Sérgio Buarque. A literatura brasileira dá um universo ao historiador, e ao meu ver é uma literatura que não tem recebido a atenção devida. Meu sonho é que as duas fossem ensinadas juntas. Isso seria bem mais divertido" – Mary
Ela também apontou, inúmeras vezes em sua fala, o desinteresse dos alunos de história, de como se afastam e os professores não conseguem se renovar para trazer esse interesse, fato que mostra também a desigualdade na educação.
"Temos um problema aqui no Brasil: o vestibular. O professor precisa ensinar o óbvio e isso afasta o aluno da história, da narrativa, isso tira o interesse. A literatura oferece universos maravilhosos" – Mary
Concluindo a questão história x literatura, Glória comentou que sua tese de doutorado foi criticada por ser literatura, não científica, e isso enaltece a diferença e preconceito que há no fazer literário.
CONVERSAR COM OS MORTOS, A IMPORTÂNCIA DO ESPIRITISMO
O espiritismo foi um outro tema que surgiu já pertinho do final da mesa. Os assuntos eram tão variados e ao mesmo tempo tão conexos que o tempo não parecia passar. Havia quase como um tempo suspenso, no qual todo o auditório se encontrava preso às palavras, às histórias contadas por Mary. Eu buscava um suspiro ou outro para dar conta de anotar esse ou aquele trecho, enquanto os refletia mentalmente. E lá foi Mary falar de espiritismo:
"Tive vontade de escrever sobre espiritismo. Fazer história é conversar com os mortos (deu um risinho controlado). No século XIX, o espiritismo chegou ao Brasil como moda. É assim que a obra de Kardec vai sendo importada" – Mary
Ela falou um pouco do período, da vida de Alan Kardec, de como começou seus estudos e desenvolveu sua doutrina. Mencionou ainda o conde d'Eu, Gaston d'Orleans, que ao ouvir um gramofone teria dito: são os mortos cantando. "Kardec dizia que os mortos tinham muito a nos ensinar" – Mary
"Os primeiros espíritas são baianos. O eco do além túmulo é a 1ª publicação dedicada aos espíritas"
"Achei uma carta de um professor de D. Pedro II. Falava, em 1846, que estava em uma mesa volante que recebeu a visita de um espírito que disse que caso ele não abolisse a escravidão, perderia o império." – Mary
"As pequenas coisas também contam histórias. O espiritismo é uma caixa de histórias, mas eles não deixam ter acesso a isso quem não for espírita. O Brasil é uma coisa fantástica, uma sinergia de culturas" – Mary
A POUCO CONHECIDA CULTURA AFRICANA
E para terminar, voltaram novamente aos temas africanos, tão ricos e ainda pouco conhecidos, segundo a historiadora, que focou agora diretamente nos escravos, da simplicidade como se se vestiam, sendo às vezes dificil diferi-los de seus donos de terra. Aqui ela citou um diário que reflete bem esse período, o memórias fantásticas de uma filha de cortador de cana.
Comentou que os europeus chamavam os brasileiros de mazombos e ainda que havia colégios para escravos e que foram os estrangeiros a primeiro mudarem a vida das classes menos favorecidas. A rua do ouvidor, no Rio, é reflexo de uma famosa rua de Paris.
Nesta reta final, surgiu uma questão que viria a sintetizar meio que um pouco de tudo o que Mary falou ao longo de toda a palestra. Glória indagou: o que acha da base do ensino e da reforma?
"Isso tem sido feito em vários países. Acho que alteramos isso em virtude do esquecimento de alguns conceitos. Mas não é o suficiente." Mary cita então o historiador e memorialista Alberto da Costa e Silva, como grande conhecedor e difusor da cultura africana, uma cultura ainda muito desconhecida, mesmo pelos próprios professores."É preciso conhecer outras línguas, a arte, a cultura, a literatura. A história da cultura africana só está acessível integralmente em língua estrangeira (holandês, francês, inglês). Para o professor, isso é difícil. A história da escravidão é simples mas a história da África é complicado. Enquanto não tivermos obras sobre a África, literatura africana, fica bem inacessível sobretudo para os professores. É coisa para 10 ou 20 anos".
QUANTO VALE UM LIVRO DIDÁTICO?
Mary levou adiante a problemática da educação, do desinteresse, da facilidade maior em criticar, em repreender ao invés de incentivar, gerando os comentários abaixo, os melhores de toda a fala, na minha opinião:
"Prefiro um aluno interessado do que dez desinteressados. Criticar, dizer que não vale a pena, é a coisa mais fácil que há. Os jovens professores de hoje não conseguem se comunicar com seus alunos. Precisamos nos reinventar, mudar a presença do professor de história junto aos alunos. Temos que usar as redes para mudar isso. Eu amo história e faço história para que as pessoas amem história. Livro didático é algo criminoso, é um veneno. Temos que recusá-lo, como a novela da Globo. Temos que convidar as pessoas a verem as coisas fora da sala de aula. Temos que fazer nossos alunos gostarem das coisas que gostamos, senão não darão conta. Temos que olhar nossa brasilidade e nos reinventar, esquecer as influências de fora. Inventar uma nova maneira de estuda história". – Mary
Glória e Mary trocavam sorrisos constantes, demonstrando grande amizade, uma elogiando as falas da outra, e de fato era uma conversa muito amável. Assim, Glória encerrou, com um última pergunta, mais direcionada à Mary pessoa do que à Mary historiadora: "como consegue ser essa pessoa tão leve? tão animada? Com quase 50 livros, filhos, netos..."
"Não tenho medo de nada. Tenham coragem, façam o que gostam de fazer, sigam seus sonhos. Não fiquem em casa fechados e... criem galinhas!" – Mary
E com esse desfecho no mínimo inesperado, Mary del Priore chegou ao fim de sua colocação. Uma enorme salva de palmas foi a resposta do público. Mary e Glória posaram para a foto oficial, que acontecia ali mesmo, de pé no palco e depois a historiadora saiu, rumo à mesinha onde autografaria seus livros.
POSFÁCIO
Depois que concluí as anotações em meu caderno, fiquei pelas imediações, observando essa movimentação: sua chegada, da enorme fila que já a aguardava, do falatório a seu respeito, dos muitos livros para lá e para cá, de todo o burburinho gerado por sua fala. Corri os olhos entre os livros que lá estavam. Conhecia vários de nome, e até fiquei tentado a me juntar aos muitos que pegavam para que ela assinasse, mas estavam muito caros. O país precisa valorizar a educação, abolir o livro didático, mas também de livros mais baratos. Me contentei em observar o fluxo de pessoas, cada vez maior. Cumprimentei ainda Glória Diógenes, não a via há uns cinco anos, desde um outro evento, o ETC, Encontro de Tuiteiros Culturais (fiz um post dele na época).
O café da Caixa estava aberto e a todo o vapor, mas bastante cheio e o lanche que fiz no intervalo anterior ainda me mantinha. Sem fome, minha cabeça fervilhava ante tudo o que havia ouvido, e busquei digerir melhor aquelas ideias antes que a próxima mesa bagunçasse suas integridades. Foi praticamente uma aula, que me pareceu querer abrir os olhos para uma realidade que está aí, que grita, que pulsa, e parece que ninguém realmente se importa. Mergulhar pela história do país, descobrir tanta riqueza que temos, nos mais singelos e muitas vezes pouco conhecidos detalhes parece nos tornar de alguma forma mais brasileiros, mais humanos, e ao mesmo tempo, acredito, nos força a diminuir um pouco esse ritmo frenético e doentio da vida de hoje, exageradamente conectada. Fiquei divagando, considerando que a história estará sempre lá, ela não tem pressa, podemos estudá-la com calma, revelar, conhecer seus silêncios. É um estudo que pede interesse, e sobretudo calma e paciência. É mais ou menos como estudar à moda antiga, nos livros, nas bibliotecas, nas visitações dos lugares. Tudo é muito mais espontâneo, mais natural, e talvez esteja por aqui a sensação do criar galinhas, dito por Mary no final de sua fala, como uma maneira de desacelerar a vida.
Na próxima postagem, a última desta série, a mesa final da Flicaixa, que trouxe o poeta Fabrício Carpinejar e o cronista Xico Sá, debatendo o tema narração de afetos, até lá.
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